Que lhes faça bom proveito

O textículo agora transcrito saiu no “Público” em Maio de 2021, o que para para os actuais padrões de sofreguidão informativa é uma eternidade, mas não apenas vem a propósito dos acontecimentos mais recentes, como também ilustra perfeitamente aquilo que se consolidou já no sistema de ensino em Portugal, ou seja, a chamada “discriminação positiva”: os alunos, em qualquer grau de ensino, do Básico ao Superior — e neste, por motivos óbvios, com particular descaramento –, são altamente privilegiados pelo simples facto de provirem da única ex-colónia portuguesa na América do Sul.

Esta “discriminação positiva”, além de selectiva e, portanto, sendo discriminação na mesma, foi positivamente concedida em exclusivo aos estudantes brasileiros, em função das suas “queixas” sistemáticas e das suas ainda mais sistemáticas “acusações” de preconceito, racismo e xenofobia (1, 2, 3, 4, 5).

“Queixas” e “acusações” essas que não passam de simples vitimização como arma política (1, 2, 3), na minha nada modesta opinião, e digo nada modesta porque foi aqui reiteradamente declarada, escalpelizada e demonstrada com não pequena soma de provas, incluindo fotográficas.

Para ver montagem fotográfica ampliada click AQUI. Imagem original de https://www.pragmatismopolitico.com.br

Curiosamente, não temos notícia de “queixas” semelhantes (nem diferentes) por parte dos milhares de outros estudantes provenientes de qualquer das ex-colónias portuguesas em África e na Ásia, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, santomenses, guineenses, timorenses, macaenses, goeses. Nada de mais natural, claro: a Língua de todos os países e territórios de onde provêm é a portuguesa.

A língua brasileira afastou-se irremediavelmente — e deliberadamente e ferozmente, porque politicamente — da sua matriz lusitana, ao contrário do que sucedeu com a Língua Portuguesa nos PALOP.

O Brasil declarou a sua independência política em 1822 e a sua autonomia linguística ao mesmo tempo. Em 1955, rasgando o acordo ortográfico firmado 10 anos antes, o Brasil declarou a autodeterminação da língua brasileira.

Não venham agora tentar impor essa língua aos portugueses. Não se armem em vítimas. Experimentem não mentir alarve e abundantemente. “Falar” não é o mesmo que escrever. O “sotaque” não tem nada a ver com coisíssima nenhuma. Gramática é uma coisa, eliminação da Gramática é outra; só existem “variedades linguísticas” se a Gramática for comum. E isso da “gramática mentau” só pode ser mais um exclusivo brasileiro. Não existe “português europeu”, como não existe “português angolano” ou “português macaense”, por exemplo, e muito menos existe “português africano” (outra invenção neocolonialista brasileira); “português brasileiro”, uma expressão de viés político, não apenas não existe como é paradoxo e oximoro, já que ambos os termos se excluem mutuamente.

A vossa língua não é meia coisa nenhuma. É a língua brasileira.

Os brasileiros “têm meia língua portuguesa”? Quando as palavras são motivo de discriminação

O que o Atlântico separa a língua portuguesa une. Ou não? Matias foi alvo de chacota por causa do sotaque; Jullyana foi avisada para fazer um exame em português europeu e a Thalita disseram que os brasileiros só têm “meia língua portuguesa”. A todos pedem (ou exigem?) que falem “português correcto”. Mas, no Dia Mundial da Língua Portuguesa, perguntamos: o que é o português correcto?

“Por favor, façam o exame em português de Portugal, porque eu não entendo nada do que vocês escrevem”: a ordem foi dada antes de um exame do curso de História da Arte, mas não havia sido a primeira vez que Jullyana Rocha se tinha sentido confrangida por não falar português europeu.

Antes, quando foi mudar a morada a uma repartição de Finanças, teve o mesmo problema. “Fui com todos os documentos e expliquei à senhora que precisava de mudar a morada fiscal. Tentei-me explicar umas quatro vezes e ela simplesmente dizia que não entendia o que eu estava a falar. Ainda nem usávamos máscara, por isso não havia nenhum impedimento”, recorda a brasileira de 25 anos, a viver em Portugal desde 2017.

