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«Um contínuo elogio da loucura» [Maria do Carmo Vieira, 11.02.23]

Ortografia e “linguagem inclusiva”: um contínuo elogio da loucura

Senhor Presidente, certamente que verá e ouvirá os inúmeros erros decorrentes do uso do AO 90 e por isso lamento que silencie essa situação.

Maria do Carmo Vieira
“Público”, 11 de Fevereiro de 2023

No seu filme O Destino (1997), Youssef Chahine (1926-2008), realizador egípcio, mostra-nos, a dada altura, o filósofo do Al-Andaluz, Averróis, em discussão com o filho mais novo do Califa, Al-Mansur, recém-fanatizado em dogmas forjados e fundamentalistas (numa associação às seitas jihadistas). Transcrevo as suas palavras, bem elucidativas da leveza com que se encara o estudo e da arrogância com que se impõe uma pseudo-sabedoria: És tão vazio que repetes todos os disparates de que te enchem. Um poema e dois versos corânicos e julgas-te poeta e sábio? Que sabes de medicina e de astronomia, de matemática e de química e de filosofia? Sabes o suficiente do amor, da verdade, da justiça para afirmar-te capaz de espalhar a palavra de Deus? Responde!”

Certamente que a sua leitura nos remeterá simbolicamente para inúmeras situações que já presenciámos, desconhecendo contornos, ou vivenciámos directamente, conhecendo-as por dentro, resumindo-se a questão grosso modo à facilidade com que aprendizes de feiticeiro (ou popularmente “chicos-espertos”) se arrogam o direito de impor, e serei benévola no substantivo, o erro e divulgá-lo religiosamente como dogma, em nome de qualquer coisa que é sempre perspectivada como um bem. Uma atitude que não me coibirei de descrever como execrável. E não abdico do termo porquanto a acção das brilhantes mentes, habitualmente matizada pelo cinismo de um sorriso benevolente, nos impõe a ignorância, conseguindo, quantas vezes, apagar valores que considerávamos profundamente gravados em nós.

A pressão que se abate sobre quem tenta reagir é tão feroz que o facto de ter usado acima o termo, gramaticalmente correcto, de “substantivo”, poderá ser ajuizado, pelos criadores da TLEBS, que à revelia o transformaram em “nome”, como um acto de “resistência à mudança”, expressão acusatória para quem põe em causa “a nova ordem”. E até o facto natural de referir por Escola Primária o agora designado 1.º ciclo pode ser, para os fundamentalistas da “nova escola”, objecto de censura por ainda estarmos imbuídos, imagine-se, de um “saudosismo salazarista”.

E neste contínuo elogio da loucura que transparece nos actos e nas palavras de quem quer impor-se, arrastando os outros nas suas tortuosas experiências, vamos assistindo a uma miríade de situações que parecem não ter fim e que, ao invés de serem travadas ou avaliadas criticamente por quem de direito, recebem o apoio, de forma velada ou não, de quem abdicou de ser um advogado à altura. A este propósito penso no Presidente da República e no seu papel quer em relação ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) quer à dita “linguagem inclusiva”.

Comecemos pelo AO90, cujo processo inicial se deveu à vontade de um político, o presidente do Brasil, José Sarney, que, movido sabe-se lá por que razões, se lembrou de promover, em 1986, um encontro, no Rio de Janeiro, com todos os países de língua oficial portuguesa, e cujo texto resultante deste encontro – Acordo Ortográfico de 1986 – foi fortemente contestado pelos linguistas e nunca aprovado por eles nem pela sociedade civil.

É por demais conhecido o que se passou depois da paciente espera para uma melhor oportunidade de concretização, que surgiria em 1990, sendo a novidade justificada numa inimaginável e acientífica “Nota Explicativa ao Acordo Ortográfico de 1990”. Bastar-nos-á recordar o pretenso objectivo para este AO: a irrealizável “unidade ortográfica”, na diversidade das lusofonias. Amplamente divulgadas foram também as negociatas que adulteraram o conteúdo do Tratado Internacional, originando protocolos modificativos e ratificações que até agora não se fizeram. A discussão a seu tempo feita na Assembleia da República é também um exemplo flagrante de um elogio à loucura, ajustando-se igualmente ao teor das palavras de Averróis. Na verdade, a ignorância elevou-se e nem faltou a galhofa, entre os deputados presentes, até à insultuosa votação final. As actas podem ser consultadas.

