Dia: 11 de Novembro, 2022

Egipto em brasileiro e a cuestão légau

«A arquitetura do velho Egito é caracterizado pela sua monumentalidade. Entre as construções mais importantes estão as pirâmides e templos. Neste artigo, falamos sobre as generalidades deste modelo de construção e as principais obras arquitetônicas dos egípcios.» [“Astelus” (Brasil). Transcrição do original em brasileiro.]

Contagem de ocorrências – sequências consonânticas (recorte) [página O AO90 em Números-resultados]

Trata-se, a julgar pela recorrência das “alegações”, de uma impossibilidade técnica: por mais que se insista no carácter exclusivamente político-económico do #AO90, mais se fala de… ortografia! O “acordo ortográfico” não é acordo algum — porque o conceito implica cedências de ambas as partes, não apenas de uma delas — e não tem absolutamente nada de ortográfico, dado que as suas finalidades, as expressas e as implícitas, têm o objectivo único de privilegiar os interesses geoestratégicos do “gigante” brasileiro.Se por mero acaso a alguém ocorre escapar, ainda que apenas por momentos e para variar, à “lógica” do tiro ao “egício” em particular ou ao “impato” em geral, então será provavelmente para tecer considerações igualmente “asséticas” sobre a “inadatação” “fatual” da data de entrada em vigor do AO90, sobre o “fato” de não haver uma lei (mas tem de ter a designação de “lei”, se for outra coisa não vale) de aplicação compulsiva do estropício na administração pública ou ainda, outro tema algo divertido, se bem que igualmente ocioso, sobre o “registro” legal da revogação expressa do AO45. Quanto às pretensas questões legais envolvidas será suficiente ver, no quadro negro, a “hierarquia das leis”: no caso, a golpada em vigor foi executada através da tramitação da Proposta de Resolução 71/X, que deu origem à RAR 35/2008 (aprovação do 2.º Protocolo Modificativo) e esta serviu como respaldo político para que fosse parida a RCM 8/2011 – o que implicou a entrada em vigor do AO90 na função pública e em todos os organismos na dependência (directa, indirecta, sub-reptícia ou até secreta) do Estado.***
Pela inexistência de diploma, cláusula ou disposição revogatória, bastará formular em suma os respectivos preceitos jurídicos: «revogar uma lei é fazê-la perder a vigência, ou porque foi substituída por outra lei ou porque perdeu sua validade no decurso do tempo»; a revogação pode ocorrer de forma explícita, mas também por anulação, substituição ou caducidade — tácitas ou implícitas. Algo de semelhante vale para o próprio Direito dos Tratados, aliás. Nos termos da Convenção de Viena, a subscrição dos Estados contratantes pode ocorrer por unanimidade, por maioria de dois terços ou… de outra forma, desde que os ditos Estados assim convencionem: «The adoption of the text of a treaty at an international conference takes place by the vote of two thirds of the States present and voting, unless by the same majority they shall decide to apply a different rule.»As questões e contorções legais não são, de todo, decisivas no que concerne ao AO90. E ainda menos fundamentais serão as pretensas questões técnicas envolvidas.

Tornou-se irrelevante — e até contraproducente, na situação actual — qualquer abordagem tanto pelo “lado” jurídico como pelo da ortografia. Enquanto se entretêm com enormes listas de “aberrações” e de “casos flagrantes” que teoricamente seriam “corrigíveis” e depois de uma série de “petições” completamente (porque muito previsivelmente) inúteis, o alegre grupo de adeptos da “revisão” vai desopilando seus honoráveis fígados em… inutilidades absolutas. Das quais apenas resulta, na muito exígua opinião pública à qual o assunto interessa minimamente, aquilo que os acordistas sempre pretenderam: cansaço, exaustão e, por conseguinte, alheamento, indiferença.

O AO90 continuaria absolutamente incólume, enquanto instrumento político, ainda que os acordistas fingissem ceder fosse (n)o que fosse.

Não será por os demais membros da CPLB (Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé, Guiné-Bissau e Timor-Leste) acabarem por determinar a entrada em vigor daquilo nos seus territórios que esse mesmo “aquilo” passará a ter alguma coisa a ver com a Língua Portuguesa.

