Por alguma razão o título dos dois primeiros posts (1, 2) sobre este assunto foi “PMF”. Era previsível, se o assunto não fosse entretanto abafado, que a coisa iria provocar celeuma. Como aliás agora se vai vendo e como, caso o mistério continue a descoberto, certamente muito mais se verá ainda.
Nesta actualização da matéria, por assim dizer, começamos por uma gravação da jornalista Sandra Felgueiras — cuja peça emitida pela TVI espoletou a polémica da possível interferência presidencial no caso de utentes brasileiros do SNS — em que acrescenta agora novos dados, alguns dos quais bastante estranhos. Por exemplo, que:
- não foram duas, foram quatro as cadeiras (duas das quais eléctricas) atribuídas
- os pais das crianças têm bastantes posses no Brasil
- o processo de naturalização das gémeas foi completado em tempo record
- as cadeiras eléctricas daquele tipo nunca foram atribuídas a crianças portuguesas
- a mãe das gémeas disse, numa entrevista, que recorreu a uma cunha através da nora do PR português
- a consulta foi marcada contra o parecer dos médicos do Hospital de Santa Maria
- as crianças regressaram ao Brasil e nunca mais vieram a quaisquer consultas de seguimento
- as cadeiras eléctricas foram enviadas (pelo pai das crianças) de barco para o Brasil
A seguir a este interessantíssimo “briefing” jornalístico pode ler um artigo da revista “Sábado” em que o “presidente dos afectos”, como o próprio aprecia intitular-se, ameaça — literalmente, claramente — processar quem porventura ousar pôr em dúvida, ainda que apenas como opinião ou alvitre, qualquer procedimento seu em toda esta tramóia. O que diz Marcelo é isto: “vendo a reportagem, ninguém diz que“. E então.. pronto; como “ninguém diz que”, na reportagem, lógico será concluir que isto é o contrário de alguém ter dito, na reportagem, que.
Ora, ameaça velada torna-se ainda mais séria pela natureza do cargo de quem a profere: poderá um Chefe de Estado mover uma acção judicial de algum tipo, cível ou até criminal, no caso de ofensa, calúnia e difamação? Poderá o Presidente da República, o “mais alto magistrado da nação”, despojar-se da dignidade (e virtual intocabilidade) do cargo que exerce e mover uma acção judicial, enquanto simples cidadão, contra seja quem for? Iria ele comparecer numa audiência, em pleno tribunal, assumindo o papel de simples queixoso? Com ou sem escolta pessoal, deslocando-se na viatura presidencial ou indo a pé, pagando a um advogado ou entregando o caso ao gabinete jurídico da sua Casa Civil (ou militar)?
Questões meramente retóricas, na verdade, já que a resposta comum a todas elas — de tão escarrapachadamente evidente — resulta em indício seguro do que, sem bravata, está implícito na sentença antecipada: “Se aparecer alguém [a acusar de favorecimento], vou a tribunal comparar a minha verdade com a da outra pessoa“.
Apesar disso, e do que adiante virá, um artigo do “Diário de Notícias” completa este “update” da situação servindo como contrastante ou contraponto. Apesar de envolver algumas trapalhadas acessórias, o conteúdo da peça mantém o foco naquilo que de facto está em causa: se não houve “cunhas” ou “empenhos”, se ninguém interferiu, então como se compreende que no SNS português haja tudo, e já, e do melhor, para uns, e que não haja nada, e só no dia de S. Nunca à tarde, e só se for baratinho, para outros?
Finjamos esquecer os custos astronómicos do Zolgensma, as cadeiras topo-de-gama, os 14 dias para obter o cartãozinho, as facilidades prontas, as mordomias avulsas. Finjamos também esquecer a orgânica do Estado, do qual o SNS faz parte, os pressupostos do regime, do qual a Constituição deveria ser a estrutura, e até as normas de deontologia médica que vigoram há 2500 anos.
Podemos realmente fingir que tudo isso está esquecido, mas ninguém pode fingir que não está a perceber coisa alguma.
