Breve parecer sobre a entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990
1. UMA DECISÃO POLÍTICA SOBRE O ACORDO ORTOGRÁFICO
No próximo dia 15 de Maio, ao avaliar a proposta de resolução aprovada pelo Governo que poderá levar o Acordo Ortográfico de 1990 a ter força de lei, a Assembleia da República estará confrontada com uma decisão eminentemente política. Uma vez que o poder legislativo goza de autonomia perante os demais órgãos de soberania, é legítimo pensar que poderão não ser aprovados os mecanismos conducentes à entrada em vigor do Acordo. Não obstante, também não está liminarmente excluída a possibilidade de a Assembleia vir a considerar que a República Portuguesa não está em condições de o denunciar. Neste quadro de indeterminação, contemplarei ambas as hipóteses, apresentando em primeiro lugar algumas razões que, a meu ver, favorecem a posição de não validação do Acordo e, em segundo lugar, as linhas de actuação que julgo adequadas com vista à minimização dos efeitos mais negativos da sua aplicação.
2. SOBRE ALGUMAS RAZÕES PARA A NÃO APLICAÇÃO DO ACORDO
2.1 Reformas rigorosas orientadas para a simplicidade e a clareza da escrita
Nada tenho a opor a reformas ortográficas que visem a simplicidade, a clareza e o carácter sistémico da escrita. Pessoalmente, abomino ler em ortografia anterior à reforma de 1911, com palavras como “archaico”, “philosophia”, “ethnologia”, “accepção”, “construcção”, “auctor”, “succeder”, “alumno”, “escriptorio”, “comprehender”, “elle” ou “Iyceo”. Fico sempre grato à lei da República que livrou a língua portuguesa do que hoje sinto como ganga pesada e inútil, resultante da etimologia — em certos casos penalizada por opções de transliteração do grego, via latim, que davam conta de subtis variações do consonantismo grego que nem o latim nem a romanidade importaram — e ainda do carácter assistemático da grafia portuguesa até ao século XX. Sem a mudança, talvez convivesse bem com o que agora me repugna, mas, educado depois dela, só posso achar a nova escrita mais simples (mais “limpa” e leve”, por isso mais bela) e, num plano técnico, mais orgânica e de mais fácil aprendizagem.
Não sendo, pois, por princípio, contrário a uma reforma ortográfica, não posso deixar de exigir, enquanto cidadão e linguista, que as reformas se pautem por critérios claros e rigorosos. À meu ver, a reforma de 1911, independentemente de algumas soluções discutíveis, respeitou no essencial os requisitos de clareza e rigor e, ademais, averbou ainda a seu favor o objectivo pertinaz de maximizar uma correspondência sistemática entre o plano sonoro e o plano gráfico da língua (ainda que tal desiderato nunca possa ser plenamente alcançado, sob pena de se matar por completo toda a informação histórica que uma língua também veicula). Creio ser legítimo afirmar-se que um dos critérios seguidos foi o de não introduzir mudanças que previsivelmente pudessem interferir com a leitura: por exemplo, no que respeita à supressão de consoantes ditas “mudas”, em 1911 ela só foi admitida quando a ausência de tais consoantes não aumentava o risco de alteração do timbre dos segmentos vocálicos (orais ou nasais) precedentes (como era o caso em “auctor”, “succeder”, “conjuncto”, “estricto”, “solemne”, “alumno” ou “escriptorio”). Bem diversamente, o Acordo Ortográfico de 1990, embora apresente algumas inovações que reputo aceitáveis em certos domínios não só introduz um factor de indefinição da grafia (enfraquecendo assim o conceito de “ortografia”) como parece não resultar de uma avaliação rigorosa das consequências das mudanças sobre outros componentes do sistema linguístico, nomeadamente a pronúncia. Fixar-me-ei em três aspectos apenas, que considero suficientes para a rejeição do Acordo: (i) a questão geral da opcionalidade da grafia; (ii) a acentuação de algumas formas verbais; e (111) a supressão de consoantes ditas “mudas”.