Não será à força de petições (ou “ideias” ainda mais peregrinas, como o referendo) que os deputados da nação alguma vez reconhecerão que nem sabiam o que era “aquilo” que aprovaram. E, evidentemente, jamais algum político admitirá que o “acordo” é plano de saque e esquema de negócios, a pretexto do “valor económico“ e da “expansão da língua” brasileira.

Não será por mera ingenuidade, por exemplo acreditando que a lei das iniciativas de cidadãos (ILC) vale ou serve para alguma coisa, que a frente de luta se desviará um milímetro do seu elemento natural, isto é, a arena política. Aliás, quanto a esta iniciativa em particular devo penalizar-me pessoal e exclusivamente: o ingénuo fui eu mesmo. Alego em minha defesa, porém, quanto a este particular, o facto de jamais ter sequer imaginado que seria possível que uma lei da República Portuguesa não passe afinal de uma farsa abominável.

Não será por “reaver” os “pês mudos” das “receções“, das “conceções“, dos “egícios” e dos “réteis“, mai-los “cês caladinhos” nos “conetores” e nos “inteletuais“, por exemplo, não seria por isso que a coisa ficaria logo nos conformes, a aldrabice deixaria de ser tremenda vigarice, o “acordo” deixaria de funcionar como pretexto para a “expansão” brasileira, a Língua Portuguesa deixaria de ser metodicamente destruída.

A exposição do cAOs teve o seu tempo e fez todo o sentido, sim, mas só até determinada altura. O ponto de viragem, aquilo que transformou o que até então era útil e curial em algo sumamente pernicioso, porque contraproducente, foi… a simples passagem do tempo. Ou seja, não existiu propriamente uma barreira temporal, mas o mais simples bom senso — se matraquear exemplos não resultou durante anos e anos, para quê persistir na inutilidade? — poderia e deveria ter ao menos poupado à causa um nada despiciendo número de desistências por exaustão.

Já vai sendo tempo de aprender alguma coisinha com os próprios erros. Até porque os erros dos outros não convencem ninguém. E a putativa CTR (Comissão de Revisão Técnica) tem os seus próprios assalariados, portanto convinha não trabalhar para eles à borla. Nem a peso de ouro.

Se o Egipto não existe, para quê insistir na egiptologia?

Eliminada a grafia Egipto e identificado o Egito como singelo lugarejo algures no Atlântico, não se percebe aonde foi António Costa nem de onde vêm faraós e múmias.

Nuno Pacheco
“Público”, 10.11.22

“Faraós, pirâmides e múmias são sempre um tema apaixonante, daí que tantas vezes a ele voltemos. Por artes do acaso, coincidem nestes dias dois acontecimentos relacionados com o país dos faraós e das pirâmides. Um deles é ‘Faraós Superstars’. Que, ao contrário do que o título possa dar a entender, não é uma série televisiva, mas uma exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, com inauguração marcada para 25 de Novembro, onde permanecerá até ao dia 6 de Março de 2023. O outro, de maior relevância para o planeta, é a Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP27), que começou no domingo e se estenderá até 18 de Novembro em Sharm el-Sheik, cidade egípcia.

E aqui começa a discrepância. Segundo o Acordo Ortográfico de 1990, impingido em 2010 a troco de nada, os faraós egípcios são os do Egito e ponto final. A conferência da ONU, idem. Aliás, a palavra Egipto foi meticulosamente banida do léxico a uso pelos tutores da grafia “oficial”. Daí que a Gulbenkian, há anos zelosa cumpridora da dita ortografia nova, fale no comunicado que anuncia a exposição em “Egito contemporâneo” e “Egito Antigo”, registando coisas como “imaginário coletivo”, “atualmente”, “coleções”, “atividades” ou “estações táteis”, enquanto nos chama a atenção para a “arte egípcia”, referindo “antiguidades egípcias” ou mencionando o célebre “egiptólogo britânico” que há cem anos descobriu o túmulo de Tutankhamon no Vale dos Reis. Já o Governo, provavelmente mais distraído, emitiu um comunicado oficial intitulado “Primeiro-ministro desloca-se a Sharm el-Sheik, no Egipto, por ocasião da COP 27”, que começa logo na primeira linha por anunciar uma absoluta impossibilidade: “O primeiro-ministro desloca-se ao Egipto.” Ora como pode o primeiro-ministro de um país que existe deslocar-se a um país que não existe? Não pode.

