Veja-se um outro caso ao acaso, que isto está por todo o lado e já infectou tudo: a versão “pt” (brasileira) da Google Maps utiliza para os transportes públicos portugueses a terminologia exclusiva do Brasil. Assim, o famoso “eléctrico 28” é uma espécie de monumento alfacinha em movimento a que agora os brasileiros impõem que se chame “bondji vintchioito” ou “bondjinho 28”. [post Novo Império (escola de samba, Figueira da Foz, Portugal), 12.03.22]
Continuam as repercussões do inacreditável artigo do presidente da “Associação Portugal Brasil 200 anos”, já aqui transcrito no passado dia 13. Artigo esse que é apenas mais um do tal Zé Manel, de uma série que ameaça prolongar-se indefinidamente e, com toda a probabilidade, mantendo ou se calhar até agravando o tom de total desprezo pelo país indicado no seu bilhete de identidade e de viscoso apego à sua querida pátria brasileira. Para o caso de a alguém, mais antropologicamente curioso ou patologicamente masoquista, interessar ler (e ver) outras pérolas de cultura de calibre semelhante, poderá encontrar a colecção do fulano no seu “site”: https://josemanueldiogo.com.br
Além das partilhas e comentários nas chamadas “redes sociais” e em pelo menos um outro “blog”, o dito textículo de Seu Manuéu aparece agora também mencionado num artigo do jornal “Público” de ontem. Que seguidamente se transcreve.
Já pegou seu ônibus hoje? Ou vai pegar o bonde?
Na sua digital ignorância, o Google Maps põe-nos a andar de ônibus e de bonde, obrigando os brasileiros a trocarem metrô e trem pelo metropolitano e pelo comboio.
Nuno Pacheco
“Público”, 16 de Fevereiro de 2023
Talvez entusiasmado pela aproximação à época carnavalesca que atravessamos, um colunista com publicação regular em Portugal e no Brasil estampou em dois artigos (um cá e outro lá) uma mesma ideia: o “aumento de brasileiros em Portugal antecipa nova era para a língua portuguesa” (e é este o título do artigo de opinião que publicou na Folha de S. Paulo, no passado dia 8), pois neste momento “a vida [por cá] acontece cada vez mais em ônibus que nos autocarros e a sede mata-se cada vez mais na geladeira que no frigorífico”, como escreveu no Jornal de Notícias de dia 9. Tal colunista, José Manuel Diogo (fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos), diz que “a nova proporcionalidade na convivência de falantes no território português confronta a língua e os seus estudiosos com uma necessidade de reinvenção”. E explica como: “Em uma primeira fase — já em curso — ela ocorre por apropriação de palavras e expressões brasileiras pelos portugueses, sobretudo por crianças e adolescentes. Mas brevemente, por imperativos de coabitação, será necessário definir-lhe um novo momento normativo”.
Estes “imperativos de coabitação” têm que se lhes diga. É próprio das línguas acumularem histórias de permeabilidade e absorção de termos alheios, um sintoma de vitalidade (leiam-se os notáveis livros de Fernando Venâncio ‘Assim Nasceu uma Língua’ e ‘O Português à Descoberta do Brasileiro’). Disso já sabemos. E sabemos também que, desde há séculos, esta língua que nos une (na raiz) e nos separa (no vocabulário, na fonética e na sintaxe), nunca foi obstáculo a um continuado entendimento. De nada vale, como alguns insistem, brandir vantagens ou supremacias. Portugal esgrimirá com a antiguidade (os seus 800 anos de história), o Brasil com a força demográfica (200 milhões de habitantes). Porém, como dizia Tom Jobim com outro propósito, “o homem constrói muros, mas o urubu passa por cima”. Ou seja, mesmo que mais termos brasileiros circulem entre nós, e só podemos saudar essa convivência, os equivalentes portugueses andarão a par, por fundas e arreigadas razões culturais.
Por mais gente que use o celular, não deixaremos de ter telemóvel, nem os muitos cafés da manhã substituirão os habituais pequenos-almoços. As lojas continuarão a vender frigoríficos, que em várias casas são tratados por geladeiras, o eléctrico é demasiado antigo para se tornar bonde e dificilmente os autocarros se transformarão em ônibus na gíria local, excepto para quem já os conhece dessa forma. Vivemos muito bem com estas diferenças, pelo que a “morte” do português europeu por osmose brasileira será bastante exagerada (lá vem o
Mark Twain).Isto no nosso quotidiano, claro (que é cotidiano no Brasil). Porque há já quem viva noutra galáxia. Veja-se o Google Maps. Nas preferências, tem, à escolha, 74 idiomas ou variantes, entre as quais “Português (Brasil)” e “Português (Portugal)” ou “Español (España)” e “Español (Latinoamerica)”. Se escolhermos o inglês, que só apresenta uma variante, “English (UnitedStates)”, onde estariam (em Portugal) ‘Paragem de autocarros’, ‘Paragem de eléctricos’, ‘Paragem de transportes públicos’, ‘Estação de metropolitano’ e ‘Estação de comboio’, estão ‘Bus stop’, ‘Tram stop’, ‘Transit stop’, ‘Subwaystation’ e ‘Trainstation’. Em francês, também há correspondência linguística para todas aquelas designações: ‘Arrêt de bus’, ‘Arrêt de tram’, ‘Arrêt de transportsencommun’, ‘Station de métro’, ‘Gare’. Tal como em italiano: ‘Fermatadel’autobus’, ‘Fermatadel’tram’, ‘Fermata’, ‘Stazionedella metropolitana’, ‘Stazione ferroviária’. Já o espanhol, em qualquer das variantes, não tem a mesma sorte. A ‘Paraje de autobús’ surge como ‘Bus stop’, à inglesa, tal como ‘Tram stop’ ou ‘Trans stop’. Só ‘Estación de metro’ e ‘Estación de tren’ respeitam o idioma escolhido.
Chegando ao português (PT e BR), temos uma misturada: ‘Ponto de ônibus’, ‘Ponto de bonde’, ‘Ponto de parada’ (todas à brasileira), ‘Estação de metropolitano’ e ‘Estação de comboios’ (onde, no Brasil, deveriam estar ‘Estação de metrô’ e ‘Estação de trem’). O Porto tem, bem assinalado, o Museu do Carro Eléctrico, mas nas suas paragens de eléctrico lemos “ponto de bonde”, como em Lisboa. O nome “autocarros”, aqui, está reservado aos veículos de longo curso. Por isso, em Lisboa o Google Maps assinala um ‘Terminal de autocarros’ junto ao Parque Terminal de Cruzeiros, enquanto no Rio de Janeiro existe também um ‘Terminal de autocarros’ — de resto, abundam os ônibus, já que o bonde carioca é hoje uma raridade.
Pois bem: na sua digital ignorância, o Google Maps põe-nos a andar de ônibus e de bonde, obrigando os brasileiros a trocarem o metrô e o trem pelo metropolitano e pelo comboio. Isto é coisa que se faça?
Nuno Pacheco
Jornalista. Escreve à quinta-feira[Transcrição integral (digitalização da edição em papel) de artigo publicado
pelo jornal “Público” em 16.02.23. “Links” meus.]
[post A língua brasileira é «língua oficial de Portugal», 13.02.23]