Relatório – Parecer CACGDL

 

12 O Parecer do Prof. Doutor Francisco Ferreira de Almeida, de 29 de Dezembro de 2019, remetido no quadro dos contactos dos subscritores da iniciativa com a XII Comissão de Cultura e Comunicação sustenta, entre outros aspectos, que “1 — Do ponto de vista do Direito Constitucional, importa ter em mente que, ainda que adoptada na sequência de um projecto do Governo, a Resolução n.º 35/2008 constitui um acto da Assembleia da República. Ora, fazer depender o exercício do poder revogatório da AR — relativamente a um acto da sua competência de uma solicitação do Governo, significaria um cerceamento das competências do órgão parlamentar que, além de juridicamente insólito em termos gerais, não encontra (não poderia encontrar…) qualquer respaldo na Constituição da República Portuguesa;
2 — Acresce, no que respeita aos tratados internacionais, que a competência do Governo é meramente residual, cingindo-se, como é sabido, à respectiva negociação e à subsequente aprovação, em Conselho de Ministros, de uma proposta de resolução a submeter à AR. Compete a esta (e apenas a esta), ex vi do art. 161.º i), da CRP, proceder à aprovação desses tratados solenes, pelo que, aceitar-se como válida a tese de que a revogação da supracitada Resolução n.º 35/2008 carece de uma prévia proposta do Governo nesse sentido, redundaria numa autêntica subversão (essa sim) do sistema de repartição de competências entre ambos os órgãos de soberania, na matéria em apreço.” (Grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, nos termos da opção do autor do referido parecer).
13 0 Parecer do Prof. Doutor José Lucas Cardoso, por seu turno, refere, entre outros aspectos que “embora a Constituição da República Portuguesa estabeleça como competência política do Governo, entre outras as de “negociar e ajustar convenções internacionais” (artigo 197.,º n.º1, b)) e exista uma praxis em sede de cooperação institucional de propulsão pelo Governo da aprovação parlamentar dos tratados e ainda dos acordos internacionais mencionados no artigo 161.º i) da CRP, nada obsta, em termos do texto e do espírito da Constituição, a que a Assembleia da República possa vincular, sponte sua, o Estado português a convenções internacionais que estejam abertas, a nível internacional, a adesão pelos Estados e que, portanto, o Governo português não haja participado na respectiva negociação. Cai assim por terra, salvo o devido respeito, o argumento invocado pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho quanto à necessidade de observar no procedimento de desvinculação a tramitação devida para o procedimento de vinculação. Além disso, o princípio do Estado de Direito impõe aos órgãos de soberania o dever de “observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição” (artigo 111.º, n.º 1). Ora, se a mesma Constituição confere à Assembleia da República a competência para aprovar tratados e acordos internacionais (artigo 161.º i)), nada obsta a que este órgão de soberania exerça as suas competências por iniciativa dos deputados, ou como acontece no presente caso, dos cidadãos. Apesar do preceito mencionar a possibilidade do Governo propor à Assembleia da República a aprovação de tratados e acordos internacionais, não o menciona em termos de reserva de iniciativa, como acontece v.g. no que concerne à legitimidade para desencadear a aprovação dos Estatutos da Regiões Autónomas e das leis relativas à eleição dos deputados às respectivas Assembleias Legislativas (cfr. artigo 226,º) ou das propostas de legislação ou de referendo que “envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento” (cfr. artigo 167.º n.º 2). Assim sendo, o Governo deve circunscrever-se neste contexto aos mecanismos de interdependência expressamente previstos na própria Constituição, sob pena de estar a subverter o princípio da separação de poderes, enquanto sub-princípio concretizador do princípio do Estado de Direito. Ainda neste contexto, o princípio democrático impõe não apenas que aos órgãos de soberania seja reconhecida a possibilidade de exercerem as competências que a Lei Fundamental lhes confere como também a possibilidade de o fazerem sem interferências externas, isto é, por iniciativa dos seus próprios membros, pelo que arrepia também ao princípio democrático que a lei ou os regimentos consagrarem reservas de iniciativa externas, bloqueantes da decisão dos órgãos de soberania, para além dos casos e dos termos expressamente previstos na própria Constituição.” (Grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, nos termos da opção do autor do referido parecer).

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Em primeiro lugar, a reserva de iniciativa do Governo é precisamente a solução que está expressamente acolhida no Regimento da Assembleia da República no Capítulo relativo à aprovação de tratados e acordos. Nos termos do n.º 1 do artigo 198.º 14 “os tratados e acordos sujeitos à aprovação da Assembleia da República nos termos da alínea i) do artigo 161.º da Constituição, são enviados pelo Governo à Assembleia da República.”