Feita esta breve introdução, lembremos como o Presidente da República, no seu primeiro mandato, se mostrou interessado pelo tema do acordo ortográfico, polémica que ainda se mantém, parecendo, nessa altura, não tencionar abandonar essa preocupação. Nas palavras de Pedro Mexia, um dos seus assessores culturais, “havia a expectativa” de que o Presidente reabrisse o debate sobre a matéria, o que aliás lhe fora sugerido também pelo prestigiado Professor Artur Anselmo, então presidente da Academia das Ciências.

Anos mais tarde, o acordo, fruto de um qualquer truque de ilusionismo amador, tornou-se “um não-problema”. Em suma: a língua portuguesa deixou de ser um património cultural a defender, estando sujeita a jogadas políticas, e o seu ensino deteriorou-se no convívio com o caos determinado pela implementação do famigerado acordo, um caos que não só se verifica na ortografia, como também na pronúncia de “novas palavras” e nos equívocos que gera (retractar, agora sem “c” é disso um exemplo, entre tantos outros).

Lembrar-se-ão também da Associação de Professores de Português (APP) que solicitou recentemente ao ministro da Educação que os alunos brasileiros não fossem penalizados nos exames, devido às diferenças linguísticas que colidem com a norma portuguesa. Por estranho que pareça, não rebateram a absurda “unidade ortográfica” que justificou o AO e que a APP sempre apoiou. Afinal, a situação exposta pôs a nu o inegável: a impossibilidade de uma unidade ortográfica.

Senhor Presidente, certamente que verá e ouvirá os inúmeros erros decorrentes do uso do AO 90 e por isso lamento que silencie essa situação, que julgo não se adequar a um professor e a um Presidente que afiançou “ser de todos os Portugueses”. Lamento igualmente que os seus assessores culturais, alguns deles críticos do acordo, e amantes da palavra, não lhe tenham sugerido a imperiosa necessidade de um debate académico e científico sobre a matéria quando é por demais evidente a permanência da polémica, existindo livros que a analisaram em pormenor, nomeadamente os do professor A. E.[1], linguista da Universidade Nova. Os exemplos de erros são incontáveis e a sua ininterrupta proliferação vilipendia a Língua Portuguesa, mal falada e mal escrita, com a agravante de nem mesmo o que ficou registado no texto da Nota Explicativa se cumprir.

São inúmeros os professores que respondem a dúvidas dos alunos sobre o modo correcto de escrever algumas palavras, tal a confusão que reina. Um colega meu de Tomar, João Barroca, tem ao seu dispor centenas, senão milhares, de exemplos das confusões ortográficas no quotidiano e na comunicação social. Situação idêntica em instituições escolares, camarárias e outras (elevado número de Editoras, entre as quais a Fundação Francisco Manuel dos Santos, plataformas de streaming…) que deviam prezar pela correcção e a esquecem.

Lamenta-se igualmente a resignação de alguns intelectuais que traem, com o seu silêncio, a causa em que publicamente se movimentaram e empenharam, apresentando inclusive propostas, como aconteceu com o Professor António Feijó, da Faculdade de Letras de Lisboa, em relação a um referendo, sugestão com a qual não concordei, na altura, mas para a qual trabalhei arduamente, e em vão, com grande número de voluntários.

