Dia: 12 de Abril, 2023

«Atrás dos tempos vêm tempos» [Ana Cristina Leonardo, “Público” 31.03.23]

Atrás dos tempos vêm tempos

Ana Cristina Leonardo

“Público”, 31.03.23

Se o mais provável; à medida que envelhecemos, é vermos aumentar o desajuste entre nós e mundo — escrevo provável, não inevitável — existem acontecimentos ou factos ou realidades que nos ilibam da acusação de “velhos do Restelo”, essa figura camoniana de um pessimismo “só de experiência feito”, talvez injustamente desamada.

Relembremos Billy Wilder, o homem que ao realizar Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) ou Avanti (Amor à Italiana, 1972) terá feito mais pela liberalização dos costumes do que os três longos dias de pândega em Woodstock.

Apesar disso, diria ele, cumpridos os seus setenta anos: “They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, | regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?”

Mais perto de nós, infelizmente também morto, Leonard Cohen, embora sem se congratular por ter estado alguma vez em dessintonia com os tempos, nem por isso deixaria de cascar no movimento hippie seu contemporâneo, numa entrevista que deu ao crítico João Lisboa corria o ano de 1994: “Depois apareceram os hippies que não me interessaram, sobretudo quando começaram a poluir os rios e a deixar lixo por todo o lado, quando iam para o campo adorar Deus e a Natureza, Eram péssimos campistas. Eu fui escuteiro, logo, posso dizê-lo”.

É da circunstância de serem invariavelmente verberadores que se extrai a comicidade dos velhos Marretas, mas The Muppets show vivia precisamente do exagero, do burlesco e do humor. Na vida real, os críticos arraigados e avançados na idade não costumam ter graça nenhuma. Dito isto, por seu turno, os bajuladores de toda e qualquer novidade avançados na idade são muitas vezes patéticos. Quando não danosos.

Veja-se o caso do argumento muito em voga na época — e usado por gente com mais do que idade para ter juízo — que insistiu em casar à contestação ao Acordo Ortográfico de 1990 da Língua Portuguesa com uma posição geracional. Jovens pelo sim. Velhos pelo não. Viu-se.

Os seus maiores promotores e defensores, já na altura somando décadas consideráveis, João Malaca Casteleiro, por Portugal, e Antônio Houaiss, pelo Brasil, foram, entretanto, fazer companhia a Billy Wilder e Leonard Cohen, o primeiro em 2020 com 83 primaveras, o segundo em 1999 com idade idêntica. E mesmo descontando o tempo decorrido entre a aprovação do AO pelos deputados da República e a morte dos dois linguistas, mostra-se difícil imaginá-los em 1999 a hastear o texto do Acordo com o mesmo sorriso largo com que o então jovem Daniel Cohn-Bendit encarou a cova dos leões em Maio de 68.

Escusado será dizer que jovens e velhos podem ser igualmente irritantes. Sobre o assunto, nada como ler Diário da Guerra aos Porcos do argentino Adolfo Bioy Casares (Cavalo de Ferro, 22 edição, 2015). E que me perdoem se por acaso repito a recomendação: é assacá-la à idade.

Por falar em Argentina e em Adolfo Bioy Casares, leio que quem morreu foi Maria Kodama, mulher e herdeira de Jorge Luis Borges (grande amigo de Casares), cujos traços asiáticos eram menos acentuados dos que os de Yoko Ono — o que é natural, dado que ambos, mãe e pai de Yoko eram japoneses, enquanto Kodama nasceu de pai alemão e mãe natural de Tóquio imigrada para Buenos Aires. Foi ao ler a notícia da sua morte que me lembrei de um apaixonado espanhol coleccionista de Borges que há muitos, muitos anos — ainda existia a Livraria Castil de Alvalade em Lisboa e o livreiro Miguel Bastos não se tinha apagado para sempre numa malfadada estrada a caminho de Coruche –, após comprar todas as traduções em português do autor de O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, ficou por ali, indiferente ao pó dos livros e ao meu horário de saída, queixando-se de Kodama com uma veemência que Maomé não pôs na condenação do toucinho, nem os fãs dos Beatles nas críticas a Yoko Ono ou outros descerebrados a Salinger.

Todo este intróito, que vai longo e saiu particularmente enlutado, serve, claro, para me antecipar às acusações de catastrofista.

Porque o caso é este: ao mesmo tempo que em Portugal — em Vizela, mais precisamente — se inaugura uma mais do que ridícula estátua a António Guterres — ficamos sem palavras para descrever aquele susto de quatrocentos quilos e dois metros de altura encomendado pela Câmara Municipal a uma empresa amiga, um Guterres com papeira, calças a fugir à polícia e raquitismo nas extremidades –, do outro lado do mundo, o extraordinário David de Miguel Ângelo causa polémica numa escola cristã da Florida, levando à demissão da directora.
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