Dia: 15 de Julho, 2022

O ‘regime do deixa andar’ [José Carlos Barros]

«José Carlos Barros (Boticas, 1963) é licenciado em Arquitectura Paisagista pela Universidade de Évora e vive no Algarve, em Vila Nova de Cacela. A sua actividade profissional tem sido exercida nos domínios do ordenamento do território e da conservação da natureza. Foi director do Parque Natural da Ria Formosa. É autor, entre outros, dos livros de poesia Uma Abstracção Inútil, Todos os Náufragos, Teoria do Esquecimento, Pequenas Depressões (com Otília Monteiro Fernandes) e As Leis do Povoamento (editado também em castelhano). Com Sete Epígonos de Tebas venceu o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2009. Em 2003 estreou-se na prosa com O Dia em Que o Mar Desapareceu. Venceu vários prémios literários (com destaque para o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, que lhe foi atribuído duas vezes) e os seus textos poéticos estão publicados em vários países. O Prazer e o Tédio foi o seu primeiro romance, seguido de Um Amigo Para o Inverno (Casa das Letras, 2013), com o qual foi finalista do Prémio LeYa em 2012. Os seus livros mais recentes (poesia) são os seguintes: O Uso dos Venenos, ed. Língua Morta (2ª edição, 2018), A Educação das Crianças, ed. Do Lado Esquerdo Editora, 2020, Estação – Os Poemas do DN Jovem, 1984-1989, ed. On y Va, 2020, e Penélope Escreve a Ulisses, Edições Caixa Alta, 2021.» [Wook]

 

Esta entrevista do arquitecto, ex-deputado e escritor José Carlos Barros mereceria talvez algumas observações, mas qualquer delas iria decerto dispersar atenções, desviando o enfoque do essencial.

Em traços gerais, as respostas — numa conversa amena, aliás muito bem conduzida — pintam um quadro que, a traço grosso mas a cores, transmitem uma ideia genérica da “paisagem” acordista, num enquadramento em versão bucólica e por isso paradoxalmente assustador, com algum gado vacum e muita carneirada pastando em descanso sob o olhar vigilante de alguns ciosos pastores.

Convirá recordar que o entrevistado foi, em 2017, o deputado relator do Grupo de Trabalho parlamentar para a avaliação do “Impato” do AO90 (por extenso, “Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, de sua graça)[ver Nota, em baixo].

Como diz? Contradição? Bem, com certeza que sim… mas se calhar não. Isto das ralações parlamentares é assim, complicado mas pouco, difícil mas não muito, ao fim e ao cabo trata-se de saber quem diz o quê, se o que diz é “na condição de” deputado ou “enquanto” cidadão e quando e por quem será decidido que afinal a posição final já não é a inicial, muito pelo contrário, vem de trás para a frente e vice-versa.

Para se entender o que pensam ao certo os que “andam na” política, todos eles deveriam ser forçados — como acontece nos filmes — a pendurar ao pescoço um cartaz com os dizeres “qualquer semelhança entre o que eu penso e o que o Partido manda é mera coincidência”.

José Carlos Barros:

“Esta asneirada do acordo ortográfico é uma metáfora da degeneração da nossa sociedade”

Diogo Vaz Pinto
11/07/2022
ionline.sapo.pt

Os leitores de poesia já se haviam deparado há muito com os inventários afectivos e a subtil ironia de José Carlos Barros. Mas depois de ter já sido finalista do Prémio Leya, com o terceiro romance, aquele cuja escrita se arrastou por uma década, conquistou o prémio e então… o quê? Logo se verá.

Já o chinfrim amainou, e deram por si esgotadas aquelas semanas mais intensas, publicitárias, depois do anúncio do Prémio Leya, resta agora ver de que modo assenta o pó depois desse pequeno pé de vento, sendo este o mais cobiçado pelo valor, pelo pequeno buzinão que se segue, isto quando há muito a literatura por si só não alimenta já grandes farras. A glória literária vive de ninharias e é o passatempo de uns tantos que não se cansam de jogar a feijões e uma ocupação de uns poucos demagogos do mistério, que se devotam a umas aleivosias de feira em feira, improvisando umas patetices choramingonas para essa gente que aparece a fingir de povo. Isto não diminui o empenho daqueles que ainda se esmeram e dão anos da sua vida, tantas horas para superar alguns emperros de ofício, esses que não se encostam ao tal do ‘dom’ mas se esfalfam para encontrar as suas páginas levando a cabo esse esforço de sondagem e conhecimento mágico da realidade, não passando ao lado nem por cima das agruras, dos aspectos mais rudes e esgotantes do quotidiano. Transmontano, nascido em Boticas, e vivendo há vários anos no Algarve, José Carlos Barros foi vereador municipal e ainda deputado na Assembleia da República (2015-2019). Tem-se mantido fiel ao mundo de que sempre foi íntimo, trazendo notícias tantas vezes miúdas, como uma chuva que preferisse a sua avara e honesta melodia a inventar às três pancadas uns vendavais ou tempestades muito postiças. Seja nos poemas que escreve desde a adolescência seja nos romances a que se abalançou já maduro, prefere dizer-nos as coisas claramente, apresentar-nos paisagens de punhos cerrados contra ídolos de pó, do que vir-nos com galanteios de sonhos parvos. Durante o mandato na assembleia, bateu-se como pode contra ‘o silêncio antidemocrático’ com que nos fazem engolir certas aberrações como este novo acordo ortográfico e tem sido sempre uma voz crítica da forma como se tem esquecido o interior do país e se marginalizou a riquíssima cultura das populações rurais. O romance que lhe valeu o Prémio Leya – As Pessoas Invisíveis – procede, de resto, a um ajuste de contas com um obscuro e sujo episódio do período colonial, mas também com esta mentalidade do deixa andar, este alheamento e até receio de enfrentar o passado, isto num país onde persistem as mofentas lérias sobre a grandeza dos nossos feitos, e em que aqueles que nos exaltam a identidade vêm sempre com aranhas na boca já a dobarem a História.

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