Separar a ignorância ou a iliteracia do linguicídio; eis um dos três “lapsos” mais rotineiros e habituais quando o assunto é o AO90. Os outros dois são “discutir” questões de Ortografia sobre um negócio político-económico e “debater” aspectos jurídicos (que “não está em vigor” e alucinações do género) sobre um “tratado” assinado entre políticos e empresários de ambos os lados, à revelia dos portugueses e com total desprezo pelo interesse nacional.
Ignorância e iliteracia sempre existiram e sempre existirão. São fenómenos tão naturais quanto inevitáveis, dependendo em grau de complexas variações, sensíveis de país para país, em função de uma série de factores culturais e educacionais. Em Portugal, portanto, a comunicação escrita depende — como em qualquer outra nação linguística — não apenas do sistema de Ensino (caótico, no nosso caso) como também de estímulos, hábitos, tradições e até mesmo rotinas sociais: a leitura, principalmente, mas com não menor pendor a música, o teatro, a pintura e todas as outras formas de Arte.
Não será por conseguinte nem muito “científico” nem minimamente curial meter no mesmo saco a ignorância característica daqueles que, por estrato, classe ou quaisquer outras circunstâncias — incluindo as pessoais — escrevem como falam e falam como ouviram falar, com aqueles outros que em resultado de diferentes meios económicos e sociais atingem níveis de proficiência relativamente elevados no domínio da Língua. Uma ínfima minoria destes até sabe escrever e tudo, o que é não despiciendo talento.
Não confundir a árvore com a floresta, portanto. Existe, na escrita como na lucidez, uma longa escada em pedra mármore, por vezes escorregadia e traiçoeira, em cuja base está uma imensa multidão tentando alcançar o primeiro degrau, também já cheio, depois o segundo, o terceiro, e assim sucessivamente, a escadaria diminuindo de gente quanto mais alto se sobe.
Quando o autor deste artigo do “Público” diz que «Não, isto não tem nada que ver com o MA [Monstruoso Acordo], contraporão os empedernidos» estaria aparentemente a esbarrar contra o único embondeiro de um imenso deserto, mas afinal, desfazendo desde logo a alucinação típica provocada excesso de Sol na cabeça, de seguida acrescenta uma rabecada tremenda: «Nadinha. Ainda terão lata para tal dislate?»
Claro que tem tudo a ver. O AO90 foi esgalhado com a finalidade objectiva de disfarçar a golpada política a ele subjacente; por conseguinte, vale tudo, desde a “consagração pelo uso” ao mui “científico” postulado “o que não se diz não se escreve” ou o ainda mais “rigoroso” ditame que prevê o primado da “pronúncia culta”.
Coisinhas tão rigorosas (e jeitosas) como, por exemplo, o impato da sução na batéria ou um “acupuntor” para “estocar” e uma “microrrotura”, entre milhares de outras lindezas, juntando a transcrição fonética do brasileiro e a pura e simples caça à consoante “muda”, resultaram do “acordo” made in Brazil redigido por tugas de borla (salvo seja, que eles fizeram-se pagar).
Ou seja, os erros ortográficos, escrever com os pés e dar pontapés na Gramática, tudo isso que sempre existiu no Português, mas ganhou com o AO90 um impecável estatuto de norma que tende a impor-se não apenas como factor de prestígio como também, ou principalmente, uma obrigação legal.
O acordo cacográfico é uma lei que impõe a língua brasileira a Portugal, extinguindo a Língua Portuguesa, e é também um decreto que nos manda a todos comer gelados com a testa.
Se este texto contém “masculinidade tóxica”, peço desculpa
Aviso à navegação: neste texto, “José” é o nome alterado de um vulto da cultura portuguesa falecido há não muito tempo, dos raros que procuravam, a todo o custo, escrever com riqueza vocabular, beleza, eufonia e erudição.
Há estudos que dizem que nunca se escreveu tanto como agora. Hoje, quase todos escrevem nas redes sociais, por sms, por correio electrónico. Claro está, nem tudo são rosas: o imediatismo nas respostas; a escrita de jorro; a ausência de revisão; o excesso de mensagens de coisíssima nenhuma; a pletora de emojis e de abreviaturas; a quantidade de capas a substituir quês e us; a porcaria da “escrita esperta” que altera as palavras que queremos escrever para outras que não queremos, de forma alguma!, escrever; a impressionante oscilografia que o Monstruoso Acordo (MA) instalou, com consequências terríveis para os olhos e para os ouvidos — sim, para os ouvidos. Recentemente, ouvimos “impato”.
(Não, isto não tem nada que ver com o MA, contraporão os empedernidos. Nadinha. Ainda terão lata para tal dislate?)
Todos estes factores não contribuem para a valorização do acto de escrever. Para a sua solenidade, até.
Um artigo da Folha de S. Paulo, de Otávio Pinheiro, de 16 de Julho de 2018, garante que “[n]unca se escreveu tanto, tão errado e se interpretou tão mal”, frisando que apenas 22 % dos Brasileiros que chegaram à universidade têm “plena condição” de “compreender e se expressar”.
