Dia: 14 de Julho, 2022

Uns grelhados e outros assados

«Ana Cristina Leonardo estudou Filosofia. Há muito ligada à edição e jornalismo, trabalhou na Assírio & Alvim e em diversos jornais e revistas. Mantém actualmente uma crónica no Expresso. Publicou em 2008 o livro infantil, ilustrado por Álvaro Rosendo, «Joaninha, a Menina que não Queria Ser Gente» e, em 2018, o romance «O Centro do Mundo». Tem três filhas e dois netos e vive no Algarve com dois cães.» [“Wook”]

Do encanto de uma galinha assada

Ana Cristina Leonardo

“Público” (suplemento “Ipsilon”), 08.07.22

 

 

Cinquenta e quatro anos após a morte de Manuel Bandeira — um reconhecido poeta maior do Modernismo brasileiro — Portugal é o convidado de honra da 26.ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, a decorrer naquela cidade entre 2 e 10 de Julho.

Na informação oficial publicada no site do Instituto Camões, organismo criado em 1992 para a defesa e divulgação da língua e da cultura portuguesas a funcionar sob a alçada do Ministério dos Negócios Estrangeiros — e talvez nesse vínculo administrativo se encontre a explicação para a tenência de aço com que o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, o licenciado em economia Augusto Santos Silva, defendia o Acordo Ortográfico que só seria alterado por cima do seu cadáver, salvo seja… — pode ler-se que a comitiva integra “21 autores de Portugal, de Países Africanos de Língua Portuguesa e de Timor-Leste” a que “irão juntar-se dois renomados ‘chefs’, Vitor Sobral (sic) e André Magalhães”.

Não nos passando pela cabeça que a cultura — nomeadamente a literária — não seja para comer, ainda assim nos espantamos pelo destaque dado aos dois cozinheiros, mesmo se renomados. Afinal, tratando-se de um acontecimento ligado à edição e não a tachos e frigideiras, seria legítimo esperar que o acento fosse posto no nome dos escritores (e já agora em Vítor…) ou, pelo menos, que a lista dos participantes se apresentasse completa: ou há moral, ou comem todos!

Nada a obstar à relação entre estômago e literatura, binómio há muito ilustrado com excelência nos livros do crítico camiliano José Quitério, uma referência de estalo para todos os que nasceram antes da invenção dos pastéis de bacalhau com queijo da Serra ou da exportação dos pastéis de nata para o mundo. Podia referir ainda, provando que nada me move contra a arte da mesa, o hilariante ‘Cabeça, Coração, Estômago’ (Camilo Castelo Branco, Alêtheia, 2016). E há também, claro, aquele panfleto de JulienGracq, adequadamente chamado ‘A Literatura no Estômago’ (Assírio & Alvim, apresentação e tradução de Ernesto Sampaio, 1987) mas aí a salada é outra.

Sem abandonar o tema, é de toda a justiça juntar ao rolo corajoso texto do crítico António Guerreiro, publicado a 9 de Abril de 2011 no semanário Expresso (‘Retrato do Escritor Enquanto Saltimbanco’), a propósito “da edição desse ano do Festival Literário da Madeira, onde se punha em evidência o formidável convívio entre a ‘grande bouffe’ e “a pura substância espiritual” que moveria os promotores do encontro.

Não só de ‘chefs’ nos fala o Instituto Camões. Fica-se igualmente a saber que um dos objectivos essenciais da nossa participação é “promover Portugal como destino de múltiplas experiências de turismo literário”.

Supina!, pensei eu, já a imaginar ‘charters’ de turistas literários a quererem reservar o quarto do Largo do Carmo onde Fernando Pessoa viveu no princípio do século XX (disponível no Airbnb a preços razoáveis). Não será o mesmo do que dormir na cama do poeta na rua Coelho da Rocha, mas esse foi um privilégio reservado a ‘happyfew’ (se considerarmos um privilégio dormir, sob a ameaça de fantasmas, numa cama notoriamente desconfortável…).

Não me esqueci de Manuel Bandeira. Em 1930 inclui no seu livro ‘Libertinagem’ o poema ‘Poética’. Começa assim:

“Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem-comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor / Estou farto de lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo / Abaixo os puristas”

E vai por ali fora, espadeirando sem dó nem piedade:

“…Estou farto do lirismo namorador / Político / Raquítico / Sifilítico / De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.”

Para terminar com

“Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbedos / O lirismo difícil e pungente dos bêbedos / O lirismo dos clowns de Shakespeare — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”

Que diria hoje Manuel Bandeira do mote da participação portuguesa na Bienal, que, lemos no site do Instituto Camões, traz a assinatura de Valter Hugo Mãe:’ É Urgente Viver Encantado?’

Antes de mais, de onde surge o mote? De uma frase retirada ao ‘As Mais Belas Coisas do Mundo’, livro que é, e reproduzo do portal da editora: “A história de um menino que, dentro do abraço do avô, procura encontrar respostas para os mistérios do mundo. O avô, que tem ar de caçador de tesouros, revela-lhe o maior de todos para curar a tristeza e a despedida: o encanto”.

Cito o mote no seu contexto: “Eu queria ser sagaz, ter perspicácia, estar sempre inspirado. O meu avô pedia que não me desiludisse. Quem se desilude, morre por dentro. Dizia: é urgente viver encantado. O encanto é a única cura possível para a inevitável tristeza”.

Podia agora falar do meu avô que nada me pedia (eu alheada dos meandros da inspiração…), limitando-se ele prosaicamente a passar-me em silêncio nacos vermelhos de melancia sem sementes, mas para voltar a Manuel Bandeira, se o ‘É Urgente Viver Encantado’ não tresanda a “lirismo bem-comportado” que se abata sobre mim uma praga de Alvor e, para quem não conhece, em comparação com as pragas de Alvor, Putin é um copinho-de-leite.

Pergunto: a que ponto chegou a infantilização (ou o aparvalhamento) dos espíritos para que lirismo tão pateticamente raquítico pudesse ser escolhido para mote de um pais com séculos de idade suficientes para ter juízo? E que dizer dos rodriguinhos linguísticos, do tom moralizador, da escrita inspiracional?
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