Homem culto é aquele que, de tudo a que assiste aumenta, não os seus conhecimentos, mas o seu estado de alma. O erudito lê e fica sabendo; quanto mais lê, mais fica sabendo. O homem culto, em geral, quanto mais lê de menos fica certo. A segurança e a confiança são atributos finais da erudição — como o cepticismo e a hesitação apanágio extremo da cultura. Uma erudição de lombada, como dizem os parvos, serve de mais a um culto, que uma leitura de miolo a um erudito. Um título pode fazer colher mais de toda a obra — dado que a alma nasça ceifeira — do que a leitura de toda ela. Nós não temos homens cultos; temos eruditos apenas. Ou, antes, os homens cultos que temos são homens de génio, o que é de mais para um povo tão pequeno. [“Arquivo Pessoa“]
Maluquices das traduções de português… para português
Por Nuno Pacheco
‘« (…) E quando se quer traduzir português para português, o que acontece? Um bom (mau) exemplo foi ali dado pela leitura de passagens de um clássico da literatura brasileira para crianças, O Menino Maluquinho, de Ziraldo, editado pela Melhoramentos em 1980, comparando-o com a adaptação para a edição portuguesa da Dinapress, de Abril de 1995. (…)»’
Não é novidade para ninguém que o português do Brasil é diferente do que se fala e escreve em Portugal. Ora, sendo antiga a convivência entre ambos, é também antigo o mau hábito de tentar adaptá-los, na escrita, quando há livros a cruzarem o Atlântico. Vem isto a propósito de uma colecção de contos infantis brasileiros de que já aqui se falou, publicada pela Tinta da China em colaboração com o Público (e em parceria com o Instituto Guimarães Rosa do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e com a Fundação Calouste Gulbenkian), e que teve no passado domingo sessão de lançamento na Feira do Livro de Lisboa. Prestes a chegar ao quinto volume, que sairá esta sexta-feira (Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato), há-de ter mais cinco a partir de Setembro (como foi ali anunciado) e tem a particularidade de respeitar as edições originais, sem adaptações no texto. O que, se devia ser norma no que toca a obras literárias escritas em português (seja de que país for), é quase uma raridade. Que empobrece, em lugar de enriquecer, o conhecimento das variantes que se têm desenvolvido na língua portuguesa.
E quando se quer traduzir português para português, o que acontece? Um bom (mau) exemplo foi ali dado pela leitura de passagens de um clássico da literatura brasileira para crianças, O Menino Maluquinho, de Ziraldo, editado pela Melhoramentos em 1980, comparando-o com a adaptação para a edição portuguesa da Dinapress, de Abril de 1995. A leitura de tais passagens foi feita pelo diplomata brasileiro Gustavo de Sá (que trazia as duas edições) e pela directora e fundadora da Tinta da China Bárbara Bulhosa. Vale a pena recordar algumas, a começar pelo título, que passou de O Menino Maluquinho para As Maluquices do Menino Maluquinho (primeiro citamos a versão original e depois a adaptação portuguesa). BR: «Era uma vez um menino maluquinho»; PT: «Era uma vez um menino maluquinho, travesso até mais não». BR: «Pra uns, era um uirapuru – pra outros era um saci»; PT: «Para uns, era um rouxinol – para outros, um espantalho». BR: «Na turma em que ele andava, ele era o menorzinho, o mais espertinho, o mais bonitinho, o mais alegrinho, o mais maluquinho»; PT: «No grupo em que ele andava, era o minorca, o mais espertinho, o mais bonitinho, o mais porreirinho, o mais maluquinho».
BR: «Se ele perdia um caderno no colégio (e ele perdia um caderno todo dia) era fácil encontrar seu dono»; PT: «Na escola, se aparecia um caderno sem dono, era mais que certo que o dono era ele». BR: «Depois entrava o menino com seu pé de vento e a casa ventava, os quartos cantavam e tudo se enchia de som e alegria. E a cozinheira dizia: “Chegou o maluquinho”»; PT: «Depois lá vinha ele qual ventania e por toda a casa era uma corrente de ar de vida e alegria. E a cozinheira dizia: “Este menino parece maluquinho e põe-nos malucos!”» BR: «Ele deitava e rolava, pintava e bordava e se empanturrava de bolo e cocada. E ria com a boca cheia e dormia cansado no colo da vovó suspirando de alegria. E a vovó dizia: “Este meu neto é tão maluquinho!”»; PT: «Ele corria e rebolava, saltava e cabriolava e também se empanturrava de bolo e de laranjada. E ria com a boca cheia e dormia cansado no colo da avó suspirando de alegria. E a avó dizia: “Este meu neto é maluquinho de todo!”». BR: «E a torcida ria e gostava de ver a alegria daquele goleiro. E todos diziam: “Que goleiro maluquinho!”» PT: «E a claque ria e gostava de ver a alegria daquele guarda-redes. E todos diziam: “O guarda-redes é maluco de todo!”»
