O “desabar de ilusões”

«Um dia contarei mais em detalhe o meu, digamos, envolvimento com o “Acordo Ortográfico”, quando fui ministro da Cultura, entre 1995 e 2000: seja quanto à sua inutilidade, seja quanto aos seus erros e aberrações. Para já, basta lembrar que nunca ninguém me ouviu falar dele, o que aconteceu por uma razão bem simples: pensei – e nisso tive todo o apoio do primeiro-ministro António Guterres – que a melhor estratégia para liquidar aquele inútil aborto da herança cavaquista-santanista era justamente não falar dele, era metê-lo numa gaveta e votá-lo ao mais completo esquecimento.» [14.07.19]

Manuel Maria Carrilho, ex-professor universitário e ex-Ministro da Cultura, sempre foi um opositor. No entanto, como reconhece o próprio, enquanto podia ter feito alguma coisa — e quem estaria então em melhor posição política para o efeito do que ele mesmo, sendo Ministro da Cultura? — acabou por fazer… absolutamente nada. Limitou-se a esperar, mudo e quedo, na crença — aliás muito comum, à época — de que a simples passagem do tempo bastaria para que o estropício passasse, sem produzir quaisquer efeitos, à secção do arquivo morto, para sempre enterrado e de todo esquecido.

De facto, desde que soaram vagamente os primeiros sinais de alarme (o ameaço de 1986, depois a santanada de 1990 e a “discussão” parlamentar no ano imediato) e até à aprovação da RAR 35/2008, ou seja, durante o larguíssimo hiato de 1986 a 2008, durante 22 longos anos quase ninguém levou a sério semelhante aberração; “toda” a gente limitava-se no início a ignorar o assunto, com um encolher de ombros, na convicção — um hábito, para os padrões da intelligentsia tuga — de que a coisa acabaria por cair no esquecimento, como é costume (e bem, no caso) quanto àquilo que não serve rigorosamente para coisa alguma… à excepção do obsceno enriquecimento de uns quantos.

Ainda que se considere não ter sido Carrilho o único a primar pela inércia, e mesmo condescendendo em que a sua imobilidade resultou do referido erro de cálculo, cabem-lhe as responsabilidades políticas inerentes — que aliás não enjeita — pelo facto de a sua inacção ter contribuído para o avançar da máquina trituradora tardo-imperialista e, consequentemente, para o processo de aniquilação linguística em curso.

Da sua oposição dá mais uma vez conta o ex-político, agora em entrevista ao “Diário de Notícias”. Aparentemente, à excepção do que sucede na parte final da “conversa”, toda a sequência de perguntas e respostas gravita bem longe de quaisquer assuntos ligados à Língua Portuguesa.

Porém, se repararmos melhor, numa segunda leitura e mesmo sem grande minúcia, vemos que o entrevistado responde, através de aparentes generalidades, a uma série de questões que não apenas esclarecem como também tornam (por fim) transparentes as manobras que possibilitaram a entrada em vigor do AO90: o papel fulcral que teve nessa golpada José Sócrates enquanto primeiro-ministro de uma outra maioria PS, o “extremismo do centro” (o “centrão”, Dupond e Dupont), a classe política indígena — dominada por medíocres — a ditadura da indiferença, o imobilismo soporífero e anestésico, Europa, fronteiras e esbatimento da soberania nacional, a forma como democracia representativa e democracia participativa são conceitos que mutuamente se excluem. Alguns respingos:

Mesmo se por interpostas analogias, ficam assim, de novo, perfeitamente claros e evidentes os pressupostos, as premissas e, portanto, os factos que demonstram mas não explicam — porque nada explica a abjecção — a desonra do passado, a miséria do presente e sobretudo, se os portugueses não sacudirem o torpor dos analgésicos, de um futuro sem palavras.

Manuel Maria Carrilho: “António Costa não é um líder, é um gestor, é o patrão do PS”

O antigo ministro da Cultura, ex-embaixador na UNESCO e professor catedrático alerta para a crise da democracia – à beira do fim? -, para o poderoso extremismo do centro e para a indolência da Europa. Avisos e reflexões de uma “democracia no seu momento apocalíptico”, novo livro de Manuel Maria Carrilho que será esta quarta-feira, às 18 horas, apresentado no Palácio Galveias, em Lisboa.

 

Porque está a democracia num momento apocalíptico? Porque sublinha essa ideia de Jacques Derrida de que “(…) o fim aproxima-se, mas o apocalipse é de longa duração”?

