Com o aproximar do dia 7 de Setembro, também conhecido pelos brasileiros como “Dia da Independência do Brasil”, “Sete de setembro[sic]” e “Dia da Pátria”, movimentam-se cada vez mais e com maior intensidade as forças políticas que também do lado de cá apoiam uma das facções em confronto no “gigante” sul-americano.
Apesar de todas as “notícias” sobre o assunto e os artigos de “opinião” ou de pura propaganda a pretexto da data serem, por conseguinte, do mais puro e duro viés político-partidário, jamais atendendo a qualquer tipo de relato histórico com um mínimo de rigor, ainda assim podemos tentar filtrar, de entre o emaranhado palavroso-propagandístico eivado de insultos a Portugal, alguns dados soltos com interesse para o entendimento cabal daquilo que se vai passando em Portugal em benefício dos interesses do Brasil.
A forma politicamente vesga e sociologicamente cavernícola como a nomenklatura tuga trata (d)os assuntos brasileiros reflecte-se claramente na inacreditável sucessão — em quantidade, extensão e número de envolvidos — de peças “jornalísticas” sobre a data em que, segundo não rezam as crónicas mas muito repetem alguns nas suas, Portugal deixou de “explorar” os brasileiros, de “roubar” o ouro “deles” e de cometer genocídio (!!!) sobre os povos indígenas lá dos sertões e das florestas amazónicas.
Estribados numa pretensa superioridade do Brasil e dos brasileiros em relação ao “colonizador explorador e torcionário”, essa alucinação rapidamente resvalou ainda mais para baixo, para uma forma de desprezo pelas reais origens daquele país, para a hostilização sistemática dos portugueses em geral e para uma verdadeira sanha persecutória quanto a tudo aquilo que mesmo se remotamente lhes cheire a “terrinha”. Este absurdo e insuportavelmente insultuoso preconceito está já estudado, se bem que mal, e dicionarizado, neste caso muito bem: lusofobia. Um tipo de racismo, portanto, como claramente denota o sufixo, um exclusivo que brasileiros dedicam a Portugal.
Tão insustentável abjecção — não apenas terminológica — é absolutamente única, no conjunto das nove ex-colónias portuguesas espalhadas pelo mundo. No entanto, nem o facto de este fenómeno ser exclusivamente brasileiro serve ao menos como atenuante ou simples motivo de reflexão para boa parte dos nossos compatriotas, em especial os políticos, os bajuladores profissionais (mais aqueles que sonham com o “mercado brasileiro” ou miragens do género), os imitadores compulsivos, os maluquinhos da bola e outros indiferenciados de nacionalidade duvidosa e carácter nenhum.
A campanha mais recente, no âmbito do rápido esganamento lusofóbico, diz respeito ao coração do Rei D. Pedro IV de Portugal, simbolicamente legado pelo próprio à cidade do Porto — não à edilidade, note-se, e muito menos ao presidente da dita –, que vai já servindo como arma de arremesso político para efeitos de promoção individual (ou de seita, por junto), no que ameaça transformar-se em mais uma telenovela brasileira ao estilo mexicano, ou seja, com milhares de episódios cuja finalidade única é ir entretendo o pagode.
Parece já certo, porém, porque assim decidiram uns fulanos quaisquer, que depois de tronco e membros também o músculo cardíaco do antigo Imperador português do Brasil andará em bolandas de cá para lá e, assim esperemos com fervor, igualmente de volta, de lá para cá. Pobre coração, pobre Rei aquele, que nem depois de morto vai para dois séculos tem paz e sossego. Ao que parece, tão intensos são os apetites necrófilos — os pátrios e os importados –, o lapidar Requiescat In Pace (RIP) não se aplica a D. Pedro; por aí anda ele aos pedaços (ou pedaços dele), contrariando a máxima popular “quem lhe comeu a carne que lhe roa os ossos”, já que no seu caso a ordem dos factores está invertida, foram primeiro os ossos.