Não é caso único: os relatos de brasileiros a viver em Portugal que dizem ser discriminados por “não falarem português correcto” multiplicam-se nas redes sociais. Na página de Instagram Brasileiras não Se Calam, por exemplo, em que são partilhados relatos de xenofobia, é recorrente encontrar denúncias de discriminação por causa da língua: em situações do quotidiano, nos locais de trabalho, e, diversas vezes, nas faculdades.

Foi lá que Jullyana e os colegas brasileiros foram avisados para realizar o exame em português europeu, e foi esse momento, aliado a muitos outros de discriminação, que a fizeram sair do curso e optar por estudar Marketing remotamente, numa universidade brasileira: “Não quis voltar para o sistema de ensino de aqui.”

Também Matias Guimarães foi alvo de chacota quando chegou atrasado a uma aula. “Quando entrei na sala, o professor começou a fazer uma série de críticas e piadas sobre o meu sotaque, sobre eu ser burro pelo meu sotaque, por não falar direito”, relata. Pelo que tem ouvido, refere, “há pelo menos um professor em todas as faculdades que reclama que os brasileiros não falam da maneira mais correcta”. Mas o que é, afinal, o português correcto?

“A língua pode ter diversas cores”

“Desde que somos crianças, a escola diz-nos que certas formas são correctas e outras são incorrectas”, começa por enquadrar Ronan Pereira, doutorando em Linguística pela Universidade Nova de Lisboa. Há, no entanto, uma premissa que é importante não esquecer: “As línguas não são elementos estáticos. Elas variam territorialmente, ao longo do tempo, de acordo com as classes sociais, etárias… Mas, por algum motivo, temos na nossa cabeça que a língua é uma coisa só.”

Ora, quando uma criança vai para a escola, não é possível abordar todas as formas que uma língua pode ter. O ensino foca-se, então, no ensino da gramática normativa, aquela que nos diz as regras a seguir para escrever e falar correctamente. É essa gramática que estabelece o padrão, e é importante que seja ensinada, “porque, se todos começássemos a escrever como nos apetece, a coisa ficava confusa”, refere o linguista.

Quando falamos de português europeu e português brasileiro, estamos a falar de “duas variedades linguísticas” — o que mostra que “a língua é uma definição algo abstracta e, neste caso, vemos como a língua portuguesa pode ter diversas cores”. E nem é preciso atravessar um oceano para encontrar estas variedades: dentro do território continental encontramos muitas formas de falar português. A diferença é que “uma pessoa de Évora vai ter muito mais em comum na sua gramática mental com alguém de Coimbra do que com alguém de São Paulo”.

Os “entraves” linguísticos começaram a sentir-se no dia-a-dia de Mônica Santos logo desde que veio para Portugal, há três anos. “Uma atitude quotidiana como ir a uma padaria era muito difícil, porque o meu simples pedido de um pão era pouco percebido pelas pessoas, porque não queriam”, conta. “Existia uma certa necessidade de demonstrar que não estava a falar da melhor forma, era satirizada”, continua.

Foi também na faculdade que experienciou situações “mais fortes”. Ainda que seja necessário apresentar uma declaração de proficiência em língua portuguesa ao ingressar na faculdade, esta não especifica a necessidade de ser em português europeu. E, quando as aulas começam, “os professores são bastante críticos na forma como escrevemos relatórios, trabalhos, etc.”, lamenta. Chegam até a descontar pontos pela escrita, refere.

“Ouvir dizer todos os dias que falamos brasileiro em vez de português é o mesmo que dizer que nos Estados Unidos se fala ‘americano’ e que na Austrália se fala ‘australiano’, quando na verdade todos falam a língua inglesa.”

Alguns portugueses “olham com estranheza” quando Thalita Meros diz que dá aulas de Português. A viver em Portugal desde 2019, veio fazer mestrado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e, como já tinha experiência em dar aulas no Brasil, começou a dar aulas voluntariamente a estrangeiros em Portugal. Quando alguns alunos lhe dizem que “não querem aprender português brasileiro”, a professora de 38 anos explica que “não funciona assim”, que há materiais didácticos e que “a regra é comum para todos”.

“O português é uma língua multicultural. As pessoas que vão para a minha aula vão ouvir o sotaque do português de Portugal todos os dias na rua, vão acabar por pegar um pouco”, afiança. Mas pergunta: “Que estrangeiro fala realmente com o sotaque português de Portugal? Se ensinar português a um espanhol, ele vai falar com o sotaque espanhol.”