Tudo o que se passa hoje, passa-se no quadro de um paradigma que não é suficientemente considerado. Estamos neste impasse sucessivo de crises atrás de crises. Vivemos como se tudo fosse ilimitado, mas tudo tem limites. Esse paradigma foi-se constituindo durante séculos.

E quais são as causas?

Primeiro, o individualismo – hoje o indivíduo é o centro da sociedade -, e, segundo, o financismo, a grande transformação do capitalismo, que pouca gente tem em conta. Penso que o grande impacto da social-democracia tem a ver com o fracasso da terceira via e com não terem percebido o que era o capitalismo. Os outros dois factores são a globalização, um processo histórico em curso, e por fim as novas tecnologias. Todos estes factores reforçam-se uns aos outros e fecham com uma tenaz este paradigma em que todos estamos hoje a viver que é o ilimitado.

A ideia permanente do crescimento?

É um dos pontos centrais. Nunca se falou em crescimento até ao século XX. O crescimento é uma palavra que nasce nos Anos 50. Até aí não se falava de crescimento, as cidades iam crescendo à medida que a população crescia. Este ilimitado que nasce com este crescimento vai esperar o impulso ilimitado que começa com o crescimento do consumo, a seguir o crescimento da dívida, o crescimento dos direitos e o crescimento da vida.

Que desabou em quê?

Por exemplo no desaparecimento das fronteiras. Aliás, acho que um dos grandes problemas da Europa é não ter fronteiras. O que é uma união sem fronteiras? Hoje temos uma classe política muito fraca, muito ignorante, mas acho que muitos políticos, de vez em quando, vêm as coisas e também não lhes dão consequências. Por exemplo, a última grande intervenção de Macron foi sobre o fim da abundância. Ele percebe isto, o ilimitado está a bater na parede, estamos sempre obrigados a prometer crescimento permanente quando, na verdade, ele acabou.

É por isso que a existência da democracia, não apenas como sistema político mas também como sistema social, está em causa?

Questiono o que ela se tornou, mas o que digo é que nunca houve um regime político eterno na História da Humanidade. Damos a democracia como ilimitada, desde que caiu o Muro de Berlim que a democracia é o caminho para a eternidade. Pelo contrário, estamos agora a ver consequências tremendas, como a própria guerra, e o que aconteceu foi que com o fim do Muro de Berlim todas estas transformações se aceleraram.

Até nas ideologias?

As ideologias começam, elas próprias, a iludir-se e há um processo acelerado de erosão ideológica. Fala-se muito da social-democracia, do liberalismo, da democracia cristã, do comunismo, do socialismo, mas o que é isto? São só palavras. É como no futebol, sinalizam adversários e equipas que disputam o poder, mas que não têm conteúdo.

É por isso que fala num extremismo do centro?


Comecei a analisar como é governada a Europa a partir dessa ideia do ópio do povo, o europeísmo, e encontrei este extremismo do centro. Normalmente, considera-se extremismo como os radicais, as pontas, digamos assim. No centro estaria o consenso, os racionais, com um conjunto de características que, no fundo, escondem um dogmatismo férreo. E se não há alternativa, então é o quê? Um extremismo com uma força que nem o extremismo de esquerda ou de direita alguma vez tiveram.

O extremismo do centro é mais poderoso?

É mais poderoso porque está no poder na Europa há muitos anos. É isso que nos diz que entre Passos Coelho e António Costa há muitas diferenças de pormenor, mas não há nenhuma diferença de fundo quanto à política a seguir. Vê-se o que foi a ilusão da geringonça e da viragem à esquerda. O caminho é o que a União Europeia impôs, impõe. O apocalipse é isto, por um lado, a deslegitimação dos partidos e a composição do próprio sistema, é um desabar de ilusões. Há cada vez menos pessoas que defendem a democracia e cada vez mais pessoas que são indiferentes aos regimes autoritários. E isto passa-se, cada vez mais, com os mais jovens.

A espiral fatal do extremismo do centro?

É o modo de governo, é um modo que tira o poder aos cidadãos. Mas falo do apocalipse porque todos os processos que já referi levam a que tenhamos uma política de um pragmatismo sem qualquer visão, ninguém sabe o que vai acontecer. É tudo imediato, é tudo remendos, e o curto prazo é outro elemento fatal para a democracia. Se vivemos num regime de curto prazo não temos possibilidades de consolidar qualquer projecto.

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Costa está refém da herança de José Sócrates

A dormência da esquerda vem de quê?

Vem da inacção, vem da noção que as pessoas têm de que os partidos políticos são incapazes de resolver os problemas. Tudo se esgota no acto eleitoral, porque enquanto o voto era a base e o mandato e o programa eram respeitados, hoje isto não acontece.