A adaptação foi feita, não por qualquer principiante, mas por um autor consagrado da literatura para crianças em Portugal, António Torrado (1939-2021). Esfumando-se a musicalidade do original. Faz isto qualquer sentido? Como soaria Drummond de Andrade aportuguesado? E Fernando Pessoa abrasileirado? Há termos que desconhecemos? Pois bem: conheçamo-los. Bastava ir ao dicionário de José Pedro Machado para saber que cocada é um doce de coco; que uirapuru é um «passarinho cujo canto magnífico, reboante na floresta, lhe dá prestígio e lenda, dizendo-se que todos os alados quando o ouvem se calam e vão, atraídos, escutá-lo»; e que saci não é espantalho mas sim uma «entidade fantástica, negrinho de uma só perna, que, segundo a crença popular, persegue os viandantes ou lhes arma ciladas no caminho; usa barrete vermelho e frequenta à noite os brejos; também lhe chamam saci-cererê, saci-pererê ou matim-pererê.» Pererê, por sinal o nome desta colecção. Não é já altura de nos lermos como escrevemos, sem “traduções” que só servem para aumentar a ignorância em relação às variantes do português para lá do nosso?
Artigo do jornalista português Nuno Pacheco, transcrito do Público do dia 14 de Junho de 2023. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.
in Ciberdúvidas da Língua
Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/autores/nuno-pacheco/27/pagina/1 [consultado em 16-06-2023]
[Transcrição integral da transcrição integral publicada no “site” hiper-acordista “Ciberdúvidas”.
Imagem da estátua de Pessoa de: “Genuine Portugal Tours“.]
- «E quando se quer traduzir português para português, o que acontece?»
A pergunta é tão absurda quanto a resposta é impossível, dado tratar-se de mero expediente de retórica, uma espécie de contradictio in adiecto (ou contradição nos termos) utilizando para o efeito dois significantes iguais com significados diferentes: respectivamente (ou vice-versa): Português, um, e a língua brasileira, o outro. - «o português do Brasil é diferente do que se fala e escreve em Portugal»
A língua brasileira não é nem tem nada a ver com “português do Brasil”. Esta é uma expressão obsoleta em que apenas alguns persistem, provavelmente à falta de melhor “argumento” para continuarem a fingir que as duas línguas são uma só — a língua univérsáu brasileira. - «o mau hábito de tentar adaptá-los, na escrita, quando há livros a cruzarem o Atlântico»
Reduzir a questão aos “livros a cruzar[em] o Atlântico” parece circunscrever a dimensão da clivagem entre o Português e o brasileiro — essa sim, irreversível –, mas não passa disso mesmo: parece. Não só os livros mas tudo aquilo que atravessa o Atlântico é traduzido de Português para brasileiro. Traduzido, legendado ou até “dublado“. - «a particularidade de respeitar as edições originais, sem adaptações no texto»
A tradução de Português para brasileiro (de brasileiro português não há, decerto por falta de tradutores habilitados) não é “adaptação”, é tradução. - «o conhecimento das variantes que se têm desenvolvido na língua portuguesa»
O conceito de “variante”, em linguística, restringe-se a fonética (desvios ou variações em relação a ortoépia) e a léxico; não engloba, de forma alguma, nem a norma ortográfica nem, ainda menos, a sintaxe. Variantes da Língua Portuguesa são as de cada um dos PALOP. O brasileiro é uma língua originária do Português (e do Inglês, do Espanhol, do Italiano, das línguas indígenas locais), não é uma “variante” de coisa alguma. - «Como soaria Drummond de Andrade aportuguesado? E Fernando Pessoa abrasileirado?»
Soaria a… ridículo. Mas de um ridículo sem piada de espécie alguma. Aliás, é precisamente a esse tipo de pesadelo que estamos cada vez mais sujeitos, todos nós. “Abrasileirar” Fernando Pessoa — ou qualquer outro autor português — é uma impossibilidade técnica. Seria uma imbecilidade equivalente a “aportuguesar” em vez de traduzir, por exemplo, Balzac, Steinbeck, Kurosawa, Solzhenitsyn ou Cervantes.
[Nota 1: a cópia da cópia dos hiper-acordistas não permite transcrição dos “links” constantes das suas publicações; apenas é possível copiar e colar texto, sem hiperligações ou formatações. Evidentemente, quanto às formatações ainda vamos indo mas, quanto às hiper-ligações hiper-acordistas do “site” hiper-acordista, era só que mais faltava estar a copiá-los um por um. Quem quiser que vá lá.]
[Nota 2: o original publicado pelo jornal está, como aliás todos os conteúdos do “Público”, inacessível a não-assinantes.]
[Nota 3: o título deste post é um simples lembrete. São três palavrinhas da tradução para brasileiro citada no texto transcrito. Para não se me varrer da memória acrescentar aquilo ao Dicionário de Brasileiro-Português.]