Um artigo no Expresso, de Isabel Leiria e Joana Pereira Bastos, de 4 de Março de 2022, com o elucidativo título “Como o digital está a moldar a linguagem”, corrobora o que ouvi de três mães e de uma professora:
“No 1.º Ciclo, por exemplo, isso é cada vez mais comum [omissão de verbos e artigos] “Professora, posso casa de banho? Ou “mãe, posso gelado” são exemplos de construções frásicas que parecem estar a tornar-se moda”, assegura Filomena Viegas da Associação de Professores de Português, que garante ainda haver eliminação de pontuação, de maiúsculas. “[U]m empobrecimento da fraseologia. Escrita e oral”, resume Filomena Viegas.
Na crónica “Palavras soltas”, do jornal Público, de 1 de Junho de 2007, Vasco Pulido Valente afirma:
“A linguagem pública (religiosa, política, jornalística, musical, literária, cinematográfica, universitária) empobrece dia a dia. A conversa, como arte, morreu, porque as pessoas não têm que dizer e muito pouco interesse em ouvir.”
E dá o exemplo da escrita de cartas:
“Quem viveu na época em que se escrevia (cartas, por exemplo) aprendeu que escrever é um exercício de investigação e de lógica; um exercício que obriga a definir, ordenar e desenvolver o que se pensa. E também uma tentativa para comover, convencer, informar ou instruir o próximo. A espécie de comunicação pessoal e colectiva que hoje se usa dispensa esse esforço.”
Bem, falemos da singularidade do José.
Consoante o receptor e o contexto, há quem termine as mensagens de telemóvel e de correio electrónico, e as cartas (aceitemos a ideia de “carta electrónica” quando a extensão e a estrutura é similar à de uma carta) com “beijinho”, “beijinhos”, “abraço”, “abraços”, “beijo”, “beijos”, “forte abraço”, “fraterno abraço”, “melhor abraço”, “grande abraço”, “saudoso abraço”, por vezes seguidos de ponto(s) de exclamação. O José não usava estas palavras, possuía uma marca só sua.Aparte: Tinha um amigo que, quando recebia mensagens femininas, interpretava e reinterpretava obsessivamente as entrelinhas das mensagens, pedindo a opinião dos amigos mais próximos. Três linhas de uma mulher que o interessava obrigavam a meia hora de dissecação da mensagem, especialmente da última inscrição. Impulsivo e hiperanalítico, saltava logo para o fim da carta. Se era “beijinhos”, ficava deprimido. Se era “beijo”, todo ele era euforia e glória. Para o meu amigo, “beijinhos” ou “bjs” eram sinal de desprezo. O beijinho, no singular, era um degrau acima. A forma abreviada (“bj”) era um manifesto de desinteresse. “Beijos” era ambíguo, mas mais quente do que os “beijinhos” e o “beijinho”. “Bjs”, porém, não lhe dava esperança. Na sua cabeça, “bj” e “bjs” eram escritos a despachar. O “beijo” é que era.
Há quem use advérbios de modo: “atenciosamente” e “respeitosamente” serão os mais frequentes. O José não se despedia assim.
Há quem use “cumprimentos” ou “melhores cumprimentos”. O José não.
Há quem recorra às saudações, acrescentando-lhes, por vezes, um adjectivo, como “calorosas”. “Saudações patrióticas”, escreveu-me certa vez um militar. Também não era o caso do José.
Há quem use fórmulas pouco comuns: “abraço quebra-costelas”, “aquele abraço”, “abraço dos verdadeiros”, “saúde e sorte”. (Também não era assim que o José findava as suas mensagens.) Há de tudo, e este é mais um terreno para infinitas criações.
Há quem termine com votos de isto, aquilo e aqueloutro. (E há quem “deseje votos”.) O José não.
Conheço quem nunca escreva, antes de assinar, nada senão: “Obrigado.” Mais nada. Sempre. Alguma espécie de pudor, comenta quem o conhece. Mas o José tinha uma fórmula só sua.
Educado, culto, sensível, homem das belas-letras, o José, por paradoxal que possa parecer, escrevia sempre no final das cartas e mensagens: “Força na verga!”
Nunca cheguei a saber se era metafórico ou literal. Ou as duas coisas. Tão-pouco cheguei a saber se enviava essas três palavras a pessoas do género feminino. Garantiram-me, faz poucos meses, que os filhos mantêm (felizmente!) a tradição do pai.
A sobredosagem mediática (ou a distopia mediática) do medo e da incerteza em quase dois anos de pandemia e de endemia, os números, os números, os números, a incerteza, os confinamentos, as restrições, a profusão de regras que já ninguém conseguia acompanhar ou perceber, os incessantes especialistas a toda a hora; a subsequente sobredosagem mediática da guerra, do sofrimento, do horror, do horror (olá, Conrad); tudo isso desaguou numa desvitalização generalizada; de modo que as três palavras do José me parecem um bom tónico, um robustecimento do sistema imunitário.
E está na altura de terminar este texto.
Força na verga!
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Manuel Matos Monteiro, publicado no “site” www.publico.pt em 22.03.22. “Links” (a verde) e destaques meus. Imagem/citação de George Carlin de: grupo “Laughing is disbelief” (Facebook).]