Dia: 15 de Maio, 2023

O sabor da língua

Repete-se agora, ipsis verbis, com exactamente os mesmos pressupostos, um extracto do que já funcionou como introdução a um outro texticulo do mesmo autor, em 15.11.21:

«Na verdade, o brasileiro que assina a peça agora reproduzida (em baixo), tenta fazer-se passar por amigalhaço dos “tugas” em geral e principalmente por “cámárádjinha” dos “tugazinhos”, mas o objectivo real do textículo não passa, como sempre, de servir como panfleto propagandístico enaltecendo os putativos méritos da aniquilação não apenas da Língua Portuguesa escrita, via AO90, essa arma de destruição maciça, como também a eliminação da Língua propriamente dita: depois da ortografia, o léxico, a construção frásica, a morfologia, toda a Gramática, qualquer tipo de norma do Português… incluindo a prosódia (ortoépia), a fonética, a própria acústica articulatória.» [post Cefalópodes de colecção”]

Aparentemente, até poderia ser este um dos muitos adversários do AO90 (reais, não fingidos ou oportunistas), de entre aqueles que, no Brasil, não têm quaisquer pruridos em assumir que a língua nacional da República Federativa é o brasileiro e já não o Português. Pura e simples aparência, creio, se atendermos à profusão de alçapões conceptuais em que o indivíduo mergulha com indisfarçável gozo e também à desfaçatez com que articula uma “tese” estranhíssima e confusa — afirmando qualquer coisa e o seu contrário, por vezes na mesma frase — sobre exactamente coisíssima nenhuma.

Se atendermos apenas ao título da sua publicação mais conhecida (devo confessar a minha ignorância na matéria, aliás nem sei se o dito indivíduo alguma vez terá publicado outro livrito), este ao menos assume de caras que a língua brasileira já ultrapassou a fase da autonomização e, por conseguinte, constitui hoje um corpus linguístico totalmente independente, com o seu próprio léxico e a sua própria, característica, específica (ausência de) gramática.

Infelizmente, como se constata amiúde pelo afã com que os “nossos” governantes persistem em “adotar” uma língua estrangeira, ainda não são nem muitos nem muito claros aqueles que já nem tentam disfarçar a neo-colonização política, económica, linguística e cultural em curso.

O sabor do português falado no Brasil

Sérgio Rodrigues

 

O último dia 5 de maio, quando se comemorou o Dia Mundial da Língua Portuguesa, foi a deixa para mais uma série de repetições de um clichê enjoativo de grande sucesso em Portugal: “Os brasileiros falam português com açúcar”.

No departamento dos chavões deslavados, trata-se de um dos benignos. Costuma ser empregado em nossa defesa, por assim dizer, para apontar o que haveria de doce e sedutor numa fala cheia de vogais arreganhadas e gerúndios curvilíneos.

Se as escaramuças entre o português lusitano e o português brasileiro têm feito muita fumaça por lá nos últimos anos, alimentadas por fatores como resistência ao Acordo Ortográfico, imigração em massa e sucesso de youtubers, o “português com açúcar” parece uma tentativa — paternalista, mas não se pode ter tudo — de adoçar amarguras.

Simpático ou não, chavão é. De tanto topar com ele — inclusive usado com cômica solenidade por quem acredita enunciar uma sacada nova e genial —, fui ficando intrigado. Preocupado também: se o português falado por 80% dos lusoparlantes do mundo for tão açucarado, periga nossa língua estar diabética.

Duvido que tão elevada taxa de glicose estivesse nos planos do português Eça de Queirós quando lançou as bases desse lugar-comum na revista satírica “As Farpas”, em 1872, ao mencionar “aquela estranha linguagem, que parece português — com açúcar”.

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“Engenho de Açúcar” (c. 1808-15), de Koster, imagem presente no livro ‘Adeus, senhor Portugal’ – Reprodução

Sim, o grande escritor se referia ao português falado no Novo Mundo. O texto traçava uma caricatura do “brasileiro”, tipo ridículo de novo-rico — a princípio o retrato de um português bronco que tinha feito fortuna no Brasil e regressado, mas suficientemente ambíguo para que os brasileiros se vissem incluídos no quadro.

E se viram mesmo. Houve protestos, represálias contra portugueses radicados aqui, quase um incidente diplomático — o circo completo, porque as escaramuças vêm de longe. O artigo de Eça é notícia velha, mas dele ficou, agora com sinal positivo, o “português com açúcar”. Por quê?

Será que o português brasileiro soa meloso a ouvidos lusos? Pode ser, mas a prosa literária portuguesa contemporânea tem tolerância bem maior a floreios poético-sentimentais — por aqui entretemos vícios de outra ordem, mas um certo sabor amargo vem predominando.

Quem sabe o “português com açúcar” seja uma referência histórica? Um dos principais produtos, ao lado do ouro com que a colônia sul-americana enriqueceu Portugal até o início do século 19, fruto do trabalho de escravizados, o açúcar teria de alguma forma deixado resíduos na língua falada na terra dos engenhos.

Se a contribuição dos povos trazidos à força da África, sobretudo os do grupo linguístico banto, foi de fato gigante na formação da nossa língua, o açúcar branquinho não é a associação que os estudiosos da matéria preferem.

A professora baiana Yeda Pessoa de Castro, maior autoridade brasileira em africanismos, deu o sugestivo título de “Camões com Dendê” (Topbooks) ao livro em que condensa os estudos de uma vida inteira.

O azeite de dendê, de origem africana, é levemente adocicado, mas é mais do que isso. Vermelho e denso, pode ser encontrado em uma série de pratos típicos da culinária afrobrasileira — salgados e, quase sempre, apimentados também.

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Trabalhador colhe cacho de dendê em plantação no Pará – João Wainer –

Fica então a proposta de atualização do clichê eciano: o português brasileiro não tem só açúcar, mas também dendê, sal, pimenta, alho, urucum, tucupi e cachaça, entre outros ingredientes ainda não devidamente catalogados.

[Transcrição integral. Conservada a cacografia brasileira do original.
Destaques e “links” (a verde) meus.]