«Atrás dos tempos vêm tempos» [Ana Cristina Leonardo, “Público” 31.03.23]

Atrás dos tempos vêm tempos

Ana Cristina Leonardo

“Público”, 31.03.23

Se o mais provável; à medida que envelhecemos, é vermos aumentar o desajuste entre nós e mundo — escrevo provável, não inevitável — existem acontecimentos ou factos ou realidades que nos ilibam da acusação de “velhos do Restelo”, essa figura camoniana de um pessimismo “só de experiência feito”, talvez injustamente desamada.

Relembremos Billy Wilder, o homem que ao realizar Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) ou Avanti (Amor à Italiana, 1972) terá feito mais pela liberalização dos costumes do que os três longos dias de pândega em Woodstock.

Apesar disso, diria ele, cumpridos os seus setenta anos: “They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, | regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?”

Mais perto de nós, infelizmente também morto, Leonard Cohen, embora sem se congratular por ter estado alguma vez em dessintonia com os tempos, nem por isso deixaria de cascar no movimento hippie seu contemporâneo, numa entrevista que deu ao crítico João Lisboa corria o ano de 1994: “Depois apareceram os hippies que não me interessaram, sobretudo quando começaram a poluir os rios e a deixar lixo por todo o lado, quando iam para o campo adorar Deus e a Natureza, Eram péssimos campistas. Eu fui escuteiro, logo, posso dizê-lo”.

É da circunstância de serem invariavelmente verberadores que se extrai a comicidade dos velhos Marretas, mas The Muppets show vivia precisamente do exagero, do burlesco e do humor. Na vida real, os críticos arraigados e avançados na idade não costumam ter graça nenhuma. Dito isto, por seu turno, os bajuladores de toda e qualquer novidade avançados na idade são muitas vezes patéticos. Quando não danosos.

Veja-se o caso do argumento muito em voga na época — e usado por gente com mais do que idade para ter juízo — que insistiu em casar à contestação ao Acordo Ortográfico de 1990 da Língua Portuguesa com uma posição geracional. Jovens pelo sim. Velhos pelo não. Viu-se.

Os seus maiores promotores e defensores, já na altura somando décadas consideráveis, João Malaca Casteleiro, por Portugal, e Antônio Houaiss, pelo Brasil, foram, entretanto, fazer companhia a Billy Wilder e Leonard Cohen, o primeiro em 2020 com 83 primaveras, o segundo em 1999 com idade idêntica. E mesmo descontando o tempo decorrido entre a aprovação do AO pelos deputados da República e a morte dos dois linguistas, mostra-se difícil imaginá-los em 1999 a hastear o texto do Acordo com o mesmo sorriso largo com que o então jovem Daniel Cohn-Bendit encarou a cova dos leões em Maio de 68.

Escusado será dizer que jovens e velhos podem ser igualmente irritantes. Sobre o assunto, nada como ler Diário da Guerra aos Porcos do argentino Adolfo Bioy Casares (Cavalo de Ferro, 22 edição, 2015). E que me perdoem se por acaso repito a recomendação: é assacá-la à idade.

Por falar em Argentina e em Adolfo Bioy Casares, leio que quem morreu foi Maria Kodama, mulher e herdeira de Jorge Luis Borges (grande amigo de Casares), cujos traços asiáticos eram menos acentuados dos que os de Yoko Ono — o que é natural, dado que ambos, mãe e pai de Yoko eram japoneses, enquanto Kodama nasceu de pai alemão e mãe natural de Tóquio imigrada para Buenos Aires. Foi ao ler a notícia da sua morte que me lembrei de um apaixonado espanhol coleccionista de Borges que há muitos, muitos anos — ainda existia a Livraria Castil de Alvalade em Lisboa e o livreiro Miguel Bastos não se tinha apagado para sempre numa malfadada estrada a caminho de Coruche –, após comprar todas as traduções em português do autor de O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, ficou por ali, indiferente ao pó dos livros e ao meu horário de saída, queixando-se de Kodama com uma veemência que Maomé não pôs na condenação do toucinho, nem os fãs dos Beatles nas críticas a Yoko Ono ou outros descerebrados a Salinger.

Todo este intróito, que vai longo e saiu particularmente enlutado, serve, claro, para me antecipar às acusações de catastrofista.

