Retórica. Pura retórica. Fulanos como este “diretor” da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira limitam-se a tentar embelezar uma coisa muito feia — por definição, os negócios — com um palavreado que acham “muito lindinho”. Para o efeito, utilizam uma triste macaqueação daquilo que julgam ser o “estilo” das pessoas que sabem escrever. O resultado, como mais uma vez se verifica e comprova, é sumamente confrangedor.
O indivíduo, por inerência de funções enterrado até ao garruço nas negociatas da brasileirofonia (“lusofonia”, para os crentes), papagueia um estendal de loas e encómios à “terrinha” — enquanto diminui e amesquinha Portugal o mais que pode: destila mimos como «país pequeno e demasiado envelhecido» e reduz “isto” a «quadras de vôlei de praia» onde «só falam de Jorge Amado» e a «praias e ruas de Cascais» que «só declamam Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes».
A pretexto da recente viagem do miocárdio e adjacências de D. Pedro IV, este jogral pós-modernista escreve um textículo sobre o pretenso “amor” que tugas dedicam a zucas e, “portanto”, usando para o efeito a velha escola romântico-viscosa, conclui que esse “amor” está depositado ou aloja-se algures na abstracção de um coração concreto (além de ligeiramente morto). Mas que belas imagens, realmente, olha que isto sim, senhor, é d’homem: ai, o amor, o amor, ai o coração, aiai. O “amor” que, note-se, “apenas” refere por quatro vezes enquanto que o substantivo “coração” merece nada menos do que 22 (vinte e duas) menções expressas — bem, é de mestre. Realmente, num texto sobre o coração do Rei português que anda em bolandas pelos brasis, nada mais cirúrgico, verbal e estilisticamente falando, do que — por entre golpes de inatacável lógica da batata e de avassaladora paixão pela palavra — associar amor a coração à razão de 4 para 22… mais ou menos. Será essa, portanto, talvez factorial de 88, a relação algébrica formulada para demonstrar o resultado do inamovível afecto do lado de cá pelo lado de lá e da esmolinha que de lá para cá nos chegará (segundo o autor) sob a forma de algum “afeto” em troca.
Tal litania de insuportável condescendência ameaça seriamente transformar-se no paradigma daquilo a que em Português se chama vulgarmente “graxa”, quiçá merecendo inclusão nos programas curriculares das nossas prestigiadíssimas Faculdades de Letras.
Dali virão decerto a sair os encanudados que doravante se encarregarão de fazer rebrilhar as botas dos “coroné”. Porque, na verdade, graxistas brasileiros há poucos, a coisa costuma ocorrer em sentido inverso, se bem que muito raramente atingindo tal vigor na bolinação, ou seja, são tugas os maiores engraxadores dos brasileiros mas nem esses vão tão longe no descaramento.
O AO90 foi e é o exemplo mais flagrante desse primordial esfregar de calçado a fregueses brasileiros e assim ressurgiu em Portugal a profissão de lambe-botas. Há mestres desse ofício por todo o lado, em especial nas redondezas das academias, nos milieux político em geral e parlamentar em particular, nas direcções de jornais subsidiados e OCS avençados em geral.
Jamais poderia El-Rei D. Pedro IV sequer imaginar que o acto de doar em testamento o seu coração à cidade do Porto, em sinal de agradecimento pela coragem e pelo apoio que a cidade deu a ele mesmo e à causa liberal, seria usada 198 anos depois como arma de arremesso e propaganda política, primeiro, e como manobra de intoxicação da opinião pública, depois.
Viagem do coração de d. Pedro 1º é metáfora doce em momento histórico
José Manuel Diogo
“Folha de S. Paulo” (Brasil), 25 Agosto 2022
Setembro de 2022. Estamos com o coração nas mãos. Não há mais coração que aguente. Bate, coração. Aguenta, coração! O que os olhos não veem, tu não sentes. E, mesmo estando de coração partido, sempre podemos fazer das tripas coração. Vamos abri-lo, tê-lo ao pé da boca ou apenas segurá-lo em nossas mãos?
Se o amor é uma questão de coração, não há dúvida que o Brasil ama Portugal e Portugal ama de volta. Fazer viajar um coração com 224 anos de idade, sobrevoando um oceano, dentro de um frasco de vidro, para ser recebido com honras de Estado, só se justifica por amor.
É claro que vão existir clamores, maus humores e aproveitamentos políticos, mas a verdade única e indesmentível é que os dois países não estão unidos apenas pela história, eles se gostam e se amam —e comprovadamente têm o mesmo coração.
Algum outro país da América (quiçá do mundo) pediu emprestado o seu coração? Nunca. Muitas cabeças foram perdidas, em bandejas de prata, na ponta de sabres, na fúria das guerras. Mas um coração, não. Isso é amor.
Aguenta, coração. Entre o Brasil e Portugal há coração que aguente. É aquele bate, coração entre o cá e o lá. E como bate! Duzentos anos depois!Bate nos voos da TAP que ligam o Brasil a Europa e ao mundo através de Lisboa e do Porto. Bate nos consulados onde cada vez mais brasileiros procuram saber sobre como podem ter um visto para encontrar o ensino gratuito, os hospitais modernos e as ruas seguras e tranquilas de Portugal.
Bate nas quadras de vôleide praia, que em Portugal só falam de Jorge Amado — nas praias e ruas de Cascais só declamam Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes.
Bate forte, vê e sente, alegria e identidade na alta do Porto de d. Pedro, na baixa de Lisboa de Pessoa, na Sé de Braga de todos os arcebispos, da Ria de Aveiro a Veneza lusitana, no castelo de Leiria da história medieval, nas livrarias de Óbidos do José Pinho e no pátio das escolas da Universidade de Coimbra onde até o coração de José Bonifácio bateu — em Portugal, pelo Brasil.
Nenhum estranhamento, do qual alguns ainda falam, resiste à realidade linda dessa história de amor compartilhada entre o Brasil e Portugal. Nenhuma piada de “portuga” — que ainda tem muitas, nenhuma acusação de racismo — às vezes merecidas; nenhuma transliteração burocrática ou acordo ortográfico ou ignorância.
Hoje, Portugal, país pequeno e demasiado envelhecido como muitos outros na Europa, tem sobre estes uma vantagem única. Ele pode oferecer ao país irmão, jovem e vibrante, em uma doce metáfora bicentenária para sua necessidade de rejuvenescimento, um coração.
E o país gigante, maior, mais rico e em muitos fatores mais desenvolvido que o pequeno país seu ancestral, encontra nele uma oportunidade de futuro consistente, cotidiana e desejada.
Corações ao alto! Nossos corações estão com Pedro. Primeiro e quarto. Quarto e primeiro. Imperador e rei. Passado e futuro. União e paz.
O coração que nunca parte do homem que fundou o Brasil volta ao país que fez nascer 69,9 mil dias depois (de 7 de abril de 1831 a 22 de agosto de 2022). Vem de vista. São saudades de amor. Amor eterno.
José Manuel Diogo – Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos
[Transcrição integral (incluindo “links” do original) de artigo publicado no jornal brasileiro “Folha de S. Paulo” em 25 Agosto 2022. Sendo o autor brasileiro e a publicação brasileira, foi mantida a cacografia brasileira do original. “Links” internos (a verde) meus. Imagem de Christian Barnard de: “BioSpectrum“. Imagem de topo de: “Diário de Notícias“.]