Sem poder pagar aluguel, brasileiras moram em barracas em Portugal
Ganham salário mínimo, mas vivem em área de ricaços. Poupam para sair de uma situação que tem sido comum em Lisboa, cidade mais cara da Europa para alugar um imóvel
Por Gian Amato
“O Globo” (Brasil) – “Portugal Giro”, 20/09/2023“Comprei logo uma de dois quartos, porque eu gosto de conforto”. É assim que Márcia Araújo, de Nova Iguaçu, começa a falar com o Portugal Giro sobre a barraca onde vive acampada em Carcavelos, região praiana de Lisboa.
Ela e a amiga Andréia Machado trabalham fazendo limpeza de apartamentos e entregando marmitas. Conseguem ganhar pouco mais de um salário mínimo € 760 (R$ 3,9 mil).
Há dois meses, no auge da inflação, desistiram de procurar um imóvel digno e individual, que pudessem pagar, e vivem de graça acampadas na Quinta dos Ingleses, endereço nobre e alvo de disputa.
São vizinhas de ricaços, que deixam os filhos para estudar ali ao lado, na Julian’sSchool, apontada como a escola privada mais cara de Portugal.
O terreno da Quinta dos Ingleses, pulmão verde da região, tem um projeto de urbanização aprovado há anos e que prevê a construção de 850 apartamentos e lojas.
Há 20 anos que a população local protesta. O empreendimento travou diante da possibilidade de destruição de 52 hectares de área verde em frente à orla.
Os campistas da quinta são elas, um casal formado por brasileira e português e, segundo as duas, outros 30 brasileiros. A maioria sem dinheiro para viver na cidade com aluguel mais caro da Europa. O dono do terreno, garantem, não incomoda.
— Além da gente, tem brasileiro acampado ou vivendo em trailer. Conheço brasileiro que vive aqui há 11 meses, outros há dois anos — contou Machado, em Portugal desde março e que afirma ter visto CPLP.
As barracas das duas são apenas a parte visível de uma saga. Chegaram como turistas e conseguiram trabalho. Difícil era viver aglomerada e pagar caro por uma cama.
— Dividia um quarto com quatro pessoas por € 230 (R$ 1,1 mil), mas quiseram aumentar para € 280 (R$ 1,4 mil). Para mim, não é vantagem pagar isso. E sem privacidade, com câmeras no corredor. Além de banheiro e cozinha comunitários — disse Álvaro.
Ela conta que chegou a viver por 11 dias em um quarto com seis pessoas, inclusive homens. Abandonou a ideia de tentar alugar um imóvel maior e individual, onde possa receber amigos. Mas só por enquanto, enquanto junta dinheiro morando de graça.
— Vou tentar juntar dinheiro porque quero alugar uma quitinete. E também não desisti de estudar gastronomia, mas não sabia que as faculdades eram tão caras — contou Álvaro, que diz ter feito manifestação de interesse via contrato de trabalho para residir em Portugal.
- A volta às aulas e ao drama do aluguel: Veja quanto custa um quarto em Portugal
Machado vive em Portugal há um ano, mas passou a acampar no segundo semestre deste ano. Foi ela que convidou Álvaro e convenceu a amiga que dava para juntar dinheiro.
— Eu pagava € 400 (R$ 2 mil) por um quarto em Cascais. Mais da metade do salário mínimo. Vi uma quitinete por € 600 (R$ 3,1 mil). Mas o dono queria dois meses antecipados e caução. Dava € 1,8 mil (R$ 9,3 mil) no total e à vista. Impossível pagar (…) Fora da nossa realidade — disse Machado.
Agora, Machado quer trocar a barraca por um trailer. Diz ela que consegue comprar um por menos dinheiro do que gastaria em um imóvel:
— E será meu para sempre, ao contrário do imóvel alugado.
Machado saiu de São Paulo para trabalhar como marceneira, sua profissão há 25 anos. Mas afirma ter sido enganada por um empresário, que nem pagou o mês de trabalho:
— Aqui em Portugal, mulher na marcenaria não existe, porque os homens fecham a porta mesmo. Ele disse que teria quarto para eu ficar. Mas depois de um tempo, tive que ir para uma pousada por cinco dias ao custo de € 600 (R$ 3,1 mil).
Ambas afirmam que recebem ajuda dos clientes portugueses. Por exemplo: lavam roupa e tomam banho nas casas deles. Quando não dá, o banheiro público da praia é a saída.
[Transcrição integral, mantendo a cacografia brasileira do original brasileiro. Destaques e “links” (a verde) meus.]
Ocupas na Quinta dos Ingleses
Alberto Magalhães
“Diana FM”, 22.09.23Situada entre a praia de Carcavelos e a linha férrea Cascais-Lisboa, a Quinta dos Ingleses faz parte das minhas recordações de juventude. Além das instalações da Marconi, enormes edifícios junto à praia, a quinta albergava um enorme pinhal e o colégio St. Julien, que emprestava o seu campo de futebol para os jogos de pais e filhos, do meu bairro na Parede, jogos que terminavam em grandes almoçaradas num dos restaurantes da praia. Chegou o 25 de Abril e, em pleno PREC (processo revolucionário em curso), os edifícios da Marconi foram ocupados por famílias carenciadas, que mudavam assim das suas barracas para instalações que, embora degradadas, lhes davam melhor abrigo e conforto.
Quase 50 anos depois, muita coisa mudou. A Universidade Nova instalou a ocidente, junto à marginal, a sua Escola de Negócios e Economia, mas em inglês claro, e parece haver planos para, substituindo o pinhal centenário onde tantas vezes passeei, construir uma mega-urbanização, que reduzirá de 52 para oito hectares o espaço verde junto à praia de Carcavelos. Mudança radical e que custa a aceitar. Mas pior, por ser sinal aziago do que se passa no país, cinco décadas depois da revolucionária ocupação, a Quinta dos Ingleses volta a acolher gente sem tecto, agora acampados em tendas e roulottes.
Ontem, o pacote “Mais Habitação” foi aprovado pela maioria socialista no Parlamento e o ministro das Finanças anunciou umas medidas que, aliviando as contas de quem tem empréstimos imobiliários a pagar, serão, segundo o Presidente da República, paliativas; e, aparentemente, o programa “Mais Habitação” poderá trazer, como efeito perverso, ainda menos habitação.
[Transcrição integral. Destaques meus. Acrescentei logótipo de St. Julian´s School.]
Fala Portugal
«Crise na habitação atira famílias para tendas»
«A crise na habitação está atirar cada vez mais pessoas para as ruas. O Parque dos Ingleses, em Carcavelos, tem recebido novos moradores todos os dias, que se instalam com tendas ou caravanas.»