Há dias, numa conversa caseira, fui testemunha da enorme influência que a cultura inglesa exerce sobre os mais novos. Ao contar a história de um amigo que se candidatou a um emprego, o meu filho tropeçou no vocabulário — só lhe ocorria qualquer coisa à volta de “aplicou-se para”, numa clara influência do Inglês “to apply for”.
Vem isto a propósito da polémica em torno da enorme pressão a que está actualmente sujeito o Português Europeu, em risco de se descaracterizar completamente por força da enorme penetração de conteúdos brasileiros no nosso país — uma tendência que tem como expoente máximo o fenómeno Luccas Neto.
Embora afecte particularmente os mais novos, esta “brasileirização” está em todo o lado. Nas crianças, é assustadora — no curto espaço de uma geração corremos o risco de ver toda a estrutura do Português Europeu desaparecer, dando lugar à (des)ortografia, à construção frásica, ao vocabulário e até ao sotaque brasileiros. Mas também existe nos adultos, embora de forma mais subtil, muitas vezes sem que os próprios se apercebam. Veja-se, por exemplo, dois artigos consecutivos de Ana Cristina Leonardo no PÚBLICO: no artigo do dia 28 de Janeiro denuncia, e bem, o Acordo Ortográfico, estabelecendo uma ligação entre a sua influência e a crescente estupidificação da campanha eleitoral. Na semana seguinte, num outro texto, referindo-se a uma aplicação para telemóvel, a mesma autora dá preferência ao termo “aplicativo” (em Português de Portugal: aplicação).
Estranhamente, parece haver, entre os “influenciados”, quem desvalorize esta influência brasileira — a começar pelos pais das próprias crianças. Por um lado, dizem, essa influência sempre existiu. É anterior às próprias telenovelas brasileiras e nunca veio daí mal ao mundo. Por outro lado, acrescentam, não é pior do que a influência do Inglês. Há até quem diga que é melhor, referindo-se aos termos ingleses como “estrangeirismos”. Como se “aplicativo” e outras expressões similares não tivessem origem, também elas, noutro país.
Não é fácil desmontar este raciocínio porque a argumentação tem um fundo de verdade. Sim, a influência brasileira sempre existiu. Mas também sempre existiu entre todas as Línguas, em maior ou menor grau. Em larga medida, é desta forma que as Línguas evoluem.
A relação entre as Línguas do mundo sempre foi fluida. Quaisquer duas Línguas estão, ao mesmo tempo, a aproximar-se e a afastar-se, embora o saldo natural deste movimento seja sempre favorável ao afastamento. Português e Inglês, por exemplo, aproximaram-se no momento em que ambas escolheram a palavra “internet” para definir “rede informática à escala global”. Mas a tendência natural é a do afastamento.
Qual é então o problema da influência brasileira? Desde logo, há o facto de essa influência estar a acontecer em doses industriais. Mas, acima de tudo, estamos perante uma influência que não ocorre de forma espontânea. Pelo contrário, tem um cunho forte de imposição, pela aplicação da lei do mais forte. A influência do inglês, por grande que seja, não ameaça a nossa identidade — o meu filho jamais tentará convencer alguém de que “aplicar-se para um emprego” é uma expressão portuguesa. Pelo contrário, no caso da influência brasileira, há um risco real de termos de “debater” com terceiros a propriedade de expressões como “registro”, “econômico” ou “pantorrilha”.
Com a influência brasileira, hoje em dia, e residindo eu em Portugal, já tive de preencher formulários de “registro” numa actividade. Na internet, pedem-me que me “cadastre”. E, numa consulta a uma empresa portuguesa, recebi uma proposta para a realização de um estudo “socio-econômico”.
O que é que isto tem que ver com o Acordo Ortográfico? Tudo.
Na era pré-acordo, não passaria pela cabeça de ninguém, numa empresa portuguesa, escrever a um cliente uma carta em Português do Brasil.
Mas imaginemos, por absurdo, que isso acontecia. Qual seria a minha reacção? Sem o Acordo Ortográfico, o meu raciocínio só podia ser um: por alguma razão que não compreendo, uma empresa decidiu escrever-me em Português do Brasil. E, com um encolher de ombros, seguiria em frente.
