Do Brasil, duas coisas de jeito

Pois. “Ler dá trabalho”, como disse em tempos uma aluna do 12.º Ano — o que aliás escrevi no quadro, com um letreiro por cima: “não apagar!”, e que ali ficou até ao fim do ano lectivo –, mas ainda assim, que diabo, este Apartado 53 cumpre (também) a função de repositório de textos (e vídeos e gravações e imagens e documentos) de tudo aquilo que se relaciona com o #AO90. Portanto, sem trocadilhar excessivamente, “repositemos” mais estes dois artigos, até porque dá-se o caso de provirem ambos do Brasil, o que não deixa de ser algo surpreendente.

Acresce ainda, vindo somar-se à surpresa da proveniência, a raridade do tema que, embora abordado de forma diferenciada num caso e no outro, pelo menos tocam os dois em áreas não demasiadamente herméticas para o comum dos mortais: neurolinguística, fonética (ortoépia brasileira, prosódia brasileira) e até uns laivos de etimologia, sociolinguística e estrangeirismos.

Muito ao contrário do que sucede em Portugal, quanto a este tipo de matérias, já que por aqui a tendência dos linguistas em geral é encapsularem-se a si mesmos numa redoma de soberba academicista à qual apenas meia dúzia de titulares, todos eles confrades, têm acesso — talvez por modéstia, convenhamos, coisa à qual são, caracteristicamente, muito dados.

Por conseguinte, ignorando tais e tão fantásticos arremedos de genialidade encadernada, vejamos então o que se diz nas revistas brasileiras “Fórum” e “Inova Social” e que, não por mero acaso, tem tudo a ver com a língua “adotada” por Cavaco, Sócrates, Costa & Cia.

É curioso que sejam os próprios brasileiros a dizer com toda a clareza aquilo que na “terrinha” quase ninguém se atreve a sequer balbuciar. Chegaria até a ser hilariante — caso a terraplanagem da língua universau brasileira não fosse uma hecatombe cultural sem precedentes — a forma como ambos os artigos objectivamente aniquilam as “razões” usadas por alguns tugas para “justificar” a destruição da Língua Portuguesa.

Implicâncias ranhetas?

Mouzar Benedito

revista “Fórum” (Brasil), 13.11.23

O mundo está cheio de coisas ruins acontecendo. Pensei em – sem perder a consciência nem a indignação – aliviar um pouco os pensamentos, escrevendo umas coisas leves. E o que saiu? Um monte de coisinhas pequenas, mas nem tão refrescantes assim. Aí vão.

Trabalhar de casa! Ô, expressão que me dói no ouvido. Esse “de casa” é coisa de gringo, imitada pelo que antigamente chamavam de macacobrás, um pessoal que em vez de falar como os brasileiros sempre falaram decide imitar a fala gringa. O termo macacobrás não é mais usado, mas a conduta macacobrás está cada vez mais forte. Vão substituindo tudo quanto é palavra da língua portuguesa por uma traduzida do inglês e exigem que seja assim. Mas voltemos ao início… Sempre falamos aqui “trabalhar em casa”. Veio a Covid, uma maldição, e muita gente teve que trabalhar “em casa”, mas pegou outra maldição, a expressão “trabalhar de casa”.

Mim ou eu? Ouço cada vez mais até gente estudada falando “pra mim fazer”, em vez de “pra eu fazer”. Também dói no ouvido. Mas tem outra situação em que “mim” é considerada por linguistas palavra certa, ao contrário de “eu”. “Entre mim e ele”… Falar ou escrever “entre eu e ele” é errado, dizem os donos do idioma. Pra evitar isso, preferi sempre dizer “Entre ele e eu”, mas li de um especialista que isso também é errado, tem que ser “entre ele e mim”. Um horror.