Não posso deixar de transcrever também as razões que assistiam ao então director e presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras (2013), agora presidente da administração da Fundação Gulbenkian, quando escreveu ao presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura, José Ribeiro e Castro, a propósito do AO: “[…] Arrogar-se o Estado legislar sobre intangíveis como a língua, que na realidade o excedem, seria uma extensão abusiva das suas funções. Numa altura em que, em Portugal, se procura definir com parcimónia quais as funções do Estado, a sua extensão a um domínio como a língua é uma forma de cesarismo indesejável. É este o meu primeiro argumento contra o Acordo. […] Finalmente, alterar o modo como escrevo para o modo como o Acordo impõe que escreva é uma forma de violência sobre o que de mais visceral pode ser a identidade pessoal. É nesta visceral violação subjectiva, que é a de todos os que, escrevendo de um modo, se vêem coagidos a mudá-lo, que reside o meu segundo, e último, argumento contra o Acordo. Se se entender que esta posição não é ‘prática’, considere-se a desoladora pobreza conceptual deste termo no debate público, que ignora versões nocionalmente mais ricas e densas do que é ‘prático’. Eminentemente ‘práticas’ são noções como a de ‘direitos individuais’, a de ‘personalidade’, de ‘solidariedade’, ou de um valor demasiado rarefeito na história moderna e contemporânea de Portugal, à sombra do qual termino, a ‘liberdade’.”

Também na Gulbenkian, encontramos estranhas convivências determinadas pelo AO: “Egito”, “egípcios” e “egiptólogos”, a propósito de Faraós superstars – designação tão em moda, a fazer lembrar Oeiras Valley!

Os erros mais crassos, e que não têm fim à vista, dizem sobretudo respeito a vocábulos cujos “c” e “p” continuam a ser ceifados a torto e a direito, mesmo quando lidos. “Contato” e “Fato” atingem o top, sendo o jornal Expresso o campeão, mas não falta também o “inteletual”, o “abruto”, a “convição”, a “batéria” e tantos outros que o Senhor Presidente certamente encontrará no seu dia-a-dia. Não o preocupa esta situação? Não o preocupam os alunos que diariamente são confrontados com erros? Não o preocupa que os professores, na sua maioria contrários ao acordo, sejam forçados a cumpri-lo sob pena de lhes ser instaurado um processo disciplinar?

Reparei igualmente que o Senhor Presidente parece ser sensível à linguagem inclusiva”, uma linguagem criada por quem faz tábua rasa da Gramática e da lógica da língua, pretendendo impor a sua verdade, tal dogma indiscutível. Devo confessar-lhe que a sua preocupação, recente no tempo, de se dirigir aos portugueses, referindo “Portugueses e Portuguesas” me causou estupefacção e creia que não me senti mais respeitada por isso.

Saberá que há quem acerrimamente defenda que a par de “camaradas”, se diga também “camarados” e certamente “camarades”, justificando-se a sequência com a dita inclusão. Assim sendo, surgiriam “crianças, crianços e criances” ou “colegas, colegos e colegues” e os exemplos seriam infinitos e a escrita um acto de demência, concordará. E o que fazer ainda no caso de “estudante”, de “presidente” ou de “personagem” ou como resolver o problema dos artigos definidos e indefinidos que se cingem a masculino e feminino? É o tipo de raciocínio chão, da leviandade que caracteriza toda a ignorância, da feroz mania de avaliar, de dissecar, de expor ostensivamente, de inovar por inovar.

Sem dúvida que a atitude miserabilista que tomou conta destas mentes alastrou a situações afins, determinando o clímax acontecido recentemente no Teatro de S. Luís. Uma insanidade, muito aplaudida, apesar de pôr em causa o Teatro, o acto de representar e a saída de cena. Um flagrante elogio da loucura, não concorda, Senhor Presidente?

Quero ainda acreditar que o AO tornará a ser um problema, na sua perspectiva, como aconteceu há uns anos, porque é intolerável o actual desrespeito pela Língua Portuguesa e pela sua ortografia. E porque ficou por satisfazer o pedido do Professor Artur Anselmo, cujo estudo aturado merece o respeito e a admiração de todos nós, porque não agora?