Sobre esta espécie de tortura necro-histórica estão abaixo transcritos dois textos basto ilustrativos (se bem que pouco ou nada ilustres).
O primeiro, muito curto, é um simples “postal” da agência Brasilusa dando aparentemente conta dos planos já determinados e em curso, incluindo o facto de estar planeado o transporte do órgão a bordo de uma aeronave da Força Aérea Brasileira. Não sendo especialista em questões protocolares — a começar pelas dúvidas sobre o total ineditismo deste tipo de ida-e-volta — parece-me, no entanto, perfeitamente legítimo duvidar de que seja assim tão usual uma unidade militar estrangeira, fora do seu próprio território, zona marítima ou espaço aéreo, recolher património nacional de um país independente no território deste. A Força Aérea Portuguesa não tem aviões? Essa manobra da FAB não poderia ser encarada como provocação pela FAP, por exemplo?
O segundo texto, da mesma agência Brasilusa (porque será?), apesar de extenso, merece algum “investimento” em tempo e sobretudo em paciência. Ambos os investimentos serão com certeza recompensados, tal é a quantidade de alçapões partidários e de tal forma é evidente o monolitismo político, sempre monotonamente estrábico, de que dão bastas mostras os seleccionados — segundo os mesmos critérios zarolhos — para depor a sua fé inquebrantável nos méritos do impecável Lula, esse ilustre doutorado pela Universidade de Coimbra. Embora a dita selecção tenha liminar e consequentemente excluído o outro candidato que também pretende alojamento gratuito no Palácio da Alvorada, na capital brasileira, ficamos cientes — como se interessasse para alguma coisa o caldo político brasileiro, as suas caldeiradas, peixeiradas e outros cozinhados — de que afinal o coração de D. Pedro IV de Portugal irá servir no Brasil como acepipe da comezaina: ganhe quem ganhar o “aluguéu”, bem poderiam as “autoridades” portuguesas ao menos ter o cuidado de que Portugal não se imiscua nos assuntos internos brasileiros ou não se embarace nos problemas intestinos lá do “pedaço”.
Ainda que sejam curiais alguns itens do argumentário contra a transladação, as pessoas que os apresentam ralam-se tanto com o órgão como com a memória daquele monarca em particular ou, de resto, com a verdade histórica da colonização portuguesa do Brasil. Ou com a verdade tout court.
Entre os anos de 1500 e 1822, segundo a versão comummente pregada (e ensinada) naquele “país-continente”, os portugueses apenas destruíram e saquearam, não fizeram mais do que escravizar o “povo”, chegando mesmo à terminal fase de “genocídio” ao estilo nazi.
É-nos sistematicamente impingida a narrativa do horrível “pecado original” cometido por Pedro Álvares Cabral, dos 300 anos sob o feroz jugo de reis sanguinários, D. João IV, D. Afonso VI, D. Pedro II, D. João V, D. José, D. Maria I, D. João VI, da “opressão” selvaticamente imposta por uns quantos “estúpidos” e “atrasados”, como, por exemplo, Pero Vaz de Caminha, o padre António Vieira ou Bartolomeu de Gusmão. Por todos estes pecados capitais estamos nós outros, portugueses, para a eternidade condenados a arder nas chamas do Inferno.
E muito caladinhos, porque se não…
Coração de D. Pedro exposto no Porto antes de ser transladado para o Brasil
Autarquia e Irmandade da Lapa acordaram mostrá-lo na Igreja da Lapa nos dias 20 e 21 de Agosto, em horário ainda a determinar.
“Público”/Lusa, 28 de Julho de 2022
O coração de D. Pedro vai estar em exposição na Igreja da Lapa, no Porto, antes da sua transladação para o Brasil, a 21 de Agosto, no âmbito das comemorações do bicentenário da independência, adiantou esta quinta-feira a autarquia.
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