Agora uma coisa importada, que acho que não é da gringolândia, mas de países de língua espanhola da América Latina. Não tenho certeza, mas é uma palavra que comecei a ouvir de ex-exilados que voltavam quando a ditadura acabou. Não usavam a palavra “líder”, achando que isso era dar poderes a alguém, um líder sindical, por exemplo. Queriam abrandar a força do líder e falavam “liderança”. Um sinal de “modéstia”. Assim: “Fulano é uma liderança metalúrgica”. Ora! Liderança é função do líder, capacidade de liderar. Líder é líder, gostemos dele ou não. Liderança é o que ele exerce.

Na mesma linha, tem umas coisas que eu acho ridículas. “O Palácio do Planalto emitiu nota…”. Palácio escreve, fala? Quem mora no palácio, seja do Planalto, dos Bandeirantes, do Catete ou cacete a quatro é que fala ou escreve, emite notas. Jornalistas são especialistas em falar essas besteiras, tanto do palácio que escreve ou fala quando da liderança sem líder. Aliás, colunistas também dão uma de modestos e não dizem que é deles alguma previsão ocorrida, dizem “a coluna” previu. E deputados? Muitos também são assim: eles não propõem nem falam nada, é “o mandato” é que propõe ou fala.

Já que falei em palácio falante, mas prefiro dar o nome aos bois, revelar que é seu ocupante que fala, escreve, aprova leis, decide… uma coisa que nunca vou “perdoar” o Lula é por ter assinado o (des)acordo ortográfico que acabou com o trema e uns outros acentos. Uma coisa que só veio para atrapalhar, e na minha cabeça ficou a imagem que aquilo serviu só para dar lucro a certas editoras poderosas. Agora quase não se usa mais dicionário impresso, mas na época era usado direto. E nas escolas, por exemplo, não podiam manter dicionários com a ortografia antiga. Quantos milhões foram gastos para substituir todos eles? Os burocratas da língua, para justificar o acordo maldito, diziam que era para unificar a língua portuguesa em todos os países lusófonos, mas os demais países não embarcaram nessa, ficou uma coisa ridícula. E diziam também que o trema só existia em português, então era uma coisa sem sentido (a macacobrás sofisticada, letrada…). Mas é pura mentira. Veja em francês: tem trema em cima do i, para que ele seja pronunciado como i em português. Exemplos: Arte naïf, Anaïs Nin. Sem trema, seriam pronunciados “néf” e “Ané”. E em alemão tem trema em cima do o, por exemplo: Köller. Muitas outras línguas têm disso e, se fosse pra valer isso não ter sentido um acento porque não existe em outras línguas, pelo que sei só em espanhol tem ñ – n com til. E vá falar pros espanhóis que eles têm que parar com isso, porque nas outras línguas não tem! – Então, acho imperdoável o fato do Lula ter aprovado essa trolha, e o governo da Dilma ter referendado. Por isso, por mais que aprove o governo Lula em outras questões, nessa questão vou continuar xingando os dois (Lula e Dilma). Fora o trema, lindíssimo e necessário, tem a retirada do acento agudo de muitas palavras em que ele é necessário também. Eu que de vez em quando escrevo livros com diálogos caipiras, não poderia também usar acento nas palavras véio e véia, por exemplo. Mas se escrevo veio, pode ser de ouro, se escrevo veia pode o troço por onde passa o sangue. Vejam um poeminha besta que escrevi só para falar mal disso: “O véio achou um veio / E com esse ouro custeia / O que a véiainjeta na veia”.

Fora esses exemplos de coisas que acho imbecis (uma pequena mostra, são muitas), tem os exageros do politicamente correto, que grande parte da esquerda assume e que só ajuda a nos derrotar. Não que não sejam importantes, mas vão se tornando exclusividades, em prejuízo de outras coisas importantes. Ao privilegiar causas identitárias, deixando em segundo, terceiro ou último plano coisas como questões de classe social, parece que pensam que só essas causas identitárias interessam. E haja exagero!