Por último, desejo felicitá-lo pelo seu abraço ao imigrante nepalês, cobardemente espancado, em Olhão, por quem segue os ditames da seita já conhecida. Também aqui será de acompanhar a situação do imigrante nepalês, que, no fundo, representa todos os que procuram trabalho em Portugal (e quanto lhes devemos!…) já que se multiplicam de norte a sul os lobos com pele de cordeiro. O seu abraço, senhor Presidente, não pode ser em vão. Tem de significar alguma coisa no futuro deste nepalês.

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Maria do Carmo Vieira,
publicado no jornal “Público” de 11 de Fevereiro de 2023. “Links” (a cor verde) e destaques meus.]
[1] Nome reduzido a iniciais a pedido do próprio.

[O diálogo mencionado no início do texto transcrito está neste extracto (dobrado em Francês), a partir dos 3m:45s.]

«A Polémica Ortográfica» [Maria do Carmo Vieira, FFMS]

A Polémica Ortográfica

A autora da FFMS Maria do Carmo Vieira critica o Acordo Ortográfico de 1990.

 

«Obedecer [em determinados momentos] significa que nada valho»
Henry Thoreau

«A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever uma ortografia que repugno […]»
Fernando Pessoa

As palavras de Fernando Pessoa, em epígrafe, têm sido inúmeras vezes invocadas por não-acordistas e nunca é de mais transcrevê-las para relembrar aos políticos, muitos dos quais sem curiosidade e interesse em informar-se sobre a matéria, que a Língua Portuguesa, «um fenómeno de cultura» e «um legado de séculos», não pode estar sujeita a jogadas, nem dependente de aventuras que a desvalorizam, numa leveza de atitude intolerável. Foi o que aconteceu com o processo envolvendo o Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), praticamente decalcado daquele que foi proposto em 1986, se bem que os seus autores teimem, contrariando os factos, em dizer o contrário.

Lembro que o acordo de 1986 foi uma iniciativa de José Sarney (então, Presidente da República do Brasil) muito mal acolhida em Portugal, pela ligeireza com que pretendeu varrer, entre outras situações, a acentuação – nomeadamente nas palavras esdrúxulas, o que deu azo à história hilariante de Miguel Esteves Cardoso sobre o «cágado» e no que se transformava o infeliz, respeitando-se a douta decisão. O ridículo do exemplo e o acentuar da polémica adiaram, por algum tempo, a pretensão, no intuito de acalmar as veementes reacções que, no fundo, persistiram.

Já em 1986, e, por coincidência, em sintonia com a pedagogia da facilidade e o discurso miserabilista que se ia anunciando gradualmente na Escola, os autores da iniciativa, apiedados pelas «pobres criancinhas» e pela sua aprendizagem da Língua Materna, haviam pensado na abolição dos acentos pelo facto «de os alunos nas escolas fugirem dos acentos como o diabo foge da cruz!» porque «acentos não é com eles», segundo palavras do professor Malaca Casteleiro [1]. Este virá, de novo, em favor das crianças, sugerir a «supressão de consoantes não articuladas» que, em sua opinião, se tornam «incompreensíveis para uma criança de 6-7 anos», exigindo-lhe «um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua» [2] Afiança ainda o mesmo professor, desconhecendo-se o estudo em que se terá baseado, ser «mais simples para uma criança aprender a escrever “Egito”, sem pôr o “p” porque não o articula, e “egípcios” com “p” porque o articula» [1]. No entanto, a nossa experiência mostra-nos que os alunos se surpreendem com o facto, tendo em conta a lógica existente nas famílias de palavras, e questionam precisamente os professores face a esse absurdo do AO 90.

