As interrogações são de facto diversas. As perplexidades também. O que implica, evidentemente, não apenas muitas dúvidas como, sobretudo, algumas certezas: ASS, um político profissional, com tudo o que de mais sinistro acarreta semelhante designação, foi — convém não esquecer — o braço direito, o imediato, o lugar-tenente, o putativo herdeiro “ideológico” de José Sócrates, esse extraordinário modelo de virtudes. O qual modelo — como ainda mais convém recordar — foi um dos paizinhos “ideológicos” do AO90. Era o próprio ASS quem sentava sua profícua máquina de ideias na cadeira de Sua Excelência o Ministro da Defesa quando foi aprovada no Parlamento a criminosa Resolução da Assembleia da República número 35/2008 e posteriormente, com base “legal” naquela, a Resolução do Conselho de Ministros número 8/2011.
Não cabe aqui esmiuçar as diversas torções “ideológicas” ou os contorcionismos políticos de Sua Excelência o actual Presidente da mesma Assembleia onde foi parida a escandalosa ilegalidade originária, desde o seu apoio a Otelo e depois a Eanes, de Maria de Lurdes Pintassilgo a Mário Soares à Presidência da República, a sua viagem de Trotskyist a “socialista” mai-los seus compagnons de route desde a extrema esquerda burguesa ao repousante centrão, esse uterino, confortável e quentinho refúgio dos DDT. No entanto, mesmo sem necessidade de fazer um desenho da história e da cara do “cara”, aparece com nitidez uma personalidade com tanto de arrivista como de carreirista, o perfil característico do “gajo porreiro”, sempre de tacha arreganhada e naifa a postos para qualquer abraço. O tipo indicado no lugar exacto e no momento certo, portanto, aquele que reunia — e continua a reunir, ao que se vê — todas as condições para fazer passar “democraticamente” o impensável, para executar friamente o plano de destruição da Cultura, para liquidar de vez o mais ínfimo ou remoto resquício de Língua Portuguesa, de património identitário (imaterial e material), de identidade nacional (colectiva e individual). Não será com certeza por mera coincidência que o mesmo ASS, sempre ASS, tenha detido e feito soçobrar sucessivamente as “pastas” de Ministro da Educação, Ministro da Cultura, Ministro da Defesa e Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Agora alça-se ao topo da carreira: Presidente da Assembleia da República, a segunda figura na hierarquia do Estado. O esplendor da lógica trepadeira.
Haja alguma espécie de pudor, porém. E de vergonha alheia, claro. Não citarei nem uma palavra daquilo que sobre a Língua Portuguesa regurgita quem, por algum tipo de paranóico trauma, sempre fez e continua a fazer o mais que pode para aviltá-la.
Mas há quem se preste a semelhante frete, a tão excruciante sacrifício.
Depois de tanta exclamação, vamos enfim às interrogações?
Nuno Pacheco
www.publico.pt, 07.04.22Já passou mais de uma semana desde que Augusto Santos Silva foi eleito presidente da Assembleia da República por confortável contabilidade: 156 votos a favor, 63 brancos, 11 nulos. Vê-lo na política, neste ou noutro cargo, não espanta, eleito e reeleito deputado desde 1995 e rodando pastas como governante desde 1999; espantou, sim, o seu anúncio de que voltaria à vida académica se o PS deixasse. Pelos vistos não deixou e o espanto foi-se.
Do discurso da sua tomada de posse já bastante se falou, havendo quem muito o elogiasse. Mas há um ponto a que importa voltar: o da língua. Sem surpresa, ela preencheu parte considerável das 2282 palavras com que o ex-ministro se dirigiu ao Parlamento, ora repisando velhíssimas máximas, como o português ser “a língua mais falada no Hemisfério Sul”, “uma das que mais crescem”, ferramenta diária “de mais de 260 milhões de pessoas”, ora, a coberto da afirmação (também tão gasta) de que temos uma “língua pluricêntrica”, deixar umas frases aparentemente encorajadoras de tal diversidade: “É uma língua que se fez e transformou e evoluiu em encontros, em descobertas, em miscigenações”; “a natureza pluricêntrica da língua em que nos exprimimos – cada um na sua variedade, da relação de tais variedades se fazendo a pujança da língua comum”; “servindo para a expressão de múltiplas culturas, a língua que, sendo nossa pátria, é a pátria de outros, cada povo fazendo dela pátria ao seu modo próprio, de tal modo que a língua portuguesa é hoje, ao mesmo tempo, o fator de construção de pátrias distintas e o laço mais forte e perene de ligação entre essas pátrias.” Deixando de lado os arroubos poéticos (“tem a vastidão do mar e a limpidez da luz”) ou a citação de autores que sempre vêm ao caso (Sophia, Vieira, Eça, Drummond, Vergílio Ferreira, Lispector, Luandino, Saramago, Mia Couto), tais frases podem dar a entender que Augusto Santos Silva terá, enfim, compreendido que o caminho e a força da língua portuguesa residem na sua diversidade e não em espartilhos artificiais e inúteis como o Acordo Ortográfico de 1990, de que tem sido guardião supremo e inabalável. Não é crível. A diversidade aqui é devaneio poético, valendo no papel o ferrete impositivo.