2.2 Alguns dos aspectos mais negativos do Acordo Ortográfico de 1990
2.2.1 As grafias facultativas
O Acordo em análise admite grafias facultativas para a língua portuguesa em toda a sua extensão, sem quaisquer restrições além da existência (onde quer seja) de “pronúncia culta” que as sancione. Segundo a sua letra, passam a ser legítimas no espaço da língua portuguesa todas as variantes gráficas dos seguintes pares, entre muitos outros: fenómeno/fenômeno, aritmética/arimética, amnistia/anistia, amígdalas/amídalas, súbdito/súdito, visitamos (ontem) / visitámos (ontem), recepção/receção, espectadores/espetadores, intersecção (de conjuntos) / interseção (de conjuntos), (o0) cacto (secou) / (o) cato (secou), (o Tejo) desagua (em Lisboa) / (o Tejo) deságua (em Lisboa) / (a Polícia) averigua (o crime) / (a Polícia) averigua (o crime). Bastam estes exemplos para se perceber o caos em que, se corroborada, a interpretação literal do Acordo poderá lançar a língua portuguesa. Segundo ela, dois alunos portugueses, em Portugal (ou brasileiros, no Brasil, etc.), sentados lado a lado, ou dois professores em salas contíguas seriam livres de usar a seu bel-prazer as grafias alternativas. Em última análise, é deixada ao livre arbítrio de cada cidadão a escolha da grafia, pondo-se em causa a função da língua escrita como factor de coesão social.
A questão do carácter facultativo da grafia só pode ser tratada adequadamente no quadro de uma definição rigorosa de dois conceitos que o Acordo dá como evidentes, mas que na realidade carecem de ser cientificamente fixados. Um é o conceito de “língua portuguesa”, entidade sobre a qual, desde o preâmbulo, versa todo o Acordo; outro é o conceito de “pronúncia culta”, essencial para se poderem interpretar de forma inequívoca injunções do Acordo como esta, acerca de determinadas consoantes: “conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral quer restritamente (…)”. No âmbito de eventuais trabalhos conducentes a uma revisão ortográfica concertada no mundo de língua portuguesa, a primeira medida a tomar seria fixar estes conceitos.
2.2.2 Uma opção de acentuação dificilmente explicável
O Acordo suprime o acento nas formas da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo dos verbos regulares da primeira conjugação, pelo que, em vez de adiámos, contratámos, combinámos, encomendámos, entregámos, levámos, pagámos, etc., passaríamos a ter, como acontece no Brasil, formas iguais às do presente do indicativo: respectivamente, adiamos, contratamos, combinamos, encomendamos, entregamos, levamos, pagamos, etc. Quando se argumenta que tal identidade de formas se verifica na segunda e na terceira conjugações (lemos, partimos, etc.), está-se a escamotear o facto de não haver nestas conjugações a diferença na realização oral que se verifica na primeira, na qual, em Portugal, a forma do passado é pronunciada com “a* aberto e a do presente com um “a’ fechado. No Brasil não é assim, sendo ambas as formas pronunciadas da mesma maneira, com “a’ aberto. Ora, não havendo diferenciação da pronúncia no Brasil, é razoável que aí se use sempre uma forma gráfica não acentuada, mas fazendo-se em Portugal a distinção fónica, justifica-se que aqui haja diversidade gráfica, isto é, acentuação do pretérito e não acentuação do presente, dentro da lógica de uma escrita que (por exemplo, em oposição diametral à escrita inglesa) tem uma tradição de uso abundante da acentuação. Acresce ainda que esta incompreensível alteração, levando com toda a probabilidade as formas portuguesas do pretérito ao fechamento das vogais antes acentuadas (fenómeno que, por vezes, já se verifica, mesmo com acento), se estará a cavar ainda mais a divergência entre as pronúncias portuguesa e brasileira: no Brasil manter-se-ão todas as formas abertas, enquanto nós tenderemos a passar todas a fechadas.
2.2.3 Supressão e opcionalidade das consoantes ditas “mudas”
Na minha opinião, o Acordo deveria ter seguido, em relação ao conjunto das consoantes não pronunciadas os seguintes critérios conjugados:
1.º Evitar a homografia, sempre indesejável. Como corolário, seria mantida a consoante muda no primeiro membro de pares como acto / ato (verbo); cacto / cato (verbo); óptico / ótico (relativo ao ouvido); corrector / corretor (da bolsa) [neste último caso, assumindo que a vogal tenderá a elevar-se após a supressão do ‘c’].
2.º Evitar o risco de homofonia, também igualmente indesejável. Como corolário, seria mantida a consoante muda em palavras como recepção ou intersecção, que poderiam vir a tornar-se homófonas de, respectivamente, recessão e intercessão.
3.º Evitar o risco de fechamento vocálico. Como corolário, seria mantida a consoante muda sempre que, com base em estudos credíveis, se provasse que