No mesmo sentido da facilidade vêm as palavras do linguista brasileiro Evanildo Bechara, que coordenou as normas deste processo no Brasil: «Começamos a aprender a língua pelo ouvido, quando crianças. Depois aprendemos pelos olhos, porque lemos as palavras. […].  Ao abolir o trema, tiramos um peso dos ombros de quem escreve. A falta do trema, longe de ser um prejuízo, é um lucro. Deixamos de escrever o trema, mas podemos pronunciar as palavras da maneira como estamos acostumados a ouvi-las» [3]. Os dois professores esqueceram, o que é estranho, dado serem linguistas de profissão, que «A função de uma ortografia não é nem facilitar o ensino da escrita nem reflectir a oralidade; a ortografia serve para codificar e garantir a coesão da língua escrita normalizada de uma comunidade nacional.» [4]

(mais…)

AO90: «absurdas e disparatadas imposições» [Maria do Carmo Vieira, discurso na ACL]

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Published on May 31, 2016

Comunicação de Maria do Carmo Vieira sob o tema “O ensino da língua e da literatura”, que aconteceu na Academia das Ciências de Lisboa a 24 de Maio de 2016.

—-Colóquio “A língua portuguesa nos dias de hoje”—-
O colóquio “A língua portuguesa nos dias de hoje” decorreu nos dias 23, 24 e 25 de Maio, na Academia das Ciências de Lisboa, promovido pelo Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa.

Com esta iniciativa, pretendeu-se envolver todos os interessados e, sobretudo, investigadores, professores, formadores, estudantes, profissionais, que se dedicam a problemas relacionados com a língua portuguesa, numa reflexão conjunta sobre a língua portuguesa como idioma do futuro.

Contra.o.Acordo Ortográfico

«Época de apoucamento da língua» [MCV, “Público”, 08.06.23]

Lembrar Luís de Camões, “numa época de apoucamento da língua”

Regozijo-me com o facto de o Ministro da Educação ter evidenciado o caos que os alunos, e também os professores, sentem no ensino do Português. Preocupá-lo-á, tal situação?

Maria do Carmo Vieira

“Público”, 8 de Junho de 2023

 

Lá vem a “Velho do Restelo”, dirão alguns leitores. Por sinal velha e também do Restelo, desde longa data, para além de fiel leitora do poeta, criador da venerável figura.

A proximidade do 10 de Junho trouxe-me Luís de Camões, não podendo deixar de manifestar o orgulho que sempre tive pelo facto de o dia da nossa identidade estar intimamente ligado não a um herói guerreiro, mas a um poeta que esforçadamente salvou o seu Canto de um “naufrágio triste e miserando” (Canto X). Tendo escrito “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” (Canto VII), é a sua obra literária que sobressai pelo pendor poético e atitude crítica, pelo “engenho” e “honesto estudo” (sublinhe-se este honesto estudo tão em desuso hoje em dia) e pela nobre opção de escolher quem canta. Não surpreende, pois, que, honrando o valor humanista do “espírito crítico”, acentue que não cantará ‘Nenhum ambicioso, que quisesse/ Subir a grandes cargos,’ […] ‘/Só por poder com torpes exercícios/ Usar mais largamente de seus vícios;// Nenhum que use de seu poder bastante/Pera servir a seu desejo feio,//’ nem ‘Quem, com hábito honesto e grave, veio,/ Por contentar o Rei, no ofício novo,/ A despir e roubar o pobre povo!//’ […] ‘E não acha que é justo e bom respeito/ Que se pague o suor da servil gente;/’ ou ainda ‘quem taxe com mão rapace e escassa,/ Os trabalhos alheios que não passa.//’ (Canto VII).

Referir Luís de Camões implica forçosamente falar da Língua Portuguesa, com o mal-estar que ressalta de ser ostensivamente tão mal-amada por “gente surda e endurecida” que se pavoneia pelo Poder e outros lugares. Confirma-o o privilégio dado ao texto utilitário em detrimento do literário, de que é exemplo o estudo do poeta, lírico e épico. O Ministro da Educação devia saber que um aluno que saiba ler e interpretar textos literários não terá qualquer problema em ler e em interpretar textos pragmáticos. O contrário é que será impossível.

Não surpreende também que Luís de Camões fosse depreciativamente usado como argumento estapafúrdio por quem negociou e ajudou a implementar o Acordo Ortográfico (AO) à revelia de todos os pareceres solicitados, e nunca é demais referir este gesto impostor que teima em repetir-se. Apregoou-se: “A língua evolui. Já não se escreve ou fala como no tempo de Camões”. Tal desorientação só pode suscitar uma gargalhada. No mesmo sentido, parafraseio o que afirmou um político de referência, ao defender o AO e confundindo ortografia com léxico: dantes também não existia “bué” no vocabulário português e agora é comummente usado! Só faltou inventar que “bué” fora resultado de um decreto, o que efectivamente aconteceu com o AO.

