Dia: 9 de Janeiro, 2023

Teorema dos assados

«Tento não falar muitas vezes do acordo ortográfico neste blogue, porque estou em crer que, nisto da língua, há muitos temas interessantes e importantes para lá dessa obsessão de tantos, de um e de outro lado da contenda tribal em que a discussão se transformou.» [Marco Neves]

Obsessão“? A sério?
Contenda tribal”? Não. De todo.

Enfim, com algumas reservas, porque nesta matéria devo ser de facto inflexível, aqui fica a transcrição integral de um artigo do (excelente) “Le Monde Diplomatique” sobre a última publicação de Marco Neves, um autor já aqui citado por diversas vezes. Além do texto desse artigo, em forma de entrevista, pode encontrar também, em baixo, uma “playlist” do “podcast” que deu origem ao livro.

À laia de comentário(s), caso queiramos ir “para lá” do significado estrito ou do conteúdo expresso na entrevista, relembremos uma realidade comezinha: a aprendizagem não se restringe à matéria ou ao objecto de estudo; muito se aprende também, e por vezes até mais do que em simples enunciados a granel ou em pilhas de calhamaços, com aquilo que não é jamais referido e, sobretudo, com o que poderá significar a absoluta ausência de referências a uma matéria basilar em determinado contexto discursivo, literário ou… ideológico.

Neste caso, como é por demais evidente, e por maioria de razões tendo em atenção que o tema é a Língua Portuguesa, o que não aparece referido de forma alguma é o #AO90. Nem expressa nem colateral nem subtilmente.

Ora, então, e porquê? Como é possível falar ou escrever sobre a Língua oficial de Angola e Moçambique, ainda para mais quando tanto se fala de “variedade”, sem mencionar uma única vez a manobra tardo-neo-colonialista dos vendidos tugas?

“Contenda tribal”? Isso não é possível. Os trogloditas estão todos do lado do adversário, da seita de vendidos, mercenários e traidores que venderam em 1986 e desde então traficam a Língua Portuguesa e, por inerência, a nossa Cultura, o mais valioso património identitário herdado por todo o povo português.

Para a pancadaria primitiva, é dos outros todo o arsenal de mocas e clavas, ou seja, de mentiras como pedradas, de asneiras violentas a esvoaçar. E é também inteiramente sua a bizarra obsessão (isso sim, é uma obsessão) pelo “gigante”, pelo “país-continente”, pela sonoridade pacóvia dos “230 milhões“.

“Assim ou Assado”. 100 perguntas sobre a língua portuguesa
SAM THEKID E MARCO NEVES
Oficina do Livro, Lisboa, 2022, 128 pp.,
15,50 Euros

Quando se diz a alguém que se é professor de Português ou apenas que se é da das línguas, surgem logo as perguntas sobre como se deve dizer ou escrever. Muitas pessoas querem saber o que é «português correto», dão muita importância a isso ou têm já convicções muito firmes sobre certas «correcções» e «incorreções», que gostam de ver confirmadas. Muita gente exprime opiniões veementes sobre coisas da língua, mesmo sem ter reflectido muito sobre as inúmeras questões que qualquer palavra, expressão ou regra levantam. Como diz Marco Neves, «é mais porque sempre ouvimos alguém dizer que [determinada coisa] não se podia dizer e, pronto, ficámos convencidos de que era assim. É também uma questão de identidade. Uma pessoa tem esta imagem de si de que cumpre esta norma, tem certas ideias sobre essa norma e defende-a, mesmo que implique contrariar a língua real falada pela comunidade». Além disso, acrescenta, «[h]á sempre um pouco de exclusividade social no uso da língua. Há palavras que as pessoas desprezam porque não gostam de quem as usa. Mas também, há outra coisa, há o medo… As pessoas têm medo de que seja tudo possível, lembram-se das regras que aprenderam e acham que agora podemos dizer tudo. Não é assim (antes pelo contrário)» E ele também compreende esse medo: «Há uma insegurança linguística muito marcada num país onde, até há poucas décadas, poucos sabiam escrever. (…) Gostamos muito de dizer “diz-se assim”. “Temos medo, no fundo, do assado.»

Marco Neves é «tradutor, revisor, professor, leitor, conversador e autor», e «pai, com o ofício de contar histórias». Samuel «Sam TheKid» Mira é «músico, produtor, poeta, compositor, leitor, realizador e conversador». São ambos conversadores, portanto, e têm em conjunto um podcast chamado Assim ou assado, em que conversam sobre temas de língua. O livro baseia-se nas 10 primeiras emissões do podcast, de 23 de Setembro de 2021 a 20 de Junho de 2022 (disponíveis em https://tvchelas.com/category/podcast). As perguntas e as respostas não são exactamente 100, porque perguntas e respostas não numeradas escondidas no meio das outras, mas 100, 10 perguntas por podcast, é só uma maneira de organizar a coisa. Quando se faz um livro a partir de conversas, ganha-se algo em organização, precisamente, mas há também algo que se perde: «Se transcrevermos uma conversa, vemos que está cheia de hesitações, de frases que não terminam, de meias palavras. Ao escrever, podemos voltar atrás, corrigir (…). A escrita imita a língua falada, mas é outro bicho.»

Como é natural, é mais Samuel Mira a levantar questões — de facto, a trazer à conversa muitas polémicas actuais sobre «erros» da fala e da escrita — e Marco Neves a dar as respostas. E, como acontece em conversas com alguém que saiba de língua e se recuse a ter uma atitude puramente normativa, a conversa passeia pela história da língua, fonética, sintaxe e semântica, sociolinguística, enfim, todas as áreas do saber linguístico.

Quem procure indicações claras do que deve dizer ou corrigir provavelmente ficará desiludido com o livro. O que se procura aqui é, antes, compreender os fenómenos linguísticos e encarar a língua na sua diversidade de registos, não definir taxativamente o que é «correto» ou «incorrecto» — sem cair, porém, no extremo de aceitar displicentemente que vale tudo o que de facto se diz ou escreve, só porque faz realmente parte da língua.

Também não é livro para especialistas. A obra visa claramente um publica leigo e o especialista poderá achar que algumas afirmações pecam por falta de rigor ou excesso de simplificação. O livro centra-se, antes, em conhecimentos básicos em que é preciso continuar a insistir: se, por um lado, é bom dominar a norma culta («as regras de etiqueta da língua») e usá-la nas situações adequadas, também se deve compreender que não há, muitas vezes, mais justificação para essas regras do que para as formas criticadas que se usam nos registos menos formais — e que o excesso de cuidado com a observância de uma regra aceite acriticamente pode, em várias situações empobrecer, descolorir e artificializar o discurso, seja ele falado ou escrito.
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