A vitimização como arma política – 3

Vergonha alheia

Não é, de facto, nada fácil tropeçar num qualquer discurso de ódio ou esbarrar num qualquer indivíduo que manifesta com toda a clareza o seu insuportável, asqueroso racismo.

É o mais do que flagrante caso do texto e da autora do panfleto que seguidamente se transcreve, adiantando desde já os inerentes pedidos de desculpa a quem tal coisa ler, porque trata-se efectivamente de (mais) um manifesto de pura lusofobia, mas desta vez sem qualquer espécie de filtro nem réstia de civilidade ou sequer um módico de educação. “Vergonha alheia” é uma locução do Português cuja definição não foi ainda fixada (ou “atestada”), mas que encontra na escrevinhatura desta Mariana plena explicação (semântica, apenas), através da multiplicidade de exemplos ilustrativos, as vagamente imaginativas formulações ressumando raiva, os dichotes tão cuspilhados quanto disparatados.

Curiosamente, e quanto a este particular seria necessário despacho de um verdadeiro especialista em Psiquiatria clínica, a paciente para a qual não há paciência nenhuma tece esta espantosa consideração (faz de conta que é uma “consideração”):

«O poder das palavras ainda é subestimado por muitos de nós, mas, historicamente, as palavras têm sido uma estratégia bastante eficaz para normalizar estereótipos e discursos de ódio destinados a determinados grupos de pessoas, e também para banalizar processos de exploração que foram projectos de Estado.»

E este pedaço, que bem poderia ter sido escrito por qualquer anti-acordista ou por qualquer pessoa a quem ao menos incomode um pouco o processo de aculturação em curso, surge no meio de um chorrilho de insultos à “terrinha”, de enxovalho à memória dos maiores (e também a dos mais pequenos) da nossa História, de ataque indiscriminado — já não apenas à Língua Portuguesa mas também — à nossa identidade colectiva. Tudo servido no costumeiro tom pseudo-lamuriento, por entre um murmúrio raivoso cheio de epítetos canalhas e “fatos” inventados, mas como de costume tentando fazer passar a ideia peregrina de que existe em Portugal contra os imigrantes brasileiros algo parecido com o que no Brasil é há séculos prática corrente em relação aos que lá estão e, por arrastamento, aos portugueses que (por sorte?) ficaram no seu próprio país. A vitimização brasileiresca, cada vez mais intensa e persistente, sempre contando com bajuladores, mercenários e vendidos tugas, ameaça já tornar-se na única face visível — ou seja, na máscara preferencial — do plano de linguicídio e extermínio cultural.

Por conseguinte, e mesmo quem não dispõe de licença passada pela Ordem dos Médicos poderá diagnosticar facilmente o caso, estamos perante uma manifestação mais do que evidente do conhecidíssimo fenómeno de “projecção”, o qual fenómeno ou a qual projecção — não sendo de todo suficientes per se para sustentar um diagnóstico minimamente credível — costuma indiciar um quadro clínico bastante “difícil”, digamos assim, que a prudência da seriedade e o recato do sentido cívico recomendam máxima discrição.

Não deve em circunstância alguma passar incólume nem esta nem qualquer outra manifestação de ódio, de xenofobia de sentido único, isto é, de lusofobia feroz (passe a redundância), de raiva alucinada contra Portugal e os portugueses. Mesmo tratando-se de um case study, algo mais calhado para profissionais de bata branca, que não seja por abstenção ou indiferença (que alguns “pacifistas” fingem ser menosprezo), que não seja pela cobardia instituída (sistemática ou esporádica, tanto faz), enfim, que não seja por falta de vergonha na cara — ao menos isso — que falte a quem escarra no nosso país uma resposta adequada… como, pelo menos, devolver aos remetentes os seus insultos. Caso alguém mais exótico pretenda adornar a devolução com um presente, então poderá embrulhar um colete-de-forças com as seguintes instruções: “depois de enfiar os braços nas mangas, peça a alguém que lhe aperte os lacinhos das costas; mas com força“.

Sentir vergonha alheia é o mínimo dos mínimos. Quem nem isso, como sabe qualquer garoto com a 4.ª Classe, não é preciso o juramento de Hipócrates ou de resto qualquer canudo, então não tem vergonha na cara. Nenhuma.

“Recorte” de entrada wikipédjia lusôfuna traduzida automaticamente para Português.

 

Os brasileiros estão invadindo Portugal?

Quando as pessoas falam em invasão, esquecem que para conseguir “invadir” Portugal, os brasileiros precisam de um passaporte válido, de uma passagem aérea. Precisamos de ter uma justificação para estar cá e precisamos de ser aprovados por oficiais da imigração, muito bem-dispostos.


Imigrante há cinco anos, mestre em Psicologia Clínica. Trabalha com mulheres imigrantes em diversos países. Idealizadora do projecto ‘Brasileiras Não Se Calam’.