Num folheto turístico francês, actual, sobre o “Arco do Triunfo” e “O Soldado Desconhecido”, traduzido, como se indica, em “Português” (a bandeira confirma-o), leio que Napoleão, na noite da batalha de Austerlitz, disse aos seus soldados: […] ‘Soldados, estou satisfeito com vocês’ […] ‘Eu vou levar vocês de volta à França; lá, vocês receberão as minhas mais sinceras solicitudes’ […]”. Surgem depois as guerras ‘napoleônicas’ e ainda a ‘cerimônia’ da chegada do Soldado ou o ‘planejamento’ final da praça. Alunos do 4.º ano, perante o exemplo, souberam dizer-me como deveria ficar: “satisfeito convosco”, “vou levar-vos”, “lá, receberão”, substituindo também os acentos circunflexos.

Aceito que o Brasil defenda a designação de “língua brasileira”. Que assim seja, mas libertem-nos do sufoco que é aceitar como “português” a tradução transcrita. Também à conta do AO, e pesquisando no Google, onde anteriormente aparecia a opção “português de Portugal”, temos agora a opção “pesquisar páginas em português” e daí o aparecimento de inúmeros resultados de busca terminados em com.br, antes dos sites portugueses, o que não é de admirar pelo facto de os brasileiros serem perto de 200 milhões, número que, numa óptica colonialista, serviu de argumento, descarado e absurdo, para a implementação do AO.

No livro de “Estudo do Meio” (4.º ano), a propósito de Actividades Económicas, a minha neta leu: “setor primário”, fechando a vogal inicial para logo de seguida dizer, gozando: “Setor? Então é um professor?”. Aproveitei para pôr o “c” que faltava, e que abre o som da vogal, explicando-lhe que é o correcto. Na verdade, o AO definiu a dupla grafia: setor para o Brasil, sector para Portugal, mas muitos, na habitual bajulação ou indiferença, teimam no “setor” e afins. Mas não confessou também o Primeiro-Ministro, perante o presidente Lula da Silva, e, implicando-nos, que “Temos pena de não falarmos com o vosso sotaque.” (sic)?

A demonstrar ainda quanto este AO veio confundir e equivocar, prejudicando o ensino do Português, eis como reagiu uma aluna do 1.º ciclo, perante uma actividade intitulada “Para para ler”: instintivamente colocou um acento agudo no verbo parar, pensando que a professora se enganara, vindo depois a saber que a professora o fizera porque era obrigada a cumprir o AO. Como esta professora, milhares de colegas.

Sabendo que o professor João Costa, na preparação da sua demagógica intervenção, na AR, se entreteve a contar o número de vezes que Joana Mortágua dissera “professores”, referindo apenas 1 vez “alunos”, regozijo-me com o facto de ter evidenciado o caos que os alunos, e também os professores, sentem no ensino do Português. Preocupá-lo-á a situação, senhor Ministro?