Ademais, a reserva de iniciativa do Governo em matéria de convenções internacionais da competência da Assembleia da República é um traço do procedimento de vinculação parlamentar que não tem sido merecedor de dúvidas junto da doutrina e que encontra claro respaldo na competência exclusiva do Governo para a condução da política externa (decorrente do artigo 182.º da CRP) e para a negociação e ajuste de convenções internacionais (alínea b) do n.º 1 do artigo 197.º da CRP). Senão, vejamos:

  • Ao elencar as fases do procedimento de aprovação parlamentar de tratados e acordos, Jorge MIRANDA identifica a primeira fase, da iniciativa, apontando desde logo que se encontra reservada, pela natureza das coisas, ao Governo15“. Em anotação ao artigo 161.º da Constituição, escrevendo com Jorge PEREIRA DA SILVA, a posição de Jorge MIRANDA é ainda mais clara na identificação da fonte desta reserva de iniciativa: ela resulta do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 197.º da CRP, onde se prevê a competência exclusiva do Governo para negociar e ajustar convenções internacionais16

 

14 Até ao novo Regimento da Assembleia da República, aprovado em 2007, a matéria constava do artigo 210.º do Regimento.
15 MIRANDA, Curso…, p. 106
16Jorge MIRANDA e Jorge PEREIRA DA SILVA, in Constituição Portuguesa Anotada, Lisboa, 2018, volume II, anotação ao artigo 161.2, p. 514

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  • Por seu turno, Eduardo CORREIA BAPTISTA, reportando-se ao Regimento da Assembleia e à solução aí preconizada, afirma peremptoriamente que “a iniciativa cabe sempre ao Governo, mas esta reserva de iniciativa tem igualmente apoio constitucional. Decorre da reserva de negociação e autenticação e de condução da política externa que cabe ao Governo. Não deve existir uma vinculação do Estado português sem o concurso da vontade do Governo, mesmo nas situações em que, tratando-se de um adesão, é dispensada a negociação e assinatura deste“.
  • Jorge BACELAR GOUVEIA, também tendo presente o desenvolvimento da matéria no Regimento da Assembleia da República, reitera o referido entendimento, sublinhando quanto à iniciativa que esta “cabe ao Governo, sendo este o órgão constitucional competente para as fase que antecedem a da aprovaçã017
  • A referência à condução da política externa é aspecto igualmente determinante para esta análise e para o fundamento da reserva de iniciativa. Escrevendo em anotação ao artigo 182.º da Constituição, Jorge MIRANDA sublinha que a condução da política geral do País “compreende quer a política interna, quer a política externa, uma e outra pelo seu entrosamento cada vez mais forte e nítido na época actual, indesligáveis e congruentes. 18” Daqui se retira como consequência o corolário plasmado expressamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 197.º que é ao Governo que cabe negociar a ajustar as convenções internacionais, competência exclusiva que tem de se reportar quer ao momento da vinculação, quer ao momento da desvinculação, sob pena de inversão da opção

 

17 Jorge BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Internacional Público, Coimbra, 2019, p. 316

18 Jorge MIRANDA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Lisboa, 2018, volume II, anotação ao artigo 182º, pp 644

 

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desejada pelo legislador constituinte de atribuição desta função ao executivo (tendo até clarificado, em sucessivas revisões constitucionais, este papel de condução face às competências do Presidente da República, que deve dessa actividade de condução de política externa apenas ser mantido informado, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 201.º da CRP19). Em idêntico sentido, se pronunciam também André GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, enfatizando em primeiro lugar que se trata de um sistema de “repartição de poderes“, que “não pode deixar de reflectir as características gerais do sistema político definido na Constituição.” Neste quadro, “quem dirige a política externa do País é, em face da Constituição, o Governo“, o que decorre “do princípio geral de que a condução da política geral do País compete ao Governo e não a qualquer outro órgão de soberania“, rematando ainda que “como projecção desse princípio no plano externo, o texto constitucional atribui só ao Governo o poder de negociar e ajustar convenções internacionais20 — no sentido quer da vinculação às mesmas, quer da desvinculação, acrescentaríamos nós.

Esta reserva de iniciativa espelha-se em várias faculdades do Governo na tramitação do processo de vinculação interna do Estado Português. Em primeiro lugar, concluída a fase externa de negociação, cabe ao Governo decidir se prossegue ou não com o processo interno de vinculação, ainda que dessa inércia possam resultar consequências no plano da responsabilidade internacional, em caso de potencial violação do princípio da boa fé21.

