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Nasceu o primeiro bebé em Portugal com recurso a inseminação pós-morte
Guilherme nasceu esta quarta-feira no Centro Materno-Infantil, no Porto. Ângela Ferreira, a mãe, anunciou o nascimento nas redes sociais.
Alexandra Campos e Rita Ferreira
“Público”, 16 de Agosto de 2023Tem o nome do pai, Hugo, e o outro nome que o pai escolhera para ele antes de morrer, Guilherme. Hugo Guilherme nasceu esta quarta-feira às 11h09 no Centro Materno-Infantil do Norte, por cesariana, com 3,915 quilos e 50,5 centímetros de comprimento. É o primeiro bebé concebido em Portugal com sémen preservado de dador falecido.
“Hoje o nosso mundo ficou mais iluminado, o Guilherme nasceu pelas 11:09 com 3,915 kg e 50.5 cm. É um rapagão cheio de saúde ???? obrigada meu amor Hugo Neves Ferreira por me teres escolhido para este sonho! Tão mágico que foi, que está a ser.” Esta foi a mensagem que Ângela Ferreira, a mãe, partilhou nas redes sociais horas após o nascimento do seu filho, uma notícia avançada pela TVI.
Em Fevereiro deste ano, após dois tratamentos que falharam, Ângela anunciou que estava grávida do marido, que morrera com cancro em Março de 2019. Hugo deixara escrito que autorizava Ângela a utilizar o sémen que criopreservou antes de iniciar os tratamentos oncológicos. E ela conseguiu engravidar através de uma fecundação ‘in vitro’. “Foram anos de luta, o processo foi longo e moroso… mas finalmente conseguimos! É com uma alegria enorme e com o coração cheio que partilho que batem dois corações dentro de mim”, revelou, então, no Instagram.
Antes de morrer vítima de cancro aos 29 anos, Hugo tinha procedido à recolha e criopreservação de esperma no Centro Hospitalar e Universitário de São João (Porto), onde estava a ser tratado. E autorizou, num documento escrito, que a mulher continuasse os tratamentos para engravidar após a sua morte.
Ângela protagonizou a batalha pela legalização da inseminação ‘postmortem’ em Portugal. Foi a divulgação da história desta cabeleireira do Porto numa série documental da TVI, em 2020, que originou um amplo debate e mobilização a nível nacional que acabaria por levar à mudança da lei de procriação medicamente assistida (PMA), datada de 2006, e que interditava a concepção de embriões com material genético de dador falecido.
A alteração começou por ser impulsionada por uma petição, seguida de uma iniciativa legislativa de cidadãos, que em poucos dias reuniu o número mínimo de assinaturas necessário para ser discutida e votada na Assembleia da República. Aprovada em Março de 2021, a alteração da lei abriu a porta à concepção e nascimento de Hugo Guilherme. “É um rapagão cheio de saúde”, descreveu esta quarta-feira Ângela, confessando que agora se vai isolar “nesta bolha de amor e aproveitar o máximo”.
A iniciativa legislativa levou a que o PS, o Bloco de Esquerda e o PCP apresentassem projectos de lei no mesmo sentido no Parlamento, onde a alteração à lei da PMA acabou por ser aprovada em Março de 2021, com os votos contra do PSD, do CDS e a abstenção de cinco deputados socialistas.
Até então, havia uma discriminação incompreensível, uma vez que a lei da PMA permitia a inseminação de embriões após a morte e não havia qualquer obstáculo quando estava em causa a utilização de sémen de dador anónimo, que, em teoria, poderia estar vivo ou morto, ao mesmo tempo que não dava esse direito quando o dador era alguém com quem a mulher vivera e deixara expressa a vontade de ter um filho em comum. Ou seja, Ângela poderia recorrer a um dador anónimo para ser mãe, mas não podia utilizar o esperma criopreservado do marido.
[Transcrição integral. Destaques e “links” meus.]
O bebé Guilherme nasceu no dia 16 de Agosto de 2023. Longa vida ao Guilherme, com saúde e alegria, é o que se deseja!