Constituição da República Portuguesa
Parte I – Direitos e deveres fundamentais
Título I – Princípios gerais
Artigo 13.º – (Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Terceira República a ruir aos poucos … pic.twitter.com/BLzJKB8T7K
— António Pinheiro ✠ (@pinheiroantonio) November 28, 2023
Marcelo nega cunha e ameaça processar no caso das gémeas brasileiras operadas no Santa Maria
“Vendo a reportagem, ninguém diz que eu falei ou que falaram comigo”, afirmou o chefe de Estado.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, garantiu, este sábado, não ter interferido na decisão do caso das gémeas brasileiras operadas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e ameaça partir para tribunal caso apareça alguém que diga o contrário.
“Se aparecer alguém [a acusar de favorecimento], vou a tribunal comparar a minha verdade com a da outra pessoa“, afirmou o chefe de Estado.
Em declarações aos jornalistas, o Presidente da República não só negou a “cunha” às duas gémeas como sublinhou o facto de não aparecer ninguém na reportagem emitida, esta sexta-feira, pela TVI, que afirme ter sido contactada pelo próprio.
“Eu não fiz isso. Se tivesse feito tinha-o dito. Vendo a reportagem, ninguém diz que eu falei ou que falaram comigo”, frisou.
Inspecção-Geral em Saúde abre inspecção ao caso das gémeas
[Transcrição integral cacografia brasileira corrigida automaticamente.
“Links” e destaques meus.]
Hospital de Coimbra recusa medicamento a duas crianças com Hemofilia A grave
O Infarmed autorizou o uso de um fármaco inovador nos hospitais em Fevereiro deste ano. Uma especialista em doenças raras, do CHUC, prescreveu-o a dois doentes, de 13 e 14 anos, mas o conselho de administração recusou, justificando a decisão com base num protocolo aprovado a posteriori, que define que só médicos do centro de referência o podem fazer. A médica já não faz parte do centro. Os familiares das crianças sentem-se “discriminados”. O advogado da médica diz que “é o assédio levado ao extremo”. O hospital não respondeu ao DN.
“Diário de Notícias”, 02 Dezembro 2023
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Andreia diz ser uma optimista em relação à doença do filho, mas custa sentir que ele está a ser “discriminado”.Aos oito meses do filho, Andreia e o marido, receberam um diagnóstico que os deixou “sem chão”: Hemofilia A grave – ou seja, segundo a literatura médica, deficiência congénita no processo de coagulação do sangue que se manifesta quase exclusivamente nos homens e se caracteriza pela ausência ou carência de um dos factores da coagulação, provocando hemorragias frequentes, especialmente a nível articular e muscular.
O diagnóstico foi feito no Hospital de Viseu, mas desde essa altura que têm caminhado para o Hospital Pediátrico de Coimbra, primeiro mais amiúde, agora de três em três meses para garantirem ao filho cuidados de qualidade. Mas as viagens constantes também têm a ver com o facto de Andreia e o marido quererem que o filho seja acompanhado pela especialista que o observou pela primeira vez em bebé e que continua a fazê-lo aos 13 anos. “É uma médica que faz parte da vida dele, em quem ele tem confiança”, explica ao DN.
D, vamos tratá-lo assim, para salvaguardar a sua identidade, habituou-se à doença, a ter de injectar na veia o Factor VIII de que necessita, duas, três ou quatro vezes por semana, mas também a ter de esconder os braços por baixo da roupa, para tapar as marcas deixadas pelas seringas.
O mesmo acontece com Mário, um nome fictício, pedido pelo irmão mais velho, com quem o DN falou, para o salvaguardar também. Mário tem 14 anos, o irmão 27, ambos padecem de Hemofilia A grave, e ambos foram e são acompanhados pela médica sobre quem aqui falamos, no mesmo hospital pediátrico, que hoje integra o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC). O mais velho já sentiu na pele a frustração de ter de abdicar de alguns sonhos pela doença, “por não me poder magoar ou fazer feridas, que depois não se conseguem tratar”, o mais novo começa agora a perceber o que isso é, quando anseia jogar futsal, vai aos treinos “e depois não vai aos jogos porque nunca se sabe o que pode acontecer”. Mário tem de injectar Factor VIII três vezes por semana, “já é ele que o faz, mas quando tem dificuldades em picar-se eu e a minha mãe cá estamos para ajudar”.
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