Também ela já viveu situações de preconceito por causa da língua. Numa ida ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, quando teve de indicar o número de telemóvel, disse “meia”, em vez de “seis”, como é comum no Brasil. Do outro lado ouviu: “Os brasileiros têm meia língua portuguesa.”

A globalização da língua portuguesa “traz muitos desafios”, começa por dizer Patrícia Ferraz de Matos, antropóloga e investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “Em primeiro lugar, porque o português que se fala em vários continentes não é exactamente o mesmo e tem muitas variantes — nacionais, regionais e locais. Em segundo lugar, porque este movimento para criar um Dia da Língua Portuguesa não se centra apenas nesta e parece querer estender-se a outros fenómenos culturais, ou seja, parece ser mais ambicioso.”

E porque não olhar para essas variantes como um factor de enriquecimento? Afinal, como relembra a investigadora, “é devido ao Brasil e ao seu tamanho que o português é hoje uma das cinco línguas mais presentes no espaço digital”.

Também inserida no espaço académico, a antropóloga refere que, “embora o português do Brasil seja admirado na literatura” (veja-se “a riqueza do vocábulo dos livros de Jorge Amado, por exemplo”), o mesmo não acontece nas aulas ou avaliações. No doutoramento em Antropologia, onde é docente, aceita teses escritas em português do Brasil ou português africano, por exemplo. Mas nem sempre é assim, como a experiência de Jullyana mostra.

A variedade mantém a língua viva

Mas de onde vem, afinal, a ideia de que o português do Brasil não é correcto? “Durante o processo evolutivo do português brasileiro, surgiram formas coloquiais que são violações à gramática mental dos falantes de português europeu”, explica Ronan Pereira. Um exemplo: “Eu vi-o”, como diz um português, versus “eu vi ele”, dito por um brasileiro. “Para a gramática mental de um português, [a segunda formulação] soa mal, mas isso não quer dizer que o falante de português brasileiro fale mal. Ele fala a sua variedade, que tem essa estrutura.”

Na verdade, quanto mais portugueses e brasileiros se aproximarem da norma gramatical — ou, por outras palavras, quanto mais correctamente falarem —, mais próximos ficam. Se assim fosse, “teríamos sotaques diferentes, o que é completamente natural e acontece em todas as línguas, mas a questão estrutural seria basicamente a mesma”, explica o linguista. “A regra é comum para todos”, acrescenta Thalita.

“Alguns dos preconceitos actuais podem ainda ser resquícios do passado”, refere Patrícia Ferraz de Matos. Podem estar relacionados “com as várias influências que o português do Brasil recebeu”. “É como se o português do Brasil fosse menos puro do que o português europeu, ao qual se associa por vezes uma identidade própria, associada à antiguidade do país na Europa, à sua permanência como país independente ao longo de vários séculos, sem nunca se ter subjugado ao poder (e língua) espanhol”, contextualiza.

A herança cultural, marcada por séculos de colonialismo, é, para Matias Guimarães, a principal justificação para esta discriminação. “Sinto que existe uma parcela da população portuguesa que vê as ex-colónias como inferiores de diversas formas”, atira. E essa percepção é generalizada. “Os mais velhos têm um sentimento de nacionalismo muito forte, acham que estamos para reconquistar o que nos foi tirado na época dos descobrimentos, como já ouvi muitas vezes”, refere Jullyana.

Thalita chama-lhe “saudosismo da língua”. Acredita que o pensamento comum é, muitas vezes, este: “Eu levei a língua para esse país e eles estragaram-na, deviam mantê-la como é aqui.” Ou, em forma de pergunta, como já fizeram a Mônica: “Quem é que inventou a língua?”

Esse saudosismo, acredita Thalita, poderá estar prestes a acabar, com ajuda das gerações futuras. “Os alunos de hoje já têm questões sobre a variação linguística nos seus manuais”, afirma. “A variação agrega muito. Tem algumas palavras que são diferentes? Tem. E isso só vai acrescentar”, atira. Patrícia Ferraz de Matos vai mais longe: “É talvez essa riqueza que mantém a língua viva — a de um conjunto diversificado de pessoas que a utiliza há vários séculos, mas que a vai adaptando e fazendo evoluir.”

[Transcrição integral (feita com pinças mentais e imenso nojo) de
artigo publicado no jornal “Público” de 5 de Maio de 2021.
Destaques, sublinhados e “links” (a verde) meus.]

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