Lamentavelmente, nem Luís de Camões nem a Língua Portuguesa são privilegiados por quem de direito; no entanto, estão presentes em muitos discursos oficiais que se caracterizam pelo vazio e pela hipocrisia, com destaque para o 10 de Junho. E a terminar, um extracto de um texto de Vasco Graça Moura que em boa hora me foi enviado por uma colega e amiga, de Lagos: “(…) o que parece preocupante é o facto de cada vez menos haver em Portugal qualquer espécie de interesse por Camões e por aquilo que ele representa. O nome do autor de Os Lusíadas tende a ser apenas a marca distintiva de um feriado, ambíguo luxo nos tempos que correm, e pouco mais. As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a Camões a sua dimensão moderna. Mas estão à vista as consequências que, para a identidade, decorrem do actual estado de coisas: a língua materna está cada vez mais deteriorada (…). Nem sabemos pronunciá-la, nem sabemos escrevê-la ou falá-la com um mínimo de correcção. E nem vale a pena falar da situação catastrófica que virá a ser gerada pelo Acordo Ortográfico se este algum dia se aplicar (…). Vivemos numa época de apoucamento da língua, de empobrecimento do vocabulário, de aviltamento de todas as regras de gramática. (…) Vêmo-la subordinar-se servilmente ao facilitismo e à tecnologia, quando devia contribuir para uma estabilização dos seus paradigmas próprios, procurando equilíbrios permanentes com as tendências que são sinal dos tempos. (…) A língua de Camões está irreconhecível. Se ele voltasse ao mundo, decerto pensaria em rasgar a sua obra. Deixámos de ser dignos dela.” (In DN de 09.06.2010 – “A língua de Camões?”)

[Transcrição integral. Imagens de citações de Camões de: “Citador.pt“. Imagem de topo de “Rádio Renascença”; autoria: Mário Cruz/Lusa]]

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões

 

Cândido, Pangloss, Voltaire (e vice-versa)

Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011

Determina a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa no sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012 e, a partir de 1 de Janeiro de 2012, ao Governo e a todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo, bem como à publicação do Diário da República

O Acordo do Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, ambos de 29 de Julho, determinou uma nova forma de entrada em vigor do Acordo Ortográfico com o depósito do terceiro instrumento de ratificação. Assim, e nos termos do Aviso n.º 255/2010, de 13 de Setembro, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Setembro de 2010, o Acordo Ortográfico já se encontra em vigor na ordem jurídica interna desde 13 de Maio de 2009.

Pelo menos os maiores de 30 anos ainda devem recordar-se de Muhammad Saeed al-Sahhaf, o Ministro da Informação (ou seja, da Propaganda) de Saddam Hussein, garantindo firmemente que estava tudo em paz no Iraque, que não se passava nada no país e que nem havia nada de especial em Bagdad para ver, à excepção, talvez, dos minaretes e do palácio do Presidente. Enquanto aquele espantoso cromo falava, em directo, através das maiores cadeias televisivas do mundo, rebentavam mísseis por todo o lado, os disparos da artilharia americana eram claramente audíveis, os tanques de cavalaria cercavam já o dito palácio (Hussein mudou-se temporariamente para um colector de esgotos) e a própria infantaria dos “aliados” andava a bater todas as ruas — e a arrombar umas quantas portas — da capital iraquiana.

Salvas as devidas, enormes, gigantescas distâncias, aquelas imagens célebres fazem lembrar a atitude que vão adoptando algumas figurinhas da nossa praça dita “académica” (bem menor do que o número de peixeiras do mercado de Tikrit, aposto) que persistem na “garantia” de que também quanto à Língua Portuguesa “no pasa nada”; como no Iraque em 2003, também em Portugal de 2023 está tudo na mais santa paz, não há cá bombas nem blindados nem “acordos” leoninos, as nossas crianças — e a população em geral — não estão a ser sujeitos a lavagem cerebral nenhuma, o nosso património histórico intangível não está a ser metodicamente demolido, a nossa identidade enquanto povo, a nossa Cultura e a sua coluna vertebral, a Língua Portuguesa, não estão em pleno processo de extermínio nem nada. Estão lá agora, diz quem impinge peixe estragado e dizem os outros vendilhões. E tanto não se passa nada que até o AO90 não está em vigor, vejam lá!

Isto ele aplica-se ao caso a lapidar expressão de Pangloss porque, exceptuando apenas alguns mais “reaccionários” e “preconceituosos” e “xenófobos”, de resto tudo corre pelo melhor, a CPLB é uma maravilha, a língua univérsau uma ideia gêniau, a terrinha ainda há-de fazer parte de um império outra vez.