Ainda antes de vir ao mundo já o Guilherme tinha uma longa história, complicada história, difícil história, aliás muito mais difícil do que “apenas” o que implicam as condições naturais que uma grávida enfrenta ao longo dos nove meses de gestação. Pelo contrário, a luta do Guilherme pelo direito de nascer começou antes mesmo da própria concepção. Luta essa em que se empenhou sua Mãe, bem entendido, com denodo e coragem, tendo por base a vontade expressa de Hugo Neves Ferreira, seu marido e pai da criança, anteriormente falecido.
Felizmente, desta vez tudo correu bem: de um ponto de vista meramente fisiológico, ou clinicamente falando, que se saiba não existiu qualquer percalço e, se virmos o caso de uma perspectiva meramente legal, igualmente acabou por correr pelo melhor. O imbróglio jurídico implícito, complexo e de abordagem delicada, acabou por se resolver a contento: foi aprovada no Parlamento uma Lei, promovida não pelos deputados ou pelo Governo mas antes por um grupo de cidadãos, permitindo a fecundação in vitro com o sémen do progenitor defunto.
O mecanismo jurídico que possibilitou, neste caso, a fecundação e a consequente gravidez que viria a resultar em parto, evidentemente, é a chamada Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC), regulada pela Lei 17/2003:
Artigo 1.º
Iniciativa legislativa de cidadãos
A presente lei regula os termos e condições em que grupos de cidadãos eleitores exercem o direito de iniciativa legislativa junto da Assembleia da República, nos termos do artigo 167.º da Constituição, bem como a sua participação no procedimento legislativo a que derem origem.
Ora, e aqui está razão deste “post”, sucedeu in illo tempore que igualmente com base nesta Lei foi lançada em 8 de Abril de 2010 a “Iniciativa Legislativa de Cidadãos pela revogação da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990” (ILCAO).
Exactamente da mesma forma, com os mesmíssimos procedimentos e obedecendo de igual ao modo a todos os requisitos legais, formais e procedimentais, esta outra ILC não teve — de forma alguma — nem o mesmo tratamento nem qualquer tipo de receptividade por parte dos deputados do Centrão — afinal, quem tudo decide, quer, pode e manda — que assentam suas ilustres nádegas nas cadeiras da (mesma, note-se bem) Assembleia da República que agora apreciou e aprovou a ILC pela fecundação post mortem.
As diferenças de tratamento entre o projecto de lei de 2023 e o projecto de lei de 2019 são absolutamente aberrantes, qualquer que seja o plano em que analisemos o sucedido. Depois de cumpridas todas as formalidades e providenciados todos os requisitos legais, a ILCAO adquiriu forma de Projecto de Lei (n.º 1195/XIII) mas este não chegou sequer a ser discutido em plenário, apesar do parecer (evidentemente) favorável dos serviços parlamentares competentes.
O truque habitual, tão em voga neste regime dito de “democracia parlamentar”: quando algo não convém a uma das seitas alternadeiras (ou a ambas, como no caso do #AO90), passa-se o assunto a uma Comissão X; esta emite uma coisa em papel a que chamam “parecer”, puro verbo de encher que se resume à frase final, ou seja, a essa Comissão X “parece” que o melhor será passar o assunto à Comissão Y; esta, por seu turno, despacha que, “no parecer desta Comissão” o assunto deverá ser analisado pela Comissão Z.
E ainda, pelo meio das comissões XYZ, os tipos da “douta opinião” e dos “penso eu de que” vão encomendando outros pareceres de “independentes” (lá do Partido, claro, compinchas, camaradas, uns gajos porreiros) e fingem que “solicitam” à Comissão Representativa da ILC que ela também arranje uns bacanos para que a eles igualmente “pareça” alguma coisinha — que ignorarão olimpicamente, é claro, mas assim faz de conta que “isto” é uma democracia.
