«Se não fossem a bexiga, o tifo, a malária, o analfabetismo, a lepra, a doença de Chagas, a xistosomose, outras tantas meritórias pragas soltas no campo, como manter e ampliar os limites das fazendas do tamanho de países, como cultivar o medo, impor o respeito e explorar o povo devidamente? Sem a disenteria, o crupe, o tétano, a fome propriamente dita, já se imaginou o mundo de crianças a crescer, a virar adultos, alugados, trabalhadores, meeiros, imensos batalhões de cangaceiros – não esses ralos bandos de jagunços se acabando nas estradas ao som das buzinas dos caminhões – a tomar as terras e dividi-las? Pestes necessárias e beneméritas, sem elas seria impossível a indústria das secas, tão rendosa; sem elas, como manter a sociedade constituída e conter o povo, de todas as pragas a pior? Imagine, meu velho, essa gente com saúde e sabendo ler, que perigo medonho!» [Jorge Amado]
Esta é outra das consequências mais nefastas do AO9 — como se algum resultado de semelhante aberração pudesse ser positivo — que portugueses tentam omitir fingindo que não existe mas que encaixa perfeitamente na teoria vitimista dos brasileiros em geral. Anteriormente havia alguma espécie de harmonia entre os dois países e os povos de ambos, convivendo naturalmente os de cá e os de lá com todas as suas diferenças sociais, históricas, culturais e — natural ou principalmente — linguísticas.
Antes do AO90, a língua brasileira não passava, pelo menos oficial e politicamente, de uma variante do Português-padrão. Desde que a cacografia brasileira foi imposta a toda a “lusofonia”, em Julho de 2008, também em Portugal começaram a surgir alguns sinais da xenofobia e intolerância que sempre foram características intrínsecas da atitude dos brasileiros em geral quando se referem ao nosso país e principalmente aos nossos compatriotas emigrados naquele país; o preconceito anti-português radicará muito provavelmente na constatação (expressamente inventada para o efeito) de que o atraso sócio-económico brasileiro é integralmente “culpa” dos “exploradores” portugueses que sempre andaram por lá a “roubar” o ouro brasileiro e a explorar os escravos que naquela época, como é “um fato”, não era prática comum nem nada. Segundo a sua impecável “lógica”, os brasileiros foram “vítimas” dos malvados portugueses durante 388 anos, “pôrrtantu, viu”, “u siguintchi”, de igual modo a culpa de tudo o que de mau acontece no Brasil desde a independência, em 1822, continua a ser de Maria e de “seu Manuéu” — esse casal apalhaçado que retrata na diminuta cabecinha de milhões de brasileiros o estereotipo nojento por eles reconhecido como o verdadeiro tuga.
Há quem diga que o fenómeno não passa de um arquétipo, garantindo inocuidade e inocência às diatribes, mas, na verdade, como aliás todos sabemos perfeitamente, e alguns até por experiência própria, aos brasileiros em geral não agrada nada qualquer coisa que sequer lhes cheire a “tuga” ou, como dizem na sua língua, a “portuguesinho”. Ainda que tenhamos o discernimento suficiente para distinguir o “brasileiro médio”, por regra portador de uma carga imensa de confrangedora ignorância, do “brasileiro comum” (ou normal, dirão alguns mais irritadiços) e da sua petulância, a arrogância de que fazem gala quase todos eles, ainda assim teremos sempre de contar com a “sede” que o zuca tem ao tuga; é uma idiossincrasia peculiar sem a mínima sustentação.
A questão radica em razões históricas “mal resolvidas”, geralmente apoiadas numa narrativa sustentada pelos caciques locais (os “coroné” ou “coronéu”) e por uns quantos políticos um bocadinho mais trogloditas, representando Portugal para todos os efeitos o álibi perfeito que justifica o atávico atraso do seu “imenso” país terceiro-mundista: tudo o que no Brasil sucede de mau ou funciona mal ou não funciona de todo é automaticamente “culpa dos portugueses” (como se aquilo não fosse independente desde 1822, repita-se) e eles são inocentes de tudo, não passam de pobres vítimas — a não ser que a coisa interesse, porque nesse caso já é 100% brasileira (veja-se o caso de Bartolomeu de Gusmão) — e portanto há que “castigar” os amaldiçoados tugas.
Esse “castigo” histórico e existencial (fifty-fifty) em jeito de vingança tem de facto de ser implacável, a começar por arrancar-nos a língua (com minúscula) — é brasileiro o exclusivo da vitimização — e depois destruir-nos também a Língua (com maiúscula) impondo a língua (de novo, com minúscula) brasileira como sendo “universau”, e tudo isto incluindo não apenas a sua deles cacografia como também o léxico, a arbitrariedade de regras gramaticais (abolindo a Gramática, esse empecilho, por redundância) e até, como se tem visto, o “sutáki” deles.
Cada qual responderá por si, evidentemente. No que diz respeito à minha já muito longa luta contra o AO90, jamais existiu qualquer espécie de preconceito (anti-brasileiro ou outro). Bem pelo contrário, aliás, até porque desde sempre atribuo — com bastas provas e nada de “bocas foleiras” — tanto a responsabilidade como a irresponsabilidade pelo e do estropício aos corruptos, vendidos e traidores envolvidos no golpe de Estado, aos políticos, empresários, académicos e outros tipos de canalhas (além dos inúmeros idiotas úteis que dantes rasgavam as vestes), todos eles portugueses e portuguesas ou, melhor dizendo, todos eles e elas sendo portadores de passaporte português — cortesia das entidades oficiais coniventes.
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