19 Neste sentido, HENRIQUE MOTA, A Direcção da Política Externa no Constitucionalismo Português, in Nação e Defesa, n. 9 41, p. 46
20 André GONÇALVES PEREIRA / FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, Coimbra, 1997, pp 203-204

21 Sublinhe-se, contudo, como aponta Maria Luísa DUARTE, que apesar de poderem decorrer do princípio da boa-fé “limitações ao comportamento do Estado signatário (artigo 18.º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados)”, “em caso algum existirá, à luz do Direito dos Tratados, um dever de ratificação“, visto que o acto de celebrar ou ratificar um tratado é, por natureza, livre. Direito Internacional… pp. 202-203.

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Em segundo lugar, encontra-se na esfera decisória do Governo a definição de qual o momento de aprovação dos acordos que se encontram na sua esfera de competência, bem como de qual o momento de sujeição à aprovação da Assembleia das convenções que carecem da sua aprovação (Os tratados internacionais, por um lado, e os acordos sobre matérias da sua competência reservada).

Finalmente, em terceiro lugar, encontramos ainda nova margem decisória na opção de submissão à Assembleia da República dos acordos que, não sendo da competência reservada desta, o Governo entenda dever remeter para apreciação e aprovação em sede parlamentar22.

Qualquer uma destas prerrogativas de gestão da vinculação a convenções internacionais que a Constituição confere ao Governo, enquadradas na condução da política externa do País, ficaria seriamente prejudicada caso se admitisse que, à revelia da competência distribuída pela Constituição ao Governo para tomar essas decisões, e por iniciativa individual dos Deputados, Grupos Parlamentares ou, como no caso vertente, de grupos de cidadãos eleitores, se pudesse desencadear um processo de vinculação (ou desvinculação) em desarticulação (e à revelia) da supracitada competência exclusiva de condução das relações externas da República pelo Governo.

A indispensabilidade da intervenção parlamentar nos processos de desvinculação nas matérias em que é obrigatória a sua intervenção para a vinculação (as previstas na alínea i) do artigo 161º) não pode ter como corolário a inversão da regra de alocação de competências quanto à iniciativa do processo de vinculação, que tutelam o recorte específico do papel do Governo na matéria e que preservam a sua função de condutor da política externa.

22 Explicitando mesmo que “o exercício da competência de aprovação concorrente da Assembleia da República está dependente de uma iniciativa exclusivamente reservada ao Governo“, vide Fernando LOUREIRO BASTOS, O procedimento de vinculação internacional do Estado português após a revisão constitucional de 1997, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1998, p. 41.

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Consequentemente, não se vislumbra, pois, qualquer fundamento para que o mesmo raciocínio não tenha de ocorrer quanto à desvinculação de uma convenção internacional, atento o princípio do paralelismo de procedimento e de forma que já descrevemos e que é ponto pacífico e assente na vigência da actual redacção do texto constitucional.

Aliás, todas as considerações expendidas quanto ao papel do Governo na condução da política externa valem de igual modo nesta sede, atento o impacto que uma desvinculação poderá provocar no quadro das relações bilaterais ou multilaterais com os demais Estados-contratantes, podendo até, nalgumas circunstâncias, uma desvinculação de uma convenção em vigor entre as partes contratantes ser mais susceptível de gerar dificuldades diplomáticas ou de colocar em crise o respeito pelo princípio da pacta sunt servanda (e até, no limite, gerar responsabilidade internacional), do que uma mera opção pela não conclusão do processo interno de vinculação.

A prática parlamentar é reveladora de que esta leitura do texto constitucional quanto à reserva de iniciativa do Governo é pacífica, quer no que respeita à vinculação, quer no que respeita à desvinculação, como alguns exemplos recentes, das últimas legislaturas, demonstram:

  • Na presente Legislatura, aceitando o pressuposto de que o impulso para aprovação parlamentar de uma convenção deve partir da iniciativa do Governo, foi aprovado o Projecto de Resolução n.º 179/XlV (do Partido Socialista), recomendando ao Governo que desencadeie o procedimento para a conclusão da vinculação da República Portuguesa ao Protocolo Adicional de 2014 sobre Trabalho Forçado, da Organização Internacional do Trabalho, e que deu origem à Resolução da Assembleia da República n.º 21/2020, de 30 de Março;

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Updated: 03/09/2021 — 14:53