Daqui do Apdeites, muito sinceramente o dizemos, apelamos a Sua Alteza para que reconsidere, isto é, olhe, ó nosso Príncipe, caramba, vossa senhoria bem vê, nós até lhe pespegámos aqui o comunicadozinho do ano passado, hem, veja lá isso, companheiro, pronto, se tiver de ser, paciência, mas veja se consegue dar um jeito, evitar aqui o estaminé, não custa nada, é só desviar a mira um bocadinho, enfim, faça Vossa Alteza o favor de não nos mandar com “anti-matéria” para cima, porque isto aqui é tudo pessoal bacano, defensores indefectíveis da causa do Principado da Pontinha, todos amicíssimos de D. Renato I e das suas justíssimas pretensões. [Apdeites – “A III Guerra Mundial é já a seguir”, 01/08/2008] |
O que se há-de fazer? É uma fatalidade, um fado. O que mais há por aí é portugueses com “síndrome do colonizador”. A paranóia — ou obsessão ou monomania — está de tal forma arreigada no espírito do chamado “português médio” que dir-se-ia estarmos perante um caso evidente, iminente, perigosamente patológico; para o qual, aliás, dado o enorme número de afectados, não seria possível arranjar em tempo útil um contingente de psiquiatras e outros especialistas em afecções na caixa dos martelos, como carinhosamente diz o povo; ainda que se importassem uns quantos contentores cheios desses profissionais, nem pondo toda a indústria nacional a trabalhar 24 sobre 24 horas no fabrico de sofás seria possível deitar tantos pacientes a debitar suas lamúrias, expiando a “culpa” de Portugal por ter-se atrevido a fazer alguma coisa decente — o que para os padrões actuais da tugaria é absolutamente inadmissível, um pecado horrível.
Claro que para este quadro clínico generalizado em muito contribuem outros fenómenos, igualmente ou ainda mais destrambelhados, como, por exemplo, a viciosa fixação no “gigantismo” (em espécie e em contado) do Brasil que vão revelando amiúde o governador-geral do 28.º Estado e o respectivo governo provincial. Acresce ainda a bovina admiração geral por tudo aquilo que sequer cheire a brasileiro, do futebol às telenovelas, passando pelos rodízios e pela extrema sageza intelectual de um Lula ou de um (ou dois) Tiririca.
É, portanto, neste caldo infecto que estão mergulhados os portugueses em geral e as pessoas decentes em particular, ainda para mais tendo de levar com as constantes queixinhas dos emigrantes brasileiros em Portugal, estudantes ou não, diplomados ou não, completamente analfabetos ou nem tanto.
Entalados entre a lusofobia de uns e a bajulação de outros, assistindo — por regra, mudos e quedos — à terraplanagem cultural, ao esmagamento da Língua nacional, a neo-colonização invertida, ao neo-imperialismo que já ninguém se rala a disfarçar, os portugueses vergastam-se metodicamente.
O texto agora transcrito é uma pequena amostra de todas essas confluências. O tom é tímido, hesitante, como o de um pobre de pedir que ousa aproximar-se de um “senhor”, o chapéu na mão, a espinha curvada, balbuciando desculpas pelos supostos “defeitos” de que o dito “senhor” o acusa… ou, se não acusa, vai acusar com certeza.
Quem sabe se um dia não dará afinal D. Renato I algum jeito. Talvez, depois de resolvidas as minudências com a GNR em que está metido, sirva a sua figura (imponente, como se vê na foto) para recordar o que foi em tempos uma coisa que se chamava Portugal. Quanto mais não seja, as gaivotas que habitam no Principado da Pontinha ficarão cientes desse passado glorioso.
Descobrir os Descobrimentos
A luso-americana Deana Barroqueiro, uma romancista que sabe muito sobre história dos Descobrimentos, deu uma entrevista ao Diário de Notícias que teve um título forte, mas perfeitamente sustentado pelas sucessivas respostas: “Os bem-pensantes querem reduzir os Descobrimentos à escravatura, fazendo tábua rasa de tudo o resto”. Foi um sucesso de leitura na edição online do jornal, o que confirma o enorme interesse que a História de Portugal continua a suscitar. Aliás, é esse interesse que também ajuda a explicar a carreira de sucesso da autora, que agora acaba de republicar um livro sobre Bartolomeu Dias, o navegador que em 1488 cruzou o extremo-sul de África, ao qual chamou Cabo das Tormentas, mas depois D. João II preferiu baptizar como Cabo da Boa Esperança.
