“É lindo destruir palavras”

nota de 1 dólar americano (parte)

– Como vai o dicionário? — perguntou Winston, levantando a voz para se fazer ouvir.
– Devagar — respondeu Syme. — Estou nos adjectivos. É fascinante.
O rosto iluminara-se-lhe imediatamente com a menção da Novilíngua. Empurrou a marmita para o lado, apanhou com as mãos delicadas o cubo de queijo e o pedaço de pão, e inclinou-se sobre a mesa para poder falar sem gritar.
– A 11ª edição será definitiva — disse ele. — Estamos a dar à língua a sua forma final — a forma que terá quando mais ninguém falar outra coisa. Quando tivermos terminado, pessoas como tu terão de aprendê-la de novo. Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é a destruir palavras — às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos a reduzir a língua à expressão mais simples. A 11ª edição não conterá uma única palavra que possa tornar-se obsoleta antes de 2050.
Mordeu vorazmente o pão e engoliu dois bocados. Depois continuou a falar, com uma espécie de paixão pedante. O rosto magro e moreno animara-se, os olhos haviam perdido a expressão de chacota e tinham-se tornado quase sonhadores.
É lindo destruir palavras. Naturalmente a maior parte é nos verbos e adjectivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinónimos; os antónimos também. Afinal de contas, que justificação há para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. “Bom”, por exemplo. Se temos a palavra “bom” para que precisamos de “mau”? “Inbom” faz o mesmo efeito — e melhor, porque é exactamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais incisiva para dizer “bom”, para que dispor de toda uma série de vagas e inúteis palavras como “excelente”, “esplêndido”, etc. e tal? “Plusbom” corresponde à necessidade, ou “dupliplusbom”, se queres alguma coisa ainda mais forte. Naturalmente já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras — ou melhor, uma única. Não vês que beleza, Winston? Naturalmente foi ideia do Grande Irmão — acrescentou à guisa de conclusão.
[George Orwell – “1984”]



Joana Amaral Dias
Semanário “Novo”, 05.02.22

O nono círculo do inferno

 

Parece que um estudo indica que a palavra “mãe” deve ser substituída por “pessoa lactante” para criar uma linguagem neutra relativamente à maternidade. Eis a estupidez infinita. Lamentável que esta Língua Nova tenha buffet numa Nova Ciência que serve apenas para passar verniz a qualquer deriva totalitária. Em primeiro lugar, porque raio é que a linguagem relativa à maternidade deveria ser neutra? A maternidade alguma vez é lisa, imparcial e extirpada de sentimentos, afectos e cognições? Porque há uma franja estreita de homens a gerar vida (que outrora foram mulheres) imporemos à maioria uma castração? Desde logo, e por falar em maiorias e minorias, achar que Mãe deve ser substituída por lactante é segregar imediatamente todas as mulheres que não puderam ou não quiseram amamentar e todos os homens que, até por gosto, deram biberão aos seus filhos, sendo lactantes por deleite. Vamos distingui-los das lactantes “puro leite” porquê? Enfim, esta eugenia da linguagem já teve outros estapafúrdios episódios, como a substituição da palavra mulheres pela palavra menstruadoras, como se as que não menstruam (por doenças, anorexia ou idade) não fossem mulheres. Contudo, lançar este tipo de engenharia sobre a palavra Mãe é, realmente, mais um anel no Inferno. Anama é como se diz em esquimó. Maa diz-se na Índia e no Nepal. Māma é uma palavra chinesa, Mãdar é persa, Moeder é sul-africana, Ama é basco, Mana é grego, Manman é crioulo haitiano, Majka é macedónio, Mamma é norueguês, Mamă é romeno, Mama russo, Mati ucraniano, Muter é yiddish. Algo de muito semelhante se passa com a palavra Pai. Há diferentes razões para esta coincidência, nomeadamente um tronco comum donde nasceram muitas línguas diferentes.
Mas também mora aqui a própria sobrevivência da espécie –– o mais fácil palrar para um bebé é uma consoante seguida por uma vogal ou labial (como M, P ou B) ou dental (como T ou D), correspondendo ao inato movimento de abrir e fechar a boca. E o som mais fácil para um bebé produzir é o ah, que não requer qualquer movimento da língua ou dos lábios. Ou seja, a associação entre Mãe e Lactante existe, de facto, mas pela própria palavra Mãe que reproduz o som que inadvertidamente surge quando o bebé está a mamar, um ligeiro murmúrio nasal, o fonema que sai quando os lábios estão pressionados contra o mamilo ou a tetina e a boca está cheia. Assim, quando o bebé tem fome, e precisa de se alimentar, repete este som antecipando o que necessita. Chama-se mesmo sinal antecipatório. Mas há mais. A actividade cerebral do bebé dispara quando ele escuta repetidamente os sons Mamã e Papá e muitas (velhas) investigações indicam que os recém-nascidos chegam já pré-programados para reconhecer esse tipos de sílabas mais do que outras palavras.

Certo é que não é preciso ser Freud ou Piaget para perceber que o centro da identidade do ser humano é a sua sexualidade (sexualidade e não relações sexuais). E também não será necessário ser Wittgenstein ou Heidegger para entender que a linguagem é a casa do pensamento, que pensamos com o vocabulário, a sintaxe e a semântica que alcançamos. Ou seja, quem controla a linguagem sobre a nossa sexualidade/afectividade domina o nervo da mente humana.

Esta monomania do depuramento das palavras, aparentemente com boas intenções, supostamente com a finalidade de alterar a estrutura de poder que a linguagem encerra, frequentemente só reforça essa estrutura, ocultando-a, tornando-a cada vez mais impenetrável. Opera pela censura e, afinal, pretende controlar e subjugar. Assim, não é de estranhar que, ao tal estudo a sugerir a substituição da palavra “mãe” por “lactante”, tenham sido contrapostas várias pesquisas a indicar que a substituição de palavras seminais por frases neutras reduz o “vínculo mãe-bebé” e prejudica a amamentação. Exacto. O linguajar asceta prejudica gravemente a humanidade.

[…]

Joana Amaral Dias – Activista política

 

[Transcrição parcial. Destaques e “links” meus. Imagem de JAD de: “Tendências online”.]

[Imagem de topo de: “Notícias Viriato“. Imagem de ícone Illuminati (Eye ofProvidence) de:US Government, Public domain, via Wikimedia Commons. Imagem de nota de dólar de: “iStock“.]

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