Na era pós-acordo as fronteiras desapareceram. Pode muito bem acontecer que quem me escreve em Português do Brasil esteja convencido — e a tentar convencer-me — de que o faz em “Português”, um Português “universal” que dizem existir agora e que mais não é do que Português do Brasil.
Com a imposição do Acordo Ortográfico estamos, portanto, perante mais um fenómeno de engenharia social, de cariz eminentemente político, em que a Língua é usada não como meio de comunicação mas como forma de construir — ou destruir — identidade.
E, como sempre, quando a política mete as mãos na Língua — seja por estratégia geo-comercial, seja por conflito étnico ou religioso, seja por absoluta falta de senso — as consequências não são boas. Regra geral, acontece uma de duas coisas: a substituição forçada de uma Língua por outra, ou a criação de duas Línguas “diferentes”. Veja-se o caso do Bósnio, do Sérvio e do Croata. São apenas variantes do Servo-Croata, perfeitamente inteligíveis entre si. No entanto, num cenário de pós-guerra na ex-Jugoslávia, Bósnia-Herzegovina, Croácia e Sérvia entenderam por bem sublinhar as pequenas diferenças existentes, apresentando-as agora como três Línguas distintas. É frequente encontrar-se cartazes “triligues” onde se vê a mesma coisa escrita três vezes, sendo que a única diferença é que o Sérvio, que também pode ser escrito com caracteres latinos, está geralmente escrito em cirílico. São experiências “contra-natura” que tendem a correr mal: na Croácia, a legendagem de filmes Bósnios foi abandonada depois de ter sido ridicularizada e as pessoas da região, independentemente da sua origem, limitam-se a usar a expressão “Nas Jezik” (a nossa Língua) quando se referem ao idioma que usam.
No caso português, assistimos a mais um caso de interferência política no percurso natural da Língua. O problema é que, desta vez, estamos perante uma espécie de Bósnio ao contrário. Depois de séculos de afastamento, o Português do Brasil estava pronto para cair de maduro, autonomizando-se como Língua própria, num movimento idêntico ao de Cabo Verde, em que o crioulo se tornou a Língua nacional do país.
Português e Brasileiro são de facto duas normas distintas, que não podem coexistir no mesmo espaço. Ninguém começa um texto com algo como «na paragem, o Manuel percebeu que o autocarro ia chegar atrasado» e termina a dizer que «chegando em casa, Manuel falou pra mamãe que o ônibus não chegou em tempo no ponto». Pela lei do mais forte, uma das normas acabará por prevalecer.
Com o Acordo Ortográfico, agora somos nós, portugueses, que, numa completa falta de patriotismo, apagamos a nossa diferença e aceitamos a utilização de uma Língua que nos chega de fora. Será a nossa inferioridade perante os brasileiros assim tão gritante, ao ponto de um povo abdicar de zelar pela sua Língua, fazendo-a substituir por outra?
É de inferioridade que se trata. Uma Língua, quando se expande, ocupa necessariamente o espaço de outra. Os crioulos que Portugal espalhou pelo mundo nasceram em locais onde os respectivos povos, certamente, falavam outra Língua qualquer. E o Português-Língua impôs-se pela superioridade científica, tecnológica e militar com que os portugueses se apresentaram nessas terras.
Português-Brasileiro. Parece que é o nome que, no Brasil, querem dar à Língua que se fala nesse país. Essa autonomização, que já vem tarde, será providencial — e esclarecedora. Luccas Neto continuará a divulgar o seu trabalho no nosso país. Mas os seus seguidores terão de perceber que estão a comunicar noutra Língua. E todos nós poderemos perguntar-nos: essa Língua está a ser imposta em Portugal por alminha de quem?
[Imagem de cerco a Sarajevo (1992-96) de: “tacno.net“. Imagem de maço de tabaco com escritos trilingues de: Wikiwand. Imagem de botas militares brasileiras (“coturno”?) de “Almox Militar“. Adicionei (JPG) “links” ao texto original.]
Completamente de acordo!