Se o título da entrevista se referia à polémica que procura tornar os Descobrimentos uma espécie de sinónimo de escravatura, parte das reacções vieram criar outra polémica, desmentindo mesmo que tenha havido Descobrimentos, pois a maioria das terras estavam já habitadas. Ficaria assim o conceito de Descobrimentos, argumentam alguns, aplicado a meia dúzia de arquipélagos, como o dos Açores ou o da Madeira, desabitados aquando da chegada das primeiras caravelas.
Com a devida vénia, cito aqui uma das respostas de Deana Barroqueiro como uma boa definição do que os Descobrimentos foram, de facto : “Os Descobrimentos Portugueses – e Espanhóis – com todos os seus defeitos, levaram o conhecimento do Ocidente para o Oriente e vice-versa, fazendo, além disso, a primeira globalização da Época Moderna, que provocou uma espantosa revolução, progresso e transformação do mundo, que já não voltou a ser o mesmo, não só a nível das Ciências, mas também das Artes, das Letras, das técnicas e das mentalidades. E, acima de tudo, na alimentação e na culinária dos povos contactados, que se enriqueceram com a troca dos produtos (e as receitas dos nossos pratos) que os portugueses levaram da Europa, mas também do Novo Mundo (Brasil), para África e Oriente, e que trouxeram de lá para cá. Portugal estava à frente de todas as nações europeias, no período dos Descobrimentos, com saberes não só teóricos, mas de experiências feitos. Tínhamos os melhores cientistas – geógrafos, astrónomos, cartógrafos, biólogos, físicos [médicos], boticários [farmacêuticos], engenheiros e inventores, construtores de navios, historiadores, letrados, entre outros. As suas obras, copiadas pelas nações europeias mais avançadas, desfaziam mitos, superstições e ignorância, consagrados durante toda a Idade Média, abrindo as mentalidades para uma nova era de Conhecimento, apoiado em provas dadas pela experiência de muitos, pela descoberta de mundos e povos desconhecidos, em zonas que se julgavam inabitáveis, pela nova configuração dos continentes, desenhados milha a milha pelos nossos navegadores nas suas cartas de marear, que os espiões estrangeiros procuravam obter a todo o custo.”
Entre os tais “defeitos” está a escravatura, sem dúvida, sobretudo o tráfico negreiro transatlântico que os portugueses iniciaram no século XV e os brasileiros, já independentes, praticaram até bem dentro do século XIX. É um legado pesado, que merece reflexão, sendo certo que a escravatura marcou a humanidade em todas as épocas e latitudes até ao extraordinário triunfo do movimento abolicionista.
Descobrir foi um processo em dois sentidos. Lembro uma conversa em Nagasáqui em que japoneses me recordaram que graças aos portugueses descobriram o mundo. Um pouco a ideia que já vi defender um dos nossos mais prestigiados historiadores, João Paulo Oliveira e Costa, quando diz que os Descobrimentos fizeram os europeus descobrir o que havia longe e os que lá viviam e aos que viviam longe descobrir os europeus, na realidade fazendo o mundo auto-descobrir-se, pois antes das caravelas portuguesas e espanholas não havia sequer noção do que era.
Nisto de Descobrimentos, e para ajudar a perceber o conceito, sublinho sempre que a historiografia portuguesa nunca reivindica a descoberta da Austrália, por muito que seja provável (e até possam existir provas) de visitas ou avistamentos da costa norte no século XVI, muito natural para quem chegou a Timor. Não houve descoberta da Austrália pelos portugueses pois a gigantesca ilha não entrou nessa época na pioneira globalização iniciada com Vasco da Gama. Dizer que descobrimos a Austrália seria como dizer que os vikings descobriram a América. Nunca se tratou apenas de chegar a um sítio – fosse a Madeira ou o Japão -, mas sim de esse sítio, e as suas populações havendo-as, passarem a estar em contacto com o resto do mundo.
Estude-se os Descobrimentos. Ou então leia-se um bom romance por eles inspirado. Critique-se o que houver a criticar, mas não se negue o óbvio: foram um momento de transformação do mundo, é impossível pensar o mundo de hoje se não tivesse havido Descobrimentos. Parabéns Deana Barroqueiro pelos belos livros que tem escrito, parabéns também pela entrevista informada e frontal.
Leonídio Paulo Ferreira – Director adjunto do Diário de Notícias
[Transcrição integral. Cacografia brasileira corrigida automaticamente. Destaques e “links” meus.
Foto do “Príncipe D. Renato Barros I” de: Joana Sousa / ASPress (“Correio da Manhã”).]