Dia: 17 de Novembro, 2022

Não sabe? Devia saber.

Dizer isto é elitismo e sobranceria? Talvez. Mas tenho por mim a memória de Medeiros Ferreira e um seu momento numa entrevista em que falou do “nó górdio”, e a jornalista perguntou-lhe o que era. Medeiros Ferreira irritou-se e respondeu: “Se não sabe, devia saber…”
[Pacheco Pereira, «Acordo Ortográfico só subsiste pela inércia cultural da ignorância», 02.07.22]

Os alunos de língua portuguesa e a língua portuguesa

Francisco Miguel Valada
www.publico.pt, 16.11.22

“Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram necessárias tantas filosofias. – Vocês estão gastando cera com ruins defuntos, filhos.” Eça de Queiroz, Os Maias

O dilema de João Rodrigues, professor na Escola Secundária Rainha Dona Amélia, em Lisboa, relatado há uns meses no PÚBLICO, serve de mote para as três considerações que aqui trago. Queixava-se então Rodrigues de ter tido de penalizar alunos brasileiros em respostas escritas na “variante brasileira de português” que não correspondiam à “norma do padrão do português europeu”. Acrescentava o professor de Português que era revoltante ter de penalizar alunos, quando a expressão sintáctica estava correcta na variante brasileira. Por fim, Rodrigues confessava-se revoltado, sentindo também que estava a prejudicar e a discriminar os alunos. Convém que este testemunho sincero e concreto seja levado muito a sério por quem tem andado há muito tempo a dormir na forma com ilusões e a tapar o sol com uma peneira de abstracções.

Há uns anos, apresentei uma comunicação na Universidade de Évora, na qual mostrei e analisei diferenças lexicais, fonológicas, fonéticas e morfossintácticas entre o português europeu e o português do Brasil. Uma das críticas que me fizeram – e que imediatamente aceitei e reconheci – foi a de ter misturado (adrede, acrescento) registos formais e informais, isto é, pus na mesma panela alguns (poucos, acrescento) registos que seriam utilizados em sala de aula e registos meramente coloquiais. Respondi que o fizera intencionalmente, para suscitar o debate, mas agradeci a reprimenda e, felizmente, aprendi imenso com ela. Por esse motivo, trago-vos hoje as tais três considerações. Obviamente, apresento-as, partindo do princípio de que o Governo português, de facto, quer resolver este problema: de uma vez por todas.

A primeira consideração diz respeito à vontade política de resolver problemas. Esta vontade política inclui o doloroso reconhecimento de haver diferenças entre os vários portugueses que são falados no espaço lusófono. Quanto à dimensão e importância da diferença, reservo o debate para outros fora. No entanto, já que estudos académicos e exemplos do quotidiano sobre este assunto não interessam aos políticos portugueses, as legítimas queixas de alunos brasileiros a estudar em Portugal poderão servir como indicação de que algo deve ser reconhecido e resolvido.

A segunda consideração relaciona-se com a formação dos professores. Se, efectivamente, o Governo português quiser resolver o problema e, como sugere o Instituto de Avaliação Educativa (Iave), “abordar as variedades da língua portuguesa ‘no âmbito das aulas de Português’”, a solução é simples: deve dar-se formação aos professores das disciplinas em que, actualmente, a adopção da norma portuguesa europeia é obrigatória, para que estes possam avaliar correctamente o desempenho dos alunos falantes nativos dos vários portugueses que são falados em todo o espaço lusófono. Isto implica bastante tempo e, é claro, algum dinheiro. Mas também é nestes momentos que vemos a diferença entre a garganta (o discurso político) e o porta-moedas (o Orçamento do Estado).

A terceira e última consideração tem a ver com a reciprocidade. Nenhuma – repito, nenhuma – das minhas duas anteriores considerações terá qualquer validade se não houver medidas idênticas (ou semelhantes) tomadas por quem governa os outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Isto é, os alunos portugueses que estudarem nos outros países da CPLP deverão dispor exactamente das mesmas condições que os alunos de outros países da CPLP terão em Portugal, no âmbito das minhas primeira e segunda considerações.

A penalização de alunos, nestas condições, é de facto um problema extremamente grave e convém que a resolução seja rápida. Aproveito o ensejo para recomendar o seguinte ao actor político que executar estas minhas considerações/recomendações: pegue no Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) e deite-o fora. Ponha-o no caixote do lixo. É justamente por causa do logro da “unidade essencial da língua portuguesa”, conceito consagrado no AO90, que chegámos a esta situação ridícula e muito grave. Matemos dois coelhos de uma cajadada só e andemos para a frente. Avancemos.

    1. «quem tem andado há muito tempo a dormir na forma com ilusões e a tapar o sol com uma peneira de abstracções»
      Tornou-se irrelevante — e até contraproducente, na situação actual — qualquer abordagem tanto pelo “lado” jurídico como pelo da ortografia. Enquanto se entretêm com enormes listas de “aberrações” e de “casos flagrantes” que teoricamente seriam “corrigíveis” e depois de uma série de “petições” completamente (porque muito previsivelmente) inúteis, o alegre grupo de adeptos da “revisão” vai desopilando seus honoráveis fígados em… inutilidades absolutas. [Egipto em brasileiro e a cuestão légau – 11 Novembro 2022]
    2. «partindo do princípio de que o Governo português, de facto, quer resolver este problema»
      Este aparente conflito resultante da aculturação selvagem deixará de o ser de imediato, como que por milagre, com o estalar de dedos do costume — ou seja, via “orientações” internas da tutela, na secretaria da 24 de Julho, e de seguida com a consagração legal na respectiva linha de montagem, a São Bento. [A vitimização como arma política (2) – 03 Agosto 2022]
    3. «vontade política de resolver problemas»
      Quanto mais abundante e espectacular for o coro de lamúrias a que os media dão cobertura, mais “generoso” será o “pacote” legislativo que a carimbadela parlamentar transformará de imediato em lei. Este imutável, repetitivo, geralmente encenado e sistematicamente rapidíssimo processo de vitimização-legislação, num país em que é “normal” que uma simples Proposta de Lei fique congelada durante mais de três anos até que finalmente não obtenha resposta, é um indicador seguro do enquadramento político (logo, económico) em que se insere desde 1986 o processo de demolição linguística e cultural em curso. [A vitimização como arma política (1) – 1 Agosto 2022]
    4. «diferenças entre os vários portugueses que são falados no espaço lusófono»
      A pretensa “língua unificada” (a brasileira, claro) que teoricamente o justificaria serve como a camuflagem perfeita para a imposição selvática a Portugal (e PALOP) de uma língua alienígena — em todas as suas partes constituintes, não apenas numa única categoria gramatical — e para o esmagamento sumário, por arrastamento ou inerência, de todo e qualquer resquício da identidade nacional… portuguesa. [A vitimização como arma política (2) – 03 Agosto 2022]
    5. «legítimas queixas de alunos brasileiros a estudar em Portugal»
      É miserável mas não deixa de ser caricato o que vai sucedendo, por exemplo paradigmático, no assim dito “sistema de Ensino” indígena: evidentemente, visto que “eles são 230 milhões e nós somos só 10 milhões”, então há que — além de escrever como “eles” falam — “facilitar” e “agilizar” também o percurso académico “deles” (e só deles, para os alunos portugueses fica tudo na mesma), aceitando que escrevam como falam (ou como de resto lhes der na real gana). [A vitimização como arma política (2) – 03 Março 2022]

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