Porque o caso é este: ao mesmo tempo que em Portugal — em Vizela, mais precisamente — se inaugura uma mais do que ridícula estátua a António Guterres — ficamos sem palavras para descrever aquele susto de quatrocentos quilos e dois metros de altura encomendado pela Câmara Municipal a uma empresa amiga, um Guterres com papeira, calças a fugir à polícia e raquitismo nas extremidades –, do outro lado do mundo, o extraordinário David de Miguel Ângelo causa polémica numa escola cristã da Florida, levando à demissão da directora.

Três pais indignaram-se é argumentando não terem sido informados de que os seus rebentos (a frequentar o sexto ano) iriam ser expostos àquela obra do demo — um deles classificou-a mesmo como pornográfica — à pobre da directora não restou se não apresentar a demissão.

“David” (1504), de Michelangelo Buonarroti (1475-1564)

Longe de mim defender que a repulsa por David é o lado simétrico do insulto em bronze a Guterres (e às regras mais básicas da proporção). Mas antes de ser acusada de estar a tomar a árvore pela floresta, reflicta-se sobre o “clima cultural” que vem permitindo a plantação de monos grotescos de Norte a Sul do país, incluindo ilhas adjacentes, enquanto obras-primas vão sendo censuradas por todo o lado para não ofender o público sensível (tapam-se estátuas, condena-se a publicação de nus, retiram-se livros das bibliotecas, etc.).

O que também está muito em alta são os “leitores sensíveis”. Embora não seja de hoje, a revisão de textos autorais que se vêem expurgados de vocabulário ou passagens consideradas problemáticas — em nome do combate ao racismo, misoginia, homofobia, gordofobia… — é actualmente defendida com grande à-vontade, nomeadamente no que diz respeito aos livros infanto-juvenis, como uma prática normal e pedagógica, garante de que os infantes de hoje serão adultos exemplares amanhã.

Sendo sabido que pôr uma criança em contacto com livros nos quais, por exemplo, caçar leões ou lobos ou ursos lhes é apresentado como actividade normal, não censurável, constitui meio caminho andado para mais tarde seguirem os passos do ex-Rei de Espanha e tornarem-se assassinos de elefantes, nada como oferecer-lhes apenas, desde a mais tenra idade, obras edificantes sobre a irmandade das espécies. Outro exemplo: A Bela Adormecida, texto que transmite uma visão do feminino desactualizada — recorde-se o beijo do príncipe em momento algum antecedido de permissão — também será de evitar.

O proselitismo do Bem — pedra de toque de todo e qualquer puritanismo — abarca, pois, tanto os pais conservadores da Florida que consideraram pornográfica a estátua de Miguel Ângelo e inaceitável que os seus filhos a vissem, como os mais paranóicos radicais ‘woke’ capazes de descobrir debaixo de cada pedra uma realidade ou motivação censuráveis.

Entretanto, os tempos pouca importância dão às estátuas e aos livros.

O grande tema é hoje a possível proibição no mundo ocidental do TikTok. A aplicação já foi banida a nível federal dos dispositivos dos funcionários, tanto nos EUA como em Bruxelas, e discute-se agora à sua censura total.

A plataforma apresenta problemas idênticos às das outras plataformas. Recolha de dados privados; multiplicação algoritmica de conteúdos mesmo que assentes em notícias falsas: viciamento dos utilizadores; problemas de aprendizagem e emocionais em menores de idade, etc, etc,

Comparativamente, o único problema do TikTok é ser chinês. Shou Zi Chew, o patrão do TikTok, chamado ao Congresso norte-americano, bem tentou sacar da biografia para acalmar as hostes. Que nascera em Singapura, que estudara em Inglaterra, que não tinha quaisquer laços com o Partido Comunista Chinês. Não convenceu. Durante mais de seis horas foi respondendo a questões que nem sempre tinham a ver com a plataforma e o tom foi tudo menos amigável. “TikTok é uma arma do Partido Comunista para espiar as gerações jovens. A plataforma deve ser banida. TikTok é um espião que os americanos transportam no bolso”, afirmaria a congressista republicana Cathy Rodgers.

Volto a Wilder: “Quem diabo quer estar em sintonia com estes tempos?”

Ana Cristina Leonardo

[Transcrição integral (a partir da edição em papel) de artigo da autoria de Ana Cristina Leonardo.
Versão online (“a pagantimus”) no jornal “Público” de 31.03.23.
Acrescentei destaques, “links” e imagens.
Grafismo de topo da página Wook da autora.]

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