Parecer – Ivo Castro – 2005

Lisboa, 1.º de Novembro de 2005

Faculdade de Letras

Departamento Linguística
Geral e Românica

 

Exma. Senhora
Dra. Simonetta Luz Afonso.

Presidente do Instituto Camões
Lisboa

 

Exma. Presidente,

É benvinda[sic] a consulta que V. Exa. acaba de dirigir a diversas entidades e indivíduos a propósito dos efeitos de uma eventual entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990. Se esta consulta significa que o Instituto Camões e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, bem como outros ministérios interessados, têm dúvidas acerca do equilíbrio entre benefícios e desvantagens da entrada em vigor de um instrumento que esteve esquecido durante quinze anos, faz todo o sentido ouvirem os responsáveis, os especialistas e os afectados por essa iminente medida. Do mesmo modo que faz sentido suspender qualquer passo que a torne irreversível, designadamente os processos de ratificação dos dois Protocolos Modificativos (1998, 2004).

Esta suspensão não deve esperar pelas conclusões da consulta em curso. Se as conclusões forem negativas — como me parece provável — a suspensão terá criado espaço para uma revisão da posição oficial portuguesa, que nelas se inspire.

Alguns dados e interrogações podem ser reconhecidos de imediato como justificativos da suspensão e posterior revisão. Enuncio-os muito sucintamente, confiante na sua eloquência própria e reservando para outro momento uma reflexão mais documentada ou sobre as razões para Portugal mudar de política ou sobre as medidas de alívio dos inconvenientes da sua actual política, conforme o curso que as coisas levarem.

1. A situação dentro dos países de língua oficial portuguesa, e entre eles, não é hoje a mesma que se verificava em 1990. Veja-se, por exemplo, o crescimento rápido do número de falantes de português como língua materna em Angola e Moçambique, fenómeno recente e sustentado que influenciará decisivamente o futuro da língua nesses países. A defesa que então se podia fazer do Acordo não pode ser hoje repetida com a mesma convicção, após quinze anos em que ele não mostrou ser imprescindível.

2. O Acordo de 1990 (terceira versão de processo muito controverso) nunca chegou a ser submetido a um escrutínio técnico e cientifico tão rigoroso como as versões que o precederam em 1986 e 1988. Será prudente pô-lo em vigor sem essa validação? Será ele, com o principio de facultatividade em que assenta, um verdadeiro instrumento de uniformização, como qualquer ortografia pretende ser?

3. Às Academias portuguesa e brasileira foram as autoras intelectuais do Acordo de 1990, Tendo-se interessado, depois disso, na publicação de importantes dicionários que usam a actual ortografia (Houaiss, Casteleiro), manterão a sua antiga disposição para defender perante uma opinião pública contrária uma medida que tornará obsoletos esses dicionários? Dispõe o Governo -português de outros agentes que assumam essa necessária defesa e justificação?

4. Finalmente, um ponto que não tem merecido suficiente atenção. No espaço da língua portuguesa, tem existido, e contínua a existir, uma efectiva e uniforme união em torno do Acordo Ortográfico de 1945, a que aderem Portugal e todos os restantes países, com excepção do Brasil.

Quer isto dizer que nada, no plano ortográfico, separa Portugal de Angola e de Moçambique. Mas a adesão portuguesa ao Acordo de 1990, feita nos termos do Segundo Protocolo Modificativo, isto é não acompanhada por todos os países, introduzirá uma divisão onde existe união e alienará sectores dá opinião em países com os quais parece prioritário manter as grandes afinidades existentes actualmente.

Isto traz à memória o mau passo dado por Portugal nos planos diplomático e político em 1991, quando promulgou unilateralmente, sem ter em conta a opinião e os sentimentos do Brasil, uma reforma ortográfica tecnicamente excelente, mas que criou uma clivagem que tem resistido a todas as tentativas de acordo feitas pelos dois países — durante o século seguinte, Valerá a pena repetir o gesto, agora em direcção a Angola e Moçambique?

Em conclusão, recomendaria:

— no imediato, a suspensão do processo em curso;

— em seguida, a não ratificação por Portugal do Segundo Protocolo Modificativo, salvaguardando de outra forma a adesão de Timor-Leste à CPLP,

Apresento a V. Exa. os meus cumprimentos, com elevada consideração e estima pessoal.

 

Ivo Castro

 

ALAMEDA DA UNIVERSIDADE — 1600-214 LISBOA – PORTUGAL | TELEF. 21 7920000 & TELEFAX:21 156 09 63 – pg 1


[transcrito de documento em formato PDF originalmente alojado no endereço
http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/aemiliano/AOLP90/CD-PR/DOCUMENTOS/08-CASTRO2005.pdf ]

Updated: 10/07/2023 — 16:54