“Público”, 8 de Agosto de 2022

Sair à rua em Portugal e não ouvir os sotaques brasileiros tem-se tornado cada vez mais raro. Quando não escuto brasileiros conversando, escuto Caetano e Silva em cafés tradicionalmente portugueses, escuto Anitta nas rádios e discotecas, Ivete Sangalo e maracatu no Carnaval, existem encontros nas principais cidades do país para dançar forró e, noutro dia, fui assistir a um espectáculo de uma amiga portuguesa e dançaram o nosso samba e, pasmem, dançaram até CPM 22. Também estamos cada vez mais presentes na culinária: tapioca, pão de queijo, feijoada, farofa, e, claro, brigadeiro. Sem falar da nossa caipirinha, mundialmente conhecida e que também está presente nos bares por aqui.

Os nossos artigos e livros brasileiros, ou que foram traduzidos para o português do Brasil, estão nas listas de indicações de professores nas universidades e estão à venda nas livrarias. Os nossos filmes, novelas, séries e, actualmente, os vídeos de youtuberse ‘tiktokers’ (para o desespero de alguns pais portugueses) também têm bastante audiência. Movimentos em defesa dos nossos direitos, associações criadas por brasileiros, trabalhos académicos e livros focados nas experiências de brasileiros em Portugal também têm aumentado. No último relatório do Observatório das Migrações, relativo ao ano de 2020, havia 183.993 brasileiros residentes em Portugal e, no mês passado, recebemos quase 3 mil brasileiros por dia.

Com o aumento da presença brasileira por aqui, tenho visto também cada vez mais pessoas a dizer que estamos invadindo Portugal ou a falar em colonização reversa, mas romantizar e diminuir o que foi a colonização não é uma novidade. Aprendemos na escola que foi Portugal que descobriu o Brasil, que a miscigenação brasileira se deu de forma totalmente pacífica e não através de violações de mulheres indígenas e africanas e que os portugueses são colonizadores enquanto os africanos são escravos. O poder das palavras ainda é subestimado por muitos de nós, mas, historicamente, as palavras têm sido uma estratégia bastante eficaz para normalizar estereótipos e discursos de ódio destinados a determinados grupos de pessoas, e também para banalizar processos de exploração que foram projectos de Estado.

Quando as pessoas falam em invasão, esquecem que para conseguir “invadir” Portugal, os brasileiros precisam de um passaporte válido, de uma passagem aérea. Precisamos de ter uma justificação para estar cá e precisamos de ser aprovados por oficiais da imigração, muito bem-dispostos. Para invadir o Brasil, os “descobridores” portugueses basicamente só precisaram de desembarcar das caravelas e decidir que aquela terra, tudo que lá estava e todos que lá viviam, dali em diante, seriam deles. Não houve documentos, não houve controlo do número de pessoas que chegavam e do que iriam lá fazer. Não houve contribuição para a economia e, muito menos, foram deportados e mandados “de volta para a tua terra” só porque os indígenas acordaram com o pé esquerdo.

E como falar em colonização reversa quando o Brasil foi saqueado e sofreu genocídio durante mais de 300 anos para manter a metrópole e, actualmente, ainda somos nós que pagamos para fugir da violência de lá (uma das nossas heranças históricas, vale lembrar) para vir para cá deixar o nosso dinheiro com os hotéis, restaurantes e passeios turísticos; com as universidades, pagando propinas mais caras que os portugueses; ou com a Segurança Social, contribuindo com mais do que nos beneficiamos? Tudo isso para ainda ter que ouvir que Portugal não é nosso e que não somos bem-vindos aqui.

Falar em invasão e colonização reversa serve para criar um imaginário social onde nós somos uma ameaça aos portugueses, e não é disso que precisamos. Enquanto alguns, que se dizem nacionalistas, vão tentando apagar a realidade de que Portugal só nos recebe porque precisa de imigrantes para sobreviver e vão criando um delírio racista onde Portugal é uma grande metrópole, superior às “suas colónias” e auto-suficiente (Alô, Salazar!), tudo isso para ganhar mais popularidade e cadeiras no Parlamento, nós, imigrantes, seguimos aqui contribuindo para o país a todos os níveis.

Quando um português nos diz para “voltar para nossa terra”, esquece que se abandonarmos este barco, ele afunda. Esquece que nós até podemos “voltar para a nossa terra”, e teremos milhões de brasileiros esperando de braços abertos para nos receber, mas e vocês? Se o barco afundar, será que têm para onde voltar? Será que vão poder apagar as fronteiras e gritar, com um sorriso no rosto: ‘Hola, hermanos! Volvemos’!? Eu acho que não.

[Transcrição integral de artigo, da autoria de ,
publicado no caderno P3 do jornal “Público” de 8 de Agosto de 2022.
Destaques, sublinhados e “links” (a verde) meus. Imagem de topo de: vídeo YouTube.]


“posts” anteriores desta série
1 – Por exclusão de partes
2 – Gerundiando o estando ensinando