De vez em quando, lá salta mais um coelho da cartola acordista. A este tipo de lagomorfo, porém, já que é uma achega por escrito ao organismo geneticamente modificado em 1990, deveria ser atribuída uma nova classificação taxonómica: talvez Leporidae Brasiliensis, ou algo assim.
O truque é simples, pelo menos para quem não se distrair durante o número. Não seria curial, porém, desfazer o “mistério”. Pelo menos no imaginário das criancinhas a coisa talvez pegue como sendo verdadeira “magia”, portanto não as desiludamos, deixemo-las ficar em sossego com as suas crenças, o coelhinho branco, o Pai Natal, o João Ratão, as histórias da Carochinha.
Admitir que um artigo em que se contesta o AO90 seja publicado com a cacografia do AO90 não é apenas um paradoxo, é inerentemente uma manifestação de apoio àquilo que pretensamente se contesta. Quem assina um texto não tem de obedecer a qualquer espécie de ditame ou sequer de “orientação” sobre o conteúdo que expressa e sobre a forma que usa para se expressar; chama-se a isso “direitos de autor” — que nem o “acordo” cacográfico pode revogar nem o Estado pode sequer tentar limitar ou condicionar seja de que forma for.
O título é um anzol. Ou seja, na maior parte das vezes serve para pouco mais do que dar banho à minhoca; principalmente para quem não pesca nada de pesca (ou de ortografia ou de Gramática).
No caso, é todo um programa. Que denota óbvias intenções subjacentes. “Em bom português”? O que significa “bom”? Ou é Português ou não é Português. “Bom” (ou mau ou assim-assim) é um juízo valorativo que poderá, quando muito, ser aplicável a formas criativas ou artísticas de escrita. E se o leitor “tem a certeza” de que sabe escrever, ainda por cima?! Bem, não deve ser preciso fazer um desenho, teme-se o pior, venha de lá o miolo.
São apontados alguns factos que ilustram a vigarice e dois autores que a contestam — cada qual a seu modo, um deles benzito, o outro malmalmal –, além de alguns exemplos de “erros flagrantes” e de “contradições” no articulado da dita vigarice. Pois sim. Mas não.
Não é decisivo que Angola e Moçambique não tenham ratificado o AO90. Se o tivessem feito ou se o fizerem — longe vá o agoiro –, então a vigarice deixaria de o ser?
Não é significativo sequer, porque apenas circula em alguns círculos restritos e para os mesmos — isto é, para consumo interno — e porque enquanto um dos ditos autores ainda tenta discutir com alguma carga de bom senso (como se os acordistas admitissem discutir a língua brasileira), o outro atira-se freneticamente a uma pretensa questão jurídica tão absurda quanto inexistente.
Não tiveram qualquer seguimento as intenções manifestadas por responsáveis do Governo brasileiro. Realmente, a desvinculação unilateral chegou a ser “garantida” por um colaborador próximo da Presidência daquele país mas, ao que parece, bem depressa o Governo local se terá apercebido de que estariam nesse caso a atirar largos milhares de milhões borda fora. Bom, pode ter sido por isso (um telefonemazinho de Portugal deverá ter bastado) mas também pode ter sido por causa de alguma substância ilícita consumida a desoras, por exemplo, ou sabe-se lá bem o que mais se poderia especular a respeito de semelhantes entradas de leão e saídas de sendeiro.
Não será certamente por via de “correcções” ou “melhorias” (“despiorar”, como há quem diga) que o AO90 passará a ser minimamente aceitável. Como é possível aceitar ou conceber sequer uma “revisão” de questões atinentes à ortografia da Língua Portuguesa num documento de cariz estritamente político? Quanto a ortografia propriamente dita, o AO90 apenas tem o seguinte
Artigo único
Em Portugal e PALOP passa a vigorar a forma de escrever em uso no Brasil, consistindo esta na transcrição fonética (utilizando o alfabeto latino, não os símbolos respectivos) do falar “culto” brasileiro.
Mas alguém ainda acredita noutra coisa? Achará este autor que feitas essas tais “melhorias” e “correcções” — o que na prática equivaleria a “recuperar” as “consoantes mudas” que os brasileiros articulam — o AO90 passaria a estar nos conformes? Que aquilo passaria, como que por artes mágicas, a ser de repente “ortográfico”, já não político, e portanto já não repugnante? Ou ficaria só “um bocadinho” repugnante?
Voltamos ao início, portanto. Truques de magia, coelhos da cartola, histórias da Carochinha.
Mas nem sempre em espectáculos de ilusionismo a assistência é constituída exclusivamente por crianças. Será esse o problema?
Tem a certeza que sabe escrever em bom português?
Pedro Dias de Almeida – jornalista
Há uma regra infalível para escrever e falar bem em Português? A Língua Portuguesa está de boa saúde e recomenda-se? Usamos cada vez menos palavras? Consegue evitar todas as armadilhas da nossa rica língua? Num momento em que há uma procura crescente de livros sobre a história da nossa língua e as suas regras, ensaiamos, com a ajuda de especialistas, respostas a estas e a outras perguntas sobre o Português que falamos e escrevemos
Desde o momento em que, ainda bebés, passamos a relacionar-nos com o mundo à nossa volta através de palavras, vivemos na nossa língua (ou em várias) como na atmosfera ou como os peixes vivem no oceano. É algo sempre presente, mesmo se estivermos calados, mesmo se não quisermos, por um minuto que seja, pensar no assunto… mas a verdade é que queremos, muitas vezes. A língua – sotaques, escolhas de palavras, correcções e incorrecções, respeitos e desrespeitos… – pode ser tema de longas conversas e de acaloradas discussões em que ninguém detém toda a razão. Há perguntas para as quais nunca se encontra a resposta exacta.
Comecemos por esta: o que é escrever bem? Logo a abrir o seu livro Por Amor à Língua, Manuel Monteiro, que, depois de se formar em Economia e Jornalismo, se foi especializando nas questões da Língua Portuguesa e de revisão de textos, põe as coisas desta forma: “Ao fim de muitas páginas lidas acerca da arte de escrever, concluir-se-á que é muito mais fácil definir os critérios que permitem identificar a má escrita do que aqueles que permitem identificar a boa escrita.” Como tudo o que é humano, demasiado humano, essa definição depende de vários factores e percepções. Se “escrever bem” fosse, apenas, uma questão técnica, a Inteligência Artificial e a ciência avançada dos algoritmos já teriam atingido o pináculo, inquestionável, da boa escrita.
Passaram já quase 32 anos desde o dia em que, em Lisboa, se assinou o AO90, então também chamado “ortografia unificada da língua portuguesa”.
O tempo suficiente para percebermos que algo correu mal no caminho…