Há, porém, outro momento interessante no discurso de Santos Silva. Ei-lo: “O sinal de pontuação de que a democracia mais precisa é o ponto de interrogação. O sinal que mais dispensa é o ponto de exclamação […] Deixemos as certezas aos néscios e cultivemos sem temor a nossa capacidade de questionar e inquirir.” Não deixa de ser curioso que um homem de tantas exclamações no passado venha agora requerer interrogações para o futuro. Mas enfim, há sempre tempo. Podemos começar por estas, que talvez lhe interessem: o Acordo Ortográfico de 1990 contribuiu para uma maior internacionalização de língua portuguesa? Fez com que o português passasse a ser língua de trabalho nas Nações Unidas? Promoveu a anunciada uniformização ortográfica nas normas em uso nos vários países? Contribuiu para uma circulação de obras com uma mesma grafia no espaço da língua portuguesa? Para que as legendagens de filmes em Portugal, Brasil e países africanos passassem a ser únicas? Para que as traduções de livros estrangeiros fossem também elas únicas em todo o espaço da língua portuguesa? Para que o ensino do português fosse unificado à escala internacional?Santos Silva sabe, certamente, a resposta para tudo isto. Tem três letras e um til. Mas como o “negócio” já é antigo e as perguntas incómodas, tudo continuará como até aqui: mal. É o que leva a que se escrevam disparates como este, publicado também em finais de Março (no dia 25) na plataforma brasileira Universo de Negócios: “Até o acordo entrar em vigor, a língua portuguesa era divida [sic; é uma gralha, seria ‘dividida’] entre ‘português brasileiro e português de Portugal’, isso criava alguns problemas desnecessários, como a necessidade de publicação de materiais, livros e legendas de filmes ou séries nas duas variações.” E é um disparate porque tais variações continuam: em materiais, livros e legendas, pois as variantes portuguesa e brasileira seguem caminhos diversos. Como é um disparate ler, por exemplo, que as legendas dos filmes na Netflix para Portugal são em “português do Brasil”, quando na verdade são no português de Portugal sujeito às arbitrariedades da dita “ortografia” de 1990.
E é nesta mistificação de pantomina que persistimos. Em tempo de guerras e pandemias, o tema arriscar-se-ia a adormecer nas prateleiras do esquecimento; mas como o mal que gerou continua bem vivo, em escritas de delirante miscelânea ortográfica, não será abandonado.
P.S.: Porque estamos em Abril, mês da celebração da Liberdade, deixo uma imagem e um convite. O convite é para que não percam a exposição Proibido por Inconveniente. Materiais das Censuras no Arquivo Ephemera, que a partir de hoje e até 27 de Abril estará no antigo edifício-sede do Diário de Notícias, na Avenida da Liberdade, em Lisboa (das 11h às 18h). E a imagem é a de um texto ali exposto, escrito por Maria Velho da Costa e integrado no livro A Censura e as Leis de Imprensa, de Alberto Arons de Carvalho (ed. Seara Nova, 1973). Intitula-se “Ova ortegrafia”para se ler Nova cortegrafia, ou ortografia do corte. Ainda andavam longe os cortes modernos, os da amputação aleatória de consoantes, mas estes, os da censura, deram origem a este texto de uma fina ironia, que se recomenda (o texto, impresso em duas páginas do livro, foi aqui remontado numa só, para facilitar a leitura).
[Transcrição integral (incluindo “links” em cor azul) de artigo de opinião, da autoria de Nuno Pacheco, publicado em 07.04..22 no jornal “Público”. Os “links” a verde com as respectivas transcrições de outros posts do Apartado foram (evidentemente) acrescentados por mim.]
[Nota: este artigo foi-me enviado como oferta, no âmbito de uma campanha publicitária daquele diário.]
O chefe da diplomacia portuguesa, Augusto Santos Silva assinalou a data na TSF, onde declamou o poema “Cantiga, Partindo-se“, de João Roiz de Castelo-Branco e lembrou que o português é uma “língua viva e plástica”, sujeita a mudanças.
“Este é um dia para tomarmos consciência das nossas responsabilidades” para “continuar a promover a língua portuguesa, tratá-la bem, criar com ela, usá-la como língua de comunicação”, considera Augusto Santos Silva.
Sobre o Acordo Ortográfico, o chefe da diplomacia lembrou que este é fruto de um acordo internacional com outros países de língua portuguesa – e “se há coisa porque somos conhecidos é por cumprir os acordos internacionais“, ainda que “não seja um crime” não escrever segundo as novas regras.
Augusto Santos Silva participa esta tarde numa sessão solene, em Lisboa, para assinalar o dia mundial da língua portuguesa, que contará ainda com a participação de Augusto Santos Silva executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Francisco Ribeiro Telles.
[“TSF”. 05.05.21] — [“post” Da outra banda, 19.05.21]