E pronto, com esta dança dos pareceres o tempo vai passando, lá chegará fatalmente o dia em que a ILC “aborrecida” ultrapassará o prazo de validade, como os yogurts, ou então arranja-se sempre um pretexto — formal ou informal, não importa — para forçar a prescrição e por fim o (para eles, abençoado) arquivamento.
A ILC-AO foi sujeita a todo esse processamento, sistema de liquidação e trituração “democrática” — até ao envio para o cemitério de incómodos, vulgo, arquivo morto. A pázada final atirada para cima da campa foi, até porque aquela cambada já não sabia mais o que inventar e o raio do yogurt continuava fresco, encarregar a Comissão de Assuntos Constitucionais (CACGDL) de alegar que a ILC, apesar de aceite pelo Parlamento e transformada em Projecto de Lei pelo mesmo Parlamento, era… anti-constitucional.
- O conteúdo do Projecto de Lei n.º 1195/Xlll, visando a desvinculação de Portugal de uma convenção internacional[mentira descabelada; o Projecto de Lei constante da ILC-AO visa apenas revogar a RAR 35/2008, que aprova o 2.º Protocolo], não traduz o exercício de competências legislativas da Assembleia da República, pelo que não cumpre os requisitos constantes da Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, não devendo, consequentemente, ser admitida a sua tramitação, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º da referida lei.
- Ainda que o recurso à iniciativa legislativa de cidadãos não se afigure apto à realização do propósito dos subscritores do presente Projecto de Lei, os cidadãos têm ao seu dispor outras ferramentas da democracia participativa, em especial o exercício do direito de petição[brincadeira; isto é puro gozo] junto da Assembleia da República, para que esta recomende ao Governo a adopção das medidas desejadas, ou directamente junto do próprio executivo.
Em devido tempo dei aqui nota de mais esta golpada:
Foi uma década de contactos entre a Assembleia da República e os promotores da Iniciativa, mais de um ano desde a entrega formal de toda a documentação, depois de infindável troca de correspondência com a Divisão de apoio ao Plenário (DAPLEN) e de inúmeras reuniões com os partidos políticos com representação parlamentar. Percorrida toda uma longa caminhada, por etapas, incluindo verificações da conformidade da Iniciativa, de todos os pontos de vista legais e formais (chegaram a instar a ILC-AO a que apresentasse mais assinaturas para compensar as por eles consideradas como inválidas!), pois mesmo assim, no fim de tudo, quando já só se aguardava o agendamento da discussão e votação da Iniciativa em Plenário, eis que alguns deputados tiram da manga, de repente e à pressa, uma figura legal obscura, baseada numa inacreditável manobra ad-hoc para impedir a ILC-AO de chegar sequer a ser discutida.
E, ainda, porque de facto fui inteiramente responsável por ter caído no logro, apresentei igualmente aqui o meu mais sincero — se bem que imensamente constrangido pela estupidez que foi ter acreditado no tal sistema “democrático” — pedido de desculpas:
Por conseguinte, enquanto autor, mentor e 1.º subscritor da ILC-AO, pois com certeza, pelo que me diz respeito aqui fica o meu mais pungente (se bem que revoltado) pedido de desculpas a todos aqueles que porventura, por desconhecimento dos mais recentes acontecimentos e já perdidos no emaranhado de confusões, sabotagens e golpes baixos de uns quantos deputados, se sintam de alguma forma traídos em todo este longo e sinistro, kafkiano processo.
Caberá agora a cada qual, de posse destes dados, que suponho para algumas pessoas sejam absoluta novidade, discernir as razões políticas subjacentes à radical diferença de tratamento entre a ILC pela fertilização post mortem e a ILC pela revogação da entrada em vigor do #AO90.
O sentimento de incredulidade e até de revolta, o que ocorrerá pelo menos em alguns espíritos mais argutos, não obsta, evidentemente, a que todos nos regozijemos pelo nascimento do Guilherme. Isso está fora de questão.
Viva o Guilherme!
E abaixo os traidores, os torcionários, os mentirosos, os vendidos que pretendem arrancar-lhe a Língua.