Já não é só recorrente. Nem só obsessivo. Será enjoativo, portanto, ou nauseabundo, se quisermos adjectivar o assunto com alguma precisão escatológica, digamos, já que a mistela vai sendo servida às carradas e em camadas sucessivamente requentadas. O facto é que a agenda das palavras, dos palavros e des palavres (ou dxs pxlxvrxs) ameaça tornar-se “prato” único — em Portugal e no Brasil, porque nos PALOP ninguém se dedica a inventar problemas –, servido até à náusea a uma clientela apesar de tudo heterogénea e, pelo menos parte dela, com idade para ter juízo — ou ao menos algum tento na bola, vá.
Isto apenas interessa para aqui enquanto aparte (não***, o nome do “Apartado 53” não adveio de qualquer aparte nem do verbo “apartar”) e na medida em que a agenda do sexo dos anjos, digo, das palavras tenha algo a ver com a do neo-colonialismo brasileirista em geral ou com o seu veículo primordial, o #AO90, em particular.
Tendo em atenção que — desde a imposição manu militari da “língua universau” brasileira” — os donos da língua (a começar pela designação “língua portuguesa”, da qual se apossaram) são os brasileiros e os seus lacaios tugas, assim como quem ditou a eliminação da gramática do Português foram eles, também são eles quem agora determina — por telefone, por SMS, quem sabe se por telepatia — as “regras” da língua que os (ir)responsáveis políticos portugueses “adotaram”. Portanto, se no Brasil as palavras passam administrativamente a ter sexo (“gênero”, em brasileiro), então Portugal faz o costume, ou seja, baixa a bolinha, agacha-se, põe-se na sua posição favorita — só de cócoras, vá, que a outra, assim à descarada, na tugaria felizmente poucos se atrevem, deve ser por acanhamento.
“A língua não deve servir apenas um passado”, mas há resistência à mudança: afinal o que é linguagem inclusiva? Cinco perguntas e respostas
“Todxs”, “el@s”, “amigues”, “eli”, “elu”. Multiplicam-se as propostas para tornar a Língua Portuguesa mais inclusiva e neutra. Mas que argumentos há para a mudança? E o que dizem os linguistas sobre o futuro do Português?
Cláudia Monarca Almeida
“Expresso”, 30.06.23Numa sala com dez, cem ou mil mulheres, basta entrar um homem para o “todas” passar a “todos”, “elas” virar “eles”, “amigas” ser “amigos”. A Língua Portuguesa evoluiu assim, mas faz sentido ser assim?
“A linguagem é um reflexo da sociedade em que nós vivemos e se apagamos pronomes femininos, estamos também a apagar pessoas”, argumenta Ary Zara (ele). “Esta seria a primeira luta: dentro deste sistema que foi criado binário, nós conseguirmos pelo menos incluir os dois géneros que são aceites legalmente.”
Mas a linguagem inclusiva é mais que isto, defende o activista. É “olhar em redor e conseguirmos incluir o maior número de pessoas e utilizar as palavras correctas que não as agridam quando nos referimos a elas.”
E acrescenta: “Não sei se alguma vez [a linguagem neutra] terá lugar na nossa língua, porque existe um grande apego. É quase um patriotismo, um nacionalismo que eu não consigo compreender. Nós não somos as mesmas pessoas que éramos há 20 anos. Portugal está um país diferente. Nós temos cada vez mais pessoas de todas as partes do mundo, pessoas com diferentes identidades e a língua deve servir todas as pessoas. A língua não deve servir uma terra ou apenas um passado.”
Por isso defende a necessidade de “uma mudança” que permita “reflectir a sociedade em que nos enquadramos”. Para que pessoas como histórias como a sua, para quem adoptar um pronome é um processo, também se revejam na língua que falam todos os dias.
“Quando nasci decidiram que eu deveria ser mulher e sempre fui tratado com pronomes femininos. Quando comecei a estudar mais o género a nível social, comecei a perceber que se calhar outros pronomes eram mais confortáveis para mim.”
Há cerca de sete anos, Ary Zara tentou utilizar pronomes neutros. “Acabei por abandonar, porque acabava por ser uma dificuldade ainda maior. Eu via as pessoas a lutar para conseguirem corresponder e isso também me deixava desconfortável. E então acabei por adoptar pronomes masculinos, por se enquadrarem mais com a imagem que eu apresentava, mas nem por isso com o meu género.”
A discussão sobre a linguagem inclusiva não é exclusiva a Portugal. No Brasil, ainda esta semana, instalou-se a polémica em torno do cantor Djavan, por supostamente ter usado linguagem neutra na promoção dos seus concertos. Tratava-se, afinal, de um anúncio escrito em catalão, por o concerto ser em Barcelona. Neste eram referidas “últimes entrades”, anunciando os últimos bilhetes disponíveis para o espectáculo. Também no mundo anglo-saxónico, o pronome “they” é cada vez mais frequentemente utilizado como pronome neutro.
Mas que espaço há na Língua Portuguesa para mudança? Para mais inclusão? O Expresso foi ouvir especialistas em linguística sobre este assunto.
1. Há consenso entre especialistas sobre a linguagem inclusiva?
Nem por isso, dizem-nos o investigador e a investigadora ouvidos pelo Expresso. “Esta questão talvez tenha tido mais mais um destaque nos últimos anos, mas é uma questão que não é nova e questões deste género sempre existiram na no debate sobre a utilização da linguagem”, diz Rui Sousa Silva (ele), coordenador do Centro de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
“Há sensibilidades diferentes”, até porque existem diversas “concepções do que é a linguagem”, corrobora Maria Antónia Coutinho (ela), investigadora do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa (CLUNL). O especialista e a especialista ouvidos pelo Expresso, por exemplo, abordam a linguagem pela sua vertente social e pela forma como a linguagem surge aplicada.
“Há quem diga que esta questão não faz sentido, que não é importante. Há linguistas que dizem que a questão da língua não tem nada a ver com as preocupações sociais. Há quem diga que há muitos problemas de desigualdades e que a linguagem não é o mais importante. É evidente que há problemas mais graves. Isso não significa que não nos preocupemos com outros que são muito importantes, na medida em que reiteram estereótipos e perpetuam-nos ao criarem uma invisibilidade total”, defende a investigadora do CLUNL.
Do ponto de vista do que é a gramática do Português, a questão é inequívoca. O que vem nos manuais é que existem dois géneros – feminino e masculino – e é o segundo que deve ser utilizado como genérico.
“Temos aquilo que nós aprendemos na escola, que é uma certa imposição da norma da língua, mas nós sabemos que a linguagem é muito mais do que a norma”, defende Rui Sousa Silva. A língua tem vários registos, argumenta. Na oralidade, as pessoas utilizam a língua de forma diferente da escrita. O registo formal de uma conversa é muito diferente do informal. Utilizar um registo fora do contexto causa até estranheza.
“A gramática prescritiva, que é aquela que nos diz quais são as normas, é bastante conservadora, mas todos os dias vemos prevaricação (termo técnico da linguística) e ninguém é condenado por isso. Faz parte do processo natural da linguagem.”
E por isso, diz Rui Sousa Silva, as discussões sobre o uso da linguagem são uma questão que permanece sempre em aberto. “Do ponto de vista científico, a discussão naturalmente não se vai esgotar aqui”. O debate começou por um questionamento sobre a imposição do masculino sobre o feminino enquanto o genérico, “mas agora estamos a perceber que este binarismo não resolve todos os problemas”, explica. Por isso, é natural que com as próprias mudanças da sociedade, surjam novas questões. (mais…)