Quanto mais não seja para esses assim mais indefectíveis da “causa” imperialista, mas também para os “distraídos” e aqueles — a imensa maioria — que ou não querem saber de mais nada além de bola e tremoços ou não se atrevem a sequer soerguer uma sobrancelha, convirá portanto irem desde já arrumando seus trastes mentais e preparando o futuro: foram brasileiros (e alguns traidores portugueses) a impor o AO90, portanto agora serão igualmente brasileiros a mudar na língua brasileira — ou seja, ná tau língua univérsau — aquilo que lhes der na real gana e sempre que lhes apetecer.

Como esta jigajoga da “linguagem neutra” ou “inclusiva” ou lá como eles chamam àquilo. O que for doravante determinado pelo Brasil, por instituições brasileiras, pelo Governo brasileiro, passa automaticamente a valer em todos os estados, a começar pelo 28.º Estado. Eles dizem-no clara e expressamente, por exemplo no arrazoado seguidamente transcrito: «apenas a União pode alterar as regras da Língua Portuguesa».

Se foi assim com o AO90 e daí em diante, porque raio agora iria ser diferente?

Ordem do Cruzeiro do Sul

Editorial

Copo meio cheio e copo meio vazio

A decisão do STF, neste momento, não prejudica o debate sobre o tema, só define que apenas a União pode alterar as regras da Língua Portuguesa

Algumas notícias precisam ser lidas da forma como elas são, principalmente quando derivam de uma decisão judicial. Não se pode extrapolar o que diz a sentença para o mundo geral, para o dia a dia e nem se concluir que, se uma coisa não pode, a outra passa a ser liberada. É preciso se ater ao que foi escrito.

Um tema muito controverso na atualidade é o uso da linguagem neutra. O assunto gera debates acalorados nos mais diversos círculos da sociedade. Argumentos pró e contra surgem aos borbotões. E, no fundo, no fundo, quase sempre todos são justificáveis conforme o prisma que se olhe.

O assunto voltou com força à tona sexta sexta-feira (10), por conta de uma decisão tomada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. No julgamento em questão, o STF derrubou uma lei de Rondônia que proibia o uso da chamada linguagem neutra nas escolas do Estado.

A ação em discussão partiu de uma iniciativa apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee). A entidade contestou a lei de Rondônia, aprovada em 2021, que impedia a inclusão da linguagem neutra na grade curricular e no material didático de instituições de ensino locais, públicas ou privadas; e em editais de concursos públicos.

Os 11 ministros da Corte declararam que a lei estadual fere a Constituição uma vez que cabe à União legislar sobre normas de ensino.

Segundo o relator do caso, ministro Luiz Edson Fachin, uma “norma estadual que, a pretexto de proteger os estudantes, proíbe modalidade de uso da língua portuguesa viola a competência legislativa da União”. “Cabe à União estabelecer regras minimamente homogêneas em todo território nacional”, escreveu o relator.

O voto de Fachin foi acompanhado na íntegra pelos ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, LuizFux e Gilmar Mendes.

Os ministros Nunes Marques e André Mendonça concordaram com o relator em relação à inconstitucionalidade da lei de Rondônia, mas apresentaram ressalvas quanto à tese a ser fixada pela Corte. No caso de André Mendonça, por exemplo, o ministro propôs uma redação mais genérica à sentença: “Norma estadual ou municipal que disponha sobre a língua portuguesa viola a competência legislativa da União”.

Essa decisão proferida pelos ministros do STF, não libera a implementação da linguagem neutra nas escolas. Só define que quem pode estabelecer mudanças no tema é a União. Se por um lado o STF derrubou a lei que proibia o uso da linguagem neutra, por outro também deixou claro que está proibido liberar o uso da linguagem neutra, sem que o MEC crie todo um projeto regulamentando o tema. Isso impede que Estados e municípios governados por quem defende a linguagem neutra se aventure a açodadamente introduzi-la no âmbito escolar.

Alterar a Língua Portuguesa não é uma tarefa fácil. Vai ser necessário muito estudo, avaliações de especialistas no Brasil e em outros países que também utilizam o português e o tema terá que ser debatido e aprovado pelo Congresso Nacional.

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