(…)

[Transcrição parcial. Inseri “links” (a verde) com citações de “posts”.]

O dicionário mental: A biblioteca invisível e fascinante da mente humana

Inova Social” (Brasil), 08.11.23

O conhecimento linguístico que carregamos é um dos traços mais fascinantes da nossa individualidade. No mundo contemporâneo, onde os dicionários físicos estão se tornando relíquias, cada um de nós possui um dicionário mental, repleto de palavras que foram acumuladas e moldadas por experiências pessoais.

Nosso dicionário mental não é apenas uma coleção de palavras, mas um compêndio das suas letras, sons e significados, assim como informações gramaticais e sinônimos. É uma ferramenta dinâmica, que nos permite formar frases e se comunicar eficientemente. A singularidade deste dicionário está no fato de ser profundamente personalizado, refletindo os percursos educacionais, profissionais e culturais de cada indivíduo.

A amplitude do vocabulário humano é surpreendente e varia amplamente entre indivíduos e culturas. Enquanto o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa lista impressionantes 370 mil palavras, a utilização diária dos brasileiros é muito mais modesta, com a média variando de 10 mil a 15 mil palavras. Em contraste, falantes nativos da língua inglesa utilizam entre 20 mil e 30 mil palavras em suas comunicações cotidianas.

A organização do dicionário mental é objeto de amplo debate acadêmico. Algumas teorias, como a da “célula da avó”, foram descartadas pela comunidade científica. Hoje se entende que o conhecimento das palavras não está concentrado em um único neurônio, mas sim distribuído por uma vasta rede de neurônios que trabalham em conjunto. Por exemplo, o lobo temporal esquerdo do cérebro é uma região crucial para o processamento da linguagem e a recuperação de palavras.

O acesso ao dicionário mental é incrivelmente rápido. Estudos mostram que o cérebro pode escolher uma palavra em apenas 200 milissegundos após a visualização de uma imagem. Este processo dinâmico é o que possibilita conversas fluídas e espontâneas.

Embora nosso dicionário mental seja uma maravilha de rapidez e eficiência, ele não é infalível, como demonstra o frustrante fenômeno da “palavra na ponta da língua”. Esse momento de hesitação revela as complexidades da recuperação lexical, onde, ocasionalmente, a sincronia entre a busca e a seleção de palavras fica descompassada. Este não é simplesmente um sinal de esquecimento ou declínio cognitivo, mas um reflexo da rica rede de conexões que cada palavra evoca em nossa mente. Até mesmo esses lapsos momentâneos são uma janela para a intrincada arquitetura da nossa linguagem e servem como lembrete da capacidade notável e da adaptabilidade do cérebro humano.

Nosso dicionário mental não é apenas um repositório de palavras, mas um espelho dinâmico da nossa capacidade de pensar, sentir e comunicar – uma essência inerente à nossa individualidade. Então, ao utilizar as palavras em sua próxima conversa, reflita sobre a escolha delas e sempre se lembre de que as palavras que você usa e o seu dicionário mental contribuem para a sua singularidade.

Para uma exploração visual e interativa do assunto, assista a seguir ao vídeo “The Brain Dictionary” produzido pela revista científica Nature. Este vídeo nos leva numa jornada pelo cérebro, ilustrando de forma dinâmica as áreas cerebrais envolvidas no processamento de diferentes palavras. O vídeo destaca uma pesquisa que mapeou como a linguagem é distribuída pelo córtex, abrangendo ambos os hemisférios, e demonstra grupos de palavras agrupadas por semelhança de significado.

O modelo interativo apresentado é uma janela para a organização complexa dos vastos dicionários em nossas mentes. Descubra por si mesmo explorando o modelo cerebral e leia o artigo completo para aprofundar seu entendimento sobre este tema fascinante.

[Transcrição integral, incluindo “links” (a azul). Inseri outros “links” (a verde).]

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