«Os falsos pressupostos do Acordo Ortográfico» [“Jornal de Angola”, 31.05.16]

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Os falsos pressupostos do Acordo Ortográfico

Filipe Zau |*
31 de Maio, 2016

Aparentemente, a questão do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), parecia depender apenas da ratificação dos Governos de Angola e Moçambique. Contudo, pouco se fala das resistências ao mesmo por parte das sociedades civis (mormente da brasileira e da portuguesa) que não deixam de ser significativas, como procurarei ilustrar de seguida. Ora vejamos:

–“A reforma ortográfica não enriquece em nada o idioma, mas alguém enriquecerá com ela” (João Ubaldo Ribeiro, Prémio Camões 2008);

“Os populistas que querem acabar com o analfabetismo simplificando a forma de escrever (como se isso tivesse que ver com aprender a ler e compreender o que foi lido) são de facto elitistas fascistóides que promovem a interdição da norma culta, ou seja, dos tesouros literários, a quem tem dificuldade para aprender a ler e entender.” (José Nêumanne Pinto, jornalista e escritor brasileiro);

– “Lamento muito que os portugueses passem a ser obrigados a escrever de forma abstrusa que o acordo [ortográfico] preconiza. Cientificamente, o acordo não se sustenta. Culturalmente, além de perverso, é irresponsável. Mas há vontade política de implementá-lo a qualquer custo. O acordo tampouco interessa à cultura brasileira. Excepto à indústria dos livros didácticos e de referência. Pobre país este no qual muitos políticos e alguns intelectuais acham que a ordem que vem de cima deve ser a ordem das coisas.” (Paulo Franchetti, escritor e crítico literário brasileiro);

– “Línguas são organismos vivos: nascem, crescem e morrem. Fazem-no independentemente de leis e decretos. E, até onde me lembro, jamais deleguei a nenhum parlamentar ou governante poderes para regular o meu quinhão do contrato social linguístico que vigora entre falantes de um idioma. Se dependesse de mim, o acordo [ortográfico] seria denunciado e todos poderíamos continuar a escrever sem a interferência de burocratas de pouco tino.” (Hélio Schwartsman, filósofo e colunista brasileiro);

–“Eu sou totalmente contra [o Acordo Ortográfico]. Radicamente contra. É a mesma coisa de matar a árvore: cortando a sua raiz, a árvore não existe mais.” (Ivan Lins, músico brasileiro);

“As nossas regras ortográficas iam bem, obrigado, cumprindo o seu papel sem ofender ninguém. De repente, sem aviso prévio, o GÁGÁ – Grupo Anónimo de Gramatiqueiros Anónimos – resolveu meter, com licença da palavra, o bedelho. E foi criada a reforma ortográfica. Continuarei a escrever segundo as normas anteriores a este golpe gramatiqueiro.” (Nei Leandro Castro, escritor brasileiro);

– “Quando sai uma reforma dessas, atiram-se para o lixo todos os livros didácticos, para fabricar e vender tudo de novo. É uma reforma supérflua e inútil, provavelmente interesseira. Nunca vi ninguém fazer isso com o inglês, por exemplo, que é cheio de consoantes e vogais que ninguém pronuncia e nem por isso é preciso fazer reformas ortográficas periódicas” (Walnice Nogueira Galvão, escritora e crítica literária brasileira);

– “Acho [o Acordo Ortográfico] absolutamente inútil e improdutivo. A língua é feita pelo povo. Não adianta o Governo querer discipliná-la.” (Carlos Heitor Cony, jornalista e escritor brasileiro);

–“Havia pequenas diferenças que não atrapalhavam a mínima, a mútua, interacção e comunicação de quem falava e escrevia português. Tentaram, uma vez mais, promover esta quase utopia da unificação gráfica de realidades fónicas distintas e deram com os burros n’água. Não só deram com os burros n’água, como pioraram uma coisa que tinha defeitos, mas que não era tão má assim. Isto foi mau para nós, brasileiros, e foi muito mau para os nossos irmãos portugueses.” (Sérgio de Carvalho Pachá, filólogo brasileiro);

– “A reforma ortográfica que se pretende é um pequeno passo (atrás) para os países lusófonos e um grande salto para quem vai lucrar com ela. O assunto me enche, a um só tempo, de indignação e preguiça. Por que estamos sempre a fazer tudo pelo avesso? Não precisamos de reforma nenhuma.” (Reinaldo Azevedo, jornalista brasileiro).

Contrariamente ao que, em alguns fóruns comunitários, nos procuram fazer crer, estas posições não são de pouca monta, nem são isentas de relevância nas sociedades brasileira e portuguesa. Para além dos já conhecidos intelectuais que se opõem ao Acordo e da rejeição da própria Sociedade Portuguesa de Autores, surge, ultimamente, da parte de Portugal, a posição da escritora e professora universitária Teolinda Gersão, que afirma ser um absurdo “defender o indefensável”. Segundo a mesma, um acordo “feito nas nossas costas, e com pareceres negativos de todos os linguistas excepto o do seu ‘pai’, Malaca Casteleiro”.

Através de um texto bastante crítico, Teolinda Gersão refere-se sobretudo aos pressupostos que estão na origem do Acordo e que, segundo ela, não se verificaram. Previa-se que o AO90: simplificasse a ortografia, o que o tornaria bem aceite; uniformizasse a língua portuguesa, em todos as suas variantes e em todos os continentes; tornasse a língua portuguesa mais acessível a estrangeiros, atraindo cada vez mais locutores; aproximasse os países, sobretudo Portugal e o Brasil, em que as variantes da língua portuguesa divergem mais; facilitasse os negócios.

Todavia, quase 30 anos se passaram e o Acordo “levantou e continua a levantar ondas de rejeição de protesto, a maioria da população recusa-o e continua ilegalmente imposto”, afirmou Teolinda Gersão, que concluiu da seguinte forma: “Então este ‘acordo’ falhado serve para quê? Já se discutiu tudo, só falta rasgá-lo.

Curiosamente, a posição angolana face ao AO90, que apresenta como lema: “Rectificar para ratificar”, não se encontra muito afastada do que aqui é apresentado: constatámos que uma maior promoção e difusão da língua portuguesa, nas agências da Nações Unidas, não depende do Acordo mas sim dos recursos a serem disponibilizados para as traduções;independentemente da língua ser a mesma, de país para país (e, num mesmo país, de região para região) as palavras são pronunciadas de forma diversa. Logo, é impossível unificar ortograficamente um idioma a partir das suas variantes linguísticas e ignorar por completo a origem comum das palavras; consequentemente, as muitas excepções à regra, por falta de referências estandardizadas, em vez de facilitarem a ortografia, acabam por dificultá-la ainda mais. Isto, para já não falar na falta de cooperação ortográfica entre a língua portuguesa, enquanto língua neo-latina, com as línguas bantu, crioulísticas e malaio-polinésias.

Apenas para dar resposta a alterações tão pouco significativas e a pressupostos teóricos que se revelaram inconsistentes, há um outro aspecto que se levanta: o custo de importação dessa mudança ortográfica em meios didácticos (e outros), para países que não possuem capacidade editorial suficiente para darem resposta ao volume de manuais indispensáveis a cada aluno e onde a educação primária de seis (ou mais classes do ensino secundário) é gratuita.

(*)Ph. D. em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

[Transcrição de «Os falsos pressupostos do Acordo Ortográfico», “Jornal de Angola”, 31.05.16. Adicionei “links”.]

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