Não?

Não, o mandato e o programa não existem, há uma legitimidade de proximidade em que o governo é escrutinado pelo regime mediático continuamente. Podem prometer uma coisa, mas pode haver movimentações populares que alteram as coisas em 15 dias. Olhemos para o caso português: temos o Partido Socialista no poder e se olharmos para a oposição, ideologicamente, o que é que vemos à direita? Nada, temos siglas. Essa oposição é mais uma coisa sem qualquer conteúdo entre o Estado e o indivíduo.

E porquê?

Porque quando há alguma dificuldade as pessoas viram-se é para o Estado. Simplesmente o Estado-Providência virou-se completamente para ser um Estado para os indivíduos. É um Estado para os indivíduos em que os indivíduos vão procurar socorro e é neles que o Estado pensa principalmente, não é tanto na nação. É por isso que penso que temos um regime de social-liberalismo.

E é isso que atravessa os vários partidos que compõem o nosso Parlamento?

Não há ideologia, há umas ideias. O Chega, por exemplo, tem três ou quatro ideias provocatórias, mas não tem base social, porque não há migrantes, não há inimigo externo. O Chega, em Portugal, é um partido de protesto, sem a base que têm este tipo de partidos nos outros países. Cá não temos essa base social, não temos os problemas dos migrantes, daí ele ter inventado o problema dos ciganos.

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Por financismo, o tal dogma que substituiu o governo dos cidadãos, como diz, pela administração das coisas?

Estamos nesta situação em que tudo é economia, o que me remete de novo para o paradigma do crescimento. A economia procura resolver essa questão de por que é que a humanidade, a partir do século XX, só pensa em crescer? Os políticos estão reféns disto, um político nunca pode dizer que não se cresce, mas o que é o crescimento? Neste domínio da economia há todo um conjunto de coisas a pensar.

É por isso que refere a ideia de tudo ser um mercado?

É tudo um mercado e, aí, o economicismo do chamado neoliberalismo é absolutamente igual ao do comunismo: tudo é economia e a economia define tudo. Estamos nesta situação, que é muito complicada em termos europeus e nacionais: as dificuldades que temos em termos de mercado são muito grandes e nada garante que a democracia seja um regime eterno. O que vimos antes da Ucrânia é que já se falava da crise da democracia, eram livros atrás de livros e em todos os países do mundo se falava da crise da democracia. O que faz impressão é que não se vê que os políticos e os media perguntem por que é que isto acontece.

Tal como em Itália?

O que vemos agora em Itália, o que vimos ontem na República Checa, são apenas exemplos, porque estas mudanças estão a acontecer em vários países. Falta perceber o que é que causa isto, por que constantemente se fala nisto como se atribuíssemos estas mudanças a algum poder divino, mas não, são é as sociedades a transformar-se. Estamos dentro deste paradigma que anestesia as pessoas porque o paradigma do ilimitado, ao prometer tudo às pessoas quando sabe que tudo tem limites, anestesia e desorienta as pessoas.

E está também Portugal anestesiado?

Portugal continua a ser um país, a meu ver, atordoado e desvitalizado. Não há nenhuma visão, nem nenhum programa e é também rebocado porque desde a entrada na União Europeia, e particularmente nos últimos anos, anda a reboque. Nem esse reboque fazemos bem-feito, porque mesmo com todo o dinheiro que nos chega da Europa vemos que não há projectos ou que não há uso desse dinheiro. Há um guiché para as necessidades urgentes, mas não há visão global. A política vive num estado constante de conformismo patológico e isso faz muito mal à sociedade.

É patológico quando, por exemplo, António Costa disse recusar a ideia da taxa sobre os lucros excessivos – de que o ministro da Economia falou -, mas já o admite, agora, por ter sido Ursulavon der Leyen a colocar a questão?

Aí é o estar a reboque e é a desorientação. A questão do conformismo patológico tem a ver com todos os partidos e com a classe política em geral. A ideia que dá é que António Costa está refém de um conjunto de compromissos de Sócrates, como Alcochete ou o Acordo Ortográfico que nos torna minoritários na nossa própria língua.

Refém de Sócrates?

Há um conjunto de pontos em que parece que António Costa está refém e em que não parece ser capaz de romper com o que é o pior da herança de Sócrates. Acho que não tem autonomia e não tem independência de juízo, nem cá, nem fora.

[Transcrição parcial de entrevista, publicada em 28.09.22, de Manuel Maria Carrilho ao “Diário de Notícias”. Destaques e “links” meus. Bacoradas em brasileirês (da autoria do hiper-acordista DN) corrigidas automaticamente.]