Olh’à desinformação fresquinha, ó: «Faz sentido dizer português de Portugal e português do Brasil ou português de Angola?»
Bom. Perguntar não ofende, certo? Certo. E responder também não.
Claro que faz todo o sentido! A gramática — ortografia, sintaxe e morfologia — do Português de Angola é a mesma do Português de Portugal (e de Moçambique e de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe e de Timor-Leste e até de Macau ou Goa). As diferenças — que o não são de facto — limitam-se a entradas lexicais, dicionarizadas ou não, em consonância com a identidade nacional representativa dos povos que integram as diversas ex-colónias portuguesas nos continentes africano e asiático. Esta realidade comprovável contrasta flagrantemente com a ligeireza da língua nacional “adotada” — apenas tendo como base primeva o Português — pelo meio-continente brasileiro, a metade Leste da América-do-Sul, grosso modo.
Tentar criar uma espécie de analogia por arrombamento entre duas realidades diametralmente opostas é não apenas intelectualmente desonesto como, atalhando argumentos e simplificando adjectivações, tentar promover a verdade incontestável uma patranha do tamanho do planeta Júpiter. Não será por alguém usar um pé-de-cabra mental, no caso através de uma comparação absurda (porque não existe qualquer semelhança entre o Português de Portugal e Angola, por um lado, e a língua brasileira, por outro), que alguém com um mínimo de tino irá conceder o mais ínfimo crédito à “tese” imperialista. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ponto final. Parágrafo.
Daí a relevância — para variar — da conclusão que o próprio arguido pelo arrombamento formula com inusitada e contra ele mesmo irónica precisão: «As denominações não são neutras nem neutrais (ainda que podem acabar neutralizadas), indicam interesses.» Oh, sim, sim! Ah, pois são, pois são, pois indicam, indicam mesmo!
E resulta claro como água quais são esses interesses, e de quem, e para quê ou porquê. Basta atender à baralhação das designações e também ao efeito retórico pretendido com a operação algébrico-cavernícola: de uma raiz quadrada de um quadrado a multiplicar por um factorial de zero pretende-se extrair a fórmula química da pedra filosofal. Para pendurar ao pescoço, presumo.
E ainda, mais reconhece o próprio, não deixando de continuar a surpreender pela franqueza: «dependerá da capacidade de imposição e de aceitação das/os agentes que nele actuem».
Humilde raciocínio do qual sai com alguma elegância, se bem que também com brutalidade, usando desta vez a técnica bélica da rajada: «o grave é funcionar com a crença de sentir-se donos da língua. Grave, grave é andar “traduzindo” de Portugal para o Brasil e vice-versa. “Traduzem” do português para o português: vergonha para as políticas da língua. É tudo irresponsável para alguns ganharem à custa deste despropósito.»
Não é fantástico? Exactamente! Na mouche! É isso mesmo o que sempre se fez, continua a fazer-se e no futuro se fará, por mais “língua universau” que nos tentem impingir. Bom, se calhar é melhor nem comentar os balázios do indivíduo, à uma para não tirar lustro aos tirinhos, às duas porque sim, quem se atravessar cai logo, varado, lá diz o povo, é cada tiro, cada melro. “Donos da língua”, pim. “É tudo irresponsável”, pam. “Alguns”, pum. Ou seja, ele e os seus compinchas portugueses e brasileiros.
Todo o textículo é de facto um monumento. Esmiuçado seria porventura menos impressionante, estou em crer, (por exemplo, aquela outra relação de causa e efeito em “por causa da internet” é de uma comicidade inimitável) mas já sabemos que os ataques de riso podem ter consequências graves para a saúde, a coisa pode até matar, veja-se o que faz o óxido nitroso, e por conseguinte será decerto melhor deixar a deglutição da pastilha para o venerável leitor. Que não deverá, caso escape ao acesso de gargalhadas, assustar-se com as enormidades sortidas (claro, a rapsódia habitual, a da “Pharmacia”, tinha de constar, como sempre, ele o Inglês e o Francês são línguas muito atrasadinhas, coitadinhas) que o depoente galego vai espalhando, como quem atira pérolas a porcos, toma lá, Reco, atão vá, Miss Piggy.
Não é o remate dele mas eu cá, com o devido respeito, por aqui me fico: «a sobreposição do espanhol é esmagadora.» Como o brasileiro, portanto. Questão de números.
Como se a Língua fosse uma contagem de cabeças de gado: se as reses forem muitas, é uma manada; se forem poucas são descartáveis, matadouro com elas.
Cuidado, cowboy. As vacas investem tanto como os bois. Empurrados para um canto, cercados, tanto o boi como a vaca marram. E marram bem.
″Grave, grave é andar ‘traduzindo’ de Portugal para o Brasil e vice-versa″
www.dn.pt, 17 Maio 2022
Leonídio Paulo Ferreira
[legenda de foto] Palestra de Elias Feijó integra ciclo “Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento”, organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa.
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Faz sentido dizer português de Portugal e português do Brasil ou português de Angola? Não pode caminhar o português para ter cada vez mais variantes nacionais mas ao mesmo tempo, por causa da internet, assistir a certa padronização?
O seu sentido é identificar se há variantes que sejam úteis para alguma cousa. A algumas pessoas podem ser úteis para diferenciar-se ou afastar-se e mesmo podem acabar falando de brasileiro ou angolano. As denominações não são neutras nem neutrais (ainda que podem acabar neutralizadas), indicam interesses. O relevante é que todas as variantes se sintam incluídas no termo e no conceito “português”. A internet pode fomentar certa extensão de usos comuns, como também pode fazer aflorar variantes; dependerá da capacidade de imposição e de aceitação das/os agentes que nele actuem. O importante é não ter medo aos fluxos da língua nem às pessoas e comunidades que a usam. Há suficientes elementos, organizacionais e institucionais, que garantem a sua unidade. A partir de aí, a língua são oceanos onde toda a gente deve sentir o prazer de navegar. Sem patrões! Atenção: sem donos!
A polémica sobre o Acordo Ortográfico faz sentido para si? O Diário de Notícias, que tem mais de século e meio, já seguiu vários acordos. Nas edições mais antigas, por exemplo, existe “Pharmacia”.
Pois é! E, mesmo assim, com uma ortografia bem distante e, em caso, caótica, como é sabido, a intelectualidade galeguista dos século XIX e XX, de Manuel Murguia a Daniel Castelao, reconhecia nela a unidade linguística! Cito um provérbio da minha terra: “melhor um mal acordo que um bom preito“. Eu, galego, numa situação sociolinguística tão precária para o galego, nome que dou à língua que no mundo se conhece como português e, por razão do ofício, um pouco conhecedor do mundo de língua portuguesa, não entro já a discutir as soluções propostas nem, mesmo, as ambiguidades. Quero acordos. Num par de gerações, ninguém se irá lembrar disto; o grave é funcionar com a crença de sentir-se donos da língua. Grave, grave é andar “traduzindo” de Portugal para o Brasil e vice-versa. “Traduzem” do português para o português: vergonha para as políticas da língua. É tudo irresponsável para alguns ganharem à custa deste despropósito.
Até que ponto português e galego são a mesma língua ou já duas línguas diferentes?