Dia: 16 de Janeiro, 2023

Ignorância e apatia

«Esse é um problema da nossa justiça, uma espécie de anedota nacional que permite que um pescador de 79 anos seja detido por causa de uma caixa de sardinhas enquanto outros, hábeis com peixes mais graúdos, continuem a passar entre os pingos da chuva.»
[João Mendes, blog “Aventar”, 2015]

Constituir acervo sobre o #AO90, todo o seu historial, incidências, consequências e, em suma, as mentiras descabeladas de que se sustenta, coloca a quem o faz vários factores que podem — ou poderão ou poderiam, depende de cada qual — condicionar (ou não, de todo) as matérias seleccionadas para o efeito, sobretudo quando são prévia ou simultaneamente comentadas. A adjectivação implícita pode mesmo revelar-se algo arriscada, literal e figurativamente, apesar de todas as chamadas “garantias” dos mais elementares direitos titulados na Constituição da República.

A (triste) realidade, com a qual deparamos inevitavelmente se nos abstrairmos da retórica política, é que as “garantias” de “liberdade de opinião e informação” não garantem per se coisa alguma — do que resulta, na prática, a absoluta nulidade daquilo que se convencionou designar como “liberdade de pensamento”. Neste pressuposto, todo o capítulo da “lei fundamental” portuguesa, em que teoricamente são consagrados direitos, liberdades e garantias, vale o que vale: por alguma estranha razão, seria talvez mais prudente não quantificar esse valor em vez de lhe atribuir um rotundo zero.

Vêm estes considerandos a propósito dos reflexos (condicionados) — uma variante de icterícia mental — que já vão provocando na chamada “situação” (acordista, brasileirista, comodista, capitalista ou simplemente conformista) os alertas para o processo de demolição cultural em curso. São simplesmente palavras, na verdade, mas nada existe de mais perigoso para os ditos situacionistas do que traduzirem essas palavras a realidade, relatarem factos, demonstrarem a evidência das (suas deles) golpadas.

Daí, portanto, utilizarem esses tais a arma mais corriqueira do seu gigantesco arsenal de estupidez: a rotulagem. Característica intrínseca e definidora do vazio de ideias, a rotulagem é uma espécie de reflexo pavloviano que visa exclusivamente silenciar qualquer dissidência, ou, por extensão, seja quem for que se atreva a pôr em causa o “pensamento” tido por único ou vigente.

Rotular algo como “xenofobia” ou alguém como “racista”, nas diversas gradações dos termos e incluindo variantes mais ou menos delirantes (“preconceituoso” ou “reaccionário”, por exemplo), suscita conotações que denotam sobretudo desespero de causa. Ou seja, quem atira insultos assim que uma das suas vacas sagradas é picada fá-lo simplesmente porque não é capaz de articular sequer uma frase inteligível ou elaborar um raciocínio elementar.

Não é nada difícil por conseguinte, adivinhar as “reações” [ʁi.ɐ.ˈsõjʃ] à seguinte conjugação de factores, em termos comparativos.

1 – Entre 1974 e 1978, Portugal (então “continental”) terá acolhido cerca de 700 mil “retornados”, tendo esse facto provocado um naturalíssimo abalo nas estruturas e em todo o complexo tecido social da época, com o impacto do súbito e inusitado aumento populacional daí decorrente e com as inerentes implicações a todos os níveis, habitacional, laboral, empresarial e até cultural.

‘Retornados’ poderão ter sido mais de meio milhão

A estatística oficial diz que Portugal recebeu meio milhão de ‘retornados’ de África, mas o tenente-general na reforma Gonçalves Ribeiro, que coordenou as operações de acolhimento dos desalojados, reconhece que talvez seja “um número subdimensionado”.

(…)

Simultaneamente, a certa altura a lei restringiu os apoios a quem tinha antepassados portugueses, o que excluiu boa parte da população negra. (…) Em entrevista à Lusa, Gonçalves Ribeiro assinalou como o acolhimento das pessoas que deixaram África e vieram para Portugal “surpreendeu, de uma maneira geral, o mundo inteiro, a começar por países europeus, nomeadamente aqueles que também tinham colónias”. Impressionados, perguntavam-lhe: “Como é que um país pequeno como o nosso, em turbulência política, económica e social, pôde, num espaço de tempo relativamente curto, assimilar cerca de seis por cento da população portuguesa?”.

(…)

Olhando para a barra do Tejo, Gonçalves Ribeiro lembra o dia em chegou a Lisboa, no navio “Niassa”, embarcado em Luanda um dia antes da independência de Angola, juntamente com “o derradeiro remanescente da soberania de Portugal” naquela ex-província ultramarina. Mesmo perante a ameaça de “uma série de grupos” envolvidos no PREC, mais preocupados com “o umbigo” do que com o que se passava no Ultramar, a tripulação insistiu em atracar no cais de Alcântara, em Lisboa, onde tinha à espera “pequenas hordas ululantes” que consideravam aqueles últimos militares ao serviço do “império” português “reaccionários, conservadores e fascistas”.

(…)

Compreendendo as reivindicações que os espoliados, nunca indemnizados pelo Estado, mantêm até hoje, considera que “é insustentável esse tipo de expectativa”.

[Transcrição parcial de artigo publicado por “Notícias Ao Minuto” (com texto da agência Brasilusa), Abril 2014]

2 – Ora então, se 700 mil “retornados” — com a mesma Língua e partilhando os valores histórico-culturais e familiares dos portugueses “residentes” — provocaram semelhante abalo social, como é possível compreender que outros tantos 700 mil estrangeiros de nacionalidade brasileira não causem, segundo a “verdade” oficial, o mais ínfimo impacto no mesmíssimo tecido social nacional?

3 – E, quanto a motivações, em que ficamos? Os portugueses residentes nas ex-colónias tiveram de buscar refúgio na sua Pátria — na maioria dos casos possuindo apenas a roupa que traziam no corpo, caso não fosse emprestada –, ou arriscando a viagem para o “torrão” ou arriscando a própria vida, caso ficassem em África. O que tem esse facto a ver, que similitude existe entre as terríveis provações que todos os “retornados” passaram com a imigração de livre e espontânea vontade, em massa (para os padrões portugueses)? O que motivou uns foi a pura e simples sobrevivência. E quanto aos recém-chegados, o que será?
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