Quem tiver dúvidas consulte a “bíblia” do “acordismo” lusófono, o Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa do IILP, e terá como resposta esta afirmação categórica: “A forma Egipto não se encontra atestada neste vocabulário.” De nada serve saltar de bandeirinhas (há uma para cada país, com diferentes vocabulários, a “unificação” é só lirismo), pois a resposta é sempre a mesma. O mais surpreendente é quando, já prestes a desistir, procuramos a palavra “Egito”. Aparece logo. Um país? Não, um lugar na Calheta (ilha de São Jorge, Açores), a remeter para o Vocabulário Toponímico.

Portanto, eliminado o Egipto e identificado o Egito como singelo lugarejo algures no Atlântico, não se percebe aonde foi António Costa nem de onde vêm faraós e múmias, a não ser por artes de uma qualquer ‘twilight zone’. Pior ainda (tal é o poder da ortografia!), não se percebe de onde continuam a vir palavras como “egípcio”, “egiptólogo”, “egiptologia”, “egiptológico”, “egipcíaco”, “egiptano”, todas abençoadas pelo IILP (que, no entanto, ignora “egiptização” ou “egiptanense”). Um mistério digno do Vale dos Reis, se não viesse antes do vale-tudo dos mentores e crédulos no disparate.

O assunto Egipto versus Egito já foi aqui abordado há cinco anos, em crónicas como “Pirâmides, futebóis e ortografia” (26/1/2017) ou “Sabiam que Cleópatra era de Idanha-a-Velha?” (13/7/2017), mas o tema em si mostra-se inesgotável, até porque a simples queda de uma letrinha (o P de Egipto) deu azo a muita tolice pseudomoderna, como o surgimento de “egícios”. Um questionário escolar em linha, destinado ao 8.º ano e já retirado, tinha como item de resposta múltipla esta frase: “A Itália foi o berço do Império Egício.” O jornal ‘Record’ (colecciono pacientemente estes recortes, que muitas vezes me chegam à mão devido a olhares atentos) anunciou “um grande dérbi egício”; a Euronews falou em Mubarak como “ex-presidente egício”; a RTPN em “bloqueios egício e israelita”; a Lusa em “capital egícia”, referindo-se ao Cairo; o ‘JN’ assinalou um desastre “no espaço aéreo egício”; uma criatura no Tripadvisor viu “um obelisco egício na Praça do Popolo”, em Roma; e o Mundo ao Minuto chegou a noticiar “um morto em confrontos entre estudantes egícios e polícia. [sic]”. Até o governo anterior, em comunicado, misturou “Egito” com “Egipto”, talvez na esperança de acertar.

No resto da Europa, não há estes problemas. Se usarem o tradutor do Google, verão que Egipto se escreve assim em espanhol ou basco (como se escrevia em Portugal), mantendo o P noutros idiomas: Egypt (inglês, norueguês, checo), Egypte (francês, holandês), Egipte (catalão), Exipto (galego), Ägypten (alemão, luxemburguês), Egipt (polaco, romeno, esloveno), Egyiptom (húngaro), etc. Mas se tentarem “traduzir” Egipto para português, teremos… Egito. Um bom tema para “egitólogos.”

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Nuno Pacheco, publicado no jornal “Público” de 10.11.22. Imagem de topo de: “Astelus” (Brasil). Quadro de hierarquia das leis copiado de página Facebook. ]

*** Nota: sobre a RCM 8/2011, há também alguns cromos (a caderneta está cheia) que garantem ser aquilo o busílis da questão, ou seja, que anulando-a (uma RCM não é revogável, é anulável por outra ou é simplesmente ignorada) o “acordo” deixaria automaticamente de estar em vigor. Pois claro que não. A RCM é consequência da RAR — até porque nesta se baseia expressamente –, não o inverso; anular a RCM (qual seria o mecanismo para o efeito?, uma chamadinha para o Largo do Rato?) deixaria a causa incólume; logo, o que é aliás uma questão de senso comum, apenas anulando a causa (a RAR) seria possível tornar nulas e de nenhum efeito as suas consequências (Decreto do PR n.º 52/2008, aviso nº 255/2010 do MNE, Resolução do Governo nº 8/2011). Até um “jurista” de vão-de-escada entenderia uma coisa assim tão simplezinha.