«Alguns intelectuais condenam essa [acordo ortográfico ] decisão, que consideram um atentado à nossa cultura e outros referem os grandes custos que resultarão da substituição dos dicionários e livros escolares. Seria preferível ficarmos “orgulhosamente sós” com a nossa ortografia?»
Duarte Pio de Bragança, 14 de Maio de 2008
Quem porventura depositar qualquer espécie de expectativa no putativo herdeiro do trono português, bem pode esperar sentado. De facto, o dito putativo já se pronunciou quanto a soberania nacional em geral e, no âmbito desta, quanto à Língua Portuguesa em particular: factores identitários? Duarte Pio não se identifica lá muito com isso.
Devo esclarecer que desconheço olimpicamente os meandros da coisa monárquica no Portugal de hoje e, portanto, pouquíssimo ou absolutamente nada entendo de facções, movimentações e outras questões intestinas que afligem aqueles que agora formam o séquito real. Parece-me, contudo, que existirão duas facções opostas (em quê ou porquê, ao certo, lá está, não faço a menor ideia), mas aquilo que interessa é que uma das duas continua a utilizar o Português em todas as suas publicações, rejeita liminar e completamente o AO90, manifesta um claríssimo repúdio pela “língua universal” brasileira e não tem qualquer receio — ao contrário da outra facção realista e de algumas seitas republicanas — de denunciar e expor o «processo de apagamento da identidade portuguesa em curso».
Felizmente, apesar de a coragem ser um bem escasso, nos tristes tempos que correm, não é de forma alguma um exclusivo daquele “partido” monárquico. Iguais desassombro e firmeza na luta contra o esmagamento neocolonialista têm também demonstrado inúmeros indivíduos — integrados ou não em partidos políticos republicanos — e organizações das mais diversas áreas, abrangendo todos os sectores de actividade, todas as classes profissionais, em suma, todo o tecido social que nos define enquanto nação independente.
É nestes pressupostos que têm perfeito cabimento, até porque reforçam significativamente o carácter mundano e cívico da luta contra o imperialismo linguístico-cultural, as referências e conteúdos provindos de qualquer das ex-colónias portuguesas, de entre as quais, naturalmente, também o Brasil.
Como no caso da recente entrevista concedida por Dom Luiz Philippe de Orléans e Bragança, um destacado político brasileiro descendente de D. Pedro IV de Portugal (D. Pedro I do Brasil), da Casa Imperial brasileira — a qual partilha com a Casa Real portuguesa, evidentemente, além dos apelidos de linhagem as mesmas raízes familiares.
O que realça ainda mais o facto de as duas casas divergirem radical e decisivamente quanto àquilo que interessa.
[…]
Numa altura em que o país celebra, em 7 de Setembro, o bicentenário da sua independência, o pentaneto de D. Pedro I reflecte ainda sobre a importância de haver uma família fundadora no Brasil “com parte da sua história que ainda está presente e que socialmente é relevante”.
Caso contrário, as referências de origem desaparecem e o país torna-se “um país bastardo, uma população bastarda e vira-lata”, um conceito utilizado no Brasil para se referir à inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em relação ao resto do mundo.
Na opinião do deputado federal filiado ao Partido Liberal (PL), o mesmo do Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, “o brasileiro hoje tem um conceito de vira-lata e um vira-lata é um bastardo, que não tem pai nem mãe, não tem origem, qualquer história vale, qualquer narrativa política do momento vale e por isso o Brasil está sempre se reconstruindo”.Em vez de se valorizar a origem portuguesa e tudo o que Portugal representou, considera à Lusa Luiz Philippe de Orléans e Bragança, os brasileiros “destroem Portugal, destroem o português, a língua portuguesa, a cultura portuguesa”. No seu entender, ensina-se uma historiografia que tem aversão a tudo o que foi feito de positivo por parte de Portugal, uma história e uma presença que permitiram que o Brasil não se desintegrasse aquando da sua independência, em 1822.O deputado não tem dúvidas de que a unidade territorial brasileira, o quarto maior território do mundo, ao contrário do que aconteceu com as colónias espanholas na América do Sul, só foi possível devido à vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro durante as invasões napoleónicas e devido ao singular processo de independência que tem como ‘independentista’ o imperador do Brasil D. Pedro I, um membro da família real portuguesa.”Aqui na região só temos histórias patéticas de país”, considera, lembrando o México que, na sua opinião, é um Estado falido controlado pelo narcotráfico.No seu entender, o Brasil continua unificado graças à origem portuguesa e à esquadra portuguesa com o príncipe regente que aportou em Salvador, em 22 de Janeiro de 1808, para mais tarde instituir a cidade do Rio de Janeiro como capital do império português.
“Quando Portugal aporta ao Brasil era praticamente o país mais antigo da Europa, com instituições e regulamentos. Foi o primeiro império, o império que sabia gerir um império ultramarino. Não é qualquer país que consegue gerir colónias e interesses além das suas fronteiras e Portugal teve sucesso incrível durante centenas de anos“, diz.
O Brasil, que já era um vice-reino desde 1640, recorda, é em 1808 elevado a reino unido, com a mudança da capital de Lisboa para o Rio de Janeiro devido à ocupação das tropas napoleónicas em Portugal.
Com D. João VI, frisa, veio toda a corte que sabia gerir um país que teve “muito sucesso na criação de um país unificado, vastíssimo e sabia exactamente o que fazer com o erário público”.
Se não tivesse ocorrido essa vinda e se tivesse sido uma monarquia mais espalhafatosa, a gente não teria o sucesso que teve. A primeira administração foi extremamente frugal, voltada para a construção de uma nação“, considera.
Na opinião de Luiz Philippe de Orléans e Bragança, “se não fosse o conhecimento gestor da corte portuguesa não haveria Brasil” porque não teria havido “a disciplina de investir no que realmente era necessário para garantir que existiria um Governo, um centralismo, uma unificação e que haveria respeito por esse novo poder”.
[…]
[Transcrição parcial de artigo, da autoria de Miguel Mâncio (agência BrasiLusa), publicado no Diário de Notícias” em 24 Julho 2022. Cacografia brasileira do original corrigida automaticamente. Destaques e “links” meus.
Conteúdo indicado por Octávio dos Santos, a quem de novo agradeço.
Imagem de Dom Luiz Philippe de Orléans e Bragança de: “beta-redação” (Brasil). Imagem de topo extraída de vídeo YouTube.]
(…) Estamos sempre a falar da nossa identidade precisamente por termos identidade a mais. A nossa longa História nacional tem um peso enorme sobre os nossos ombros, hoje obrigados ao temor reverencial troikista. O nosso passado é de uma grandeza que nos faz sentir como pigmeus, muitas vezes deixando-nos sem saber como lidar com ele. Daí o nosso eterno retorno mental e retórico às épocas áureas do domínio português sobre mares de todo o mundo. Daí a nossa servidão voluntária quando nos pretendem impor ideias que são simplesmente páginas novas no processo de apagamento da identidade portuguesa em curso. Vem isto a propósito de dois ataques do rolo unidimensionalizador do estado, que encontra quase sempre, infelizmente, uma enorme passividade da sociedade portuguesa em relação aos ataques por ele prosseguidos.
Em primeiro lugar, o mal afamado Acordo Ortográfico. Não pretendo estender-me numa análise do género da que muitos têm feito, e bem, sobre as incoerências linguísticas do próprio acordo ou os errados critérios e interesses que o norteiam, como Pedro Mexia salientou num excelente artigo publicado no Expresso de 14 de Janeiro de 2012. E não o pretendo fazer porque, antes de mais, fazê-lo é aceitar a existência do próprio acordo. É aceitar que o estado é dono da língua. É aceitar que, sem que ninguém lhe tenha conferido esse mandato, o estado se pode arrogar a possibilidade de fazer o que quer com a língua. No caso em apreço, é aceitar que o estado pode convocar um grupo de alegados iluminados e permitir-lhes redesenhar a língua de milhões de pessoas a seu bel-prazer. Escapa a estes iluminados, provavelmente herdeiros da filosofia cartesiana que incorre no racionalismo construtivista – um ignóbil produto da modernidade que inspirou totalitarismos assentes no princípio de que é possível desenhar ou redesenhar uma sociedade complexa a partir de cima, ou seja, do aparelho estatal – uma coisa tão simples quanto isto: a língua é uma das instituições humanas originada e desenvolvida espontaneamente, i.e., através da interacção de milhões de indivíduos ao longo do tempo. A língua originou-se através da natural evolução humana e é por via das interacções que se registam numa comunidade ou sociedade que se vai modificando, de forma lenta, gradual e sem coerção estatal.A língua não é produto nem pode ser apropriada por um aparelho cuja fundação é posterior ao momento de origem da língua da sociedade de onde aquele emana. Sinto-me ultrajado com este acordo e pela violentíssima forma como o estado tem avançado para o impor. Raras vezes tenho sentido uma revolta tão grande, uma revolta que cada vez mais me custa calar e que é, com toda a certeza, partilhada por milhões dos meus compatriotas. É difícil, mas não impossível, resistir ao rolo unidimensionalizador da única instituição que detém o monopólio da força legítima. Mas não resistir é aceitar a coação estatal num domínio que é nosso, dos indivíduos e da sociedade, dos portugueses, não do estado. E é por isto que sou terminantemente contra a existência de qualquer acordo ortográfico. Este ou outros (e sim, sei que se fizeram vários ao longo do século XX e sempre por razões políticas). Não discuto os critérios do acordo porque, por uma questão de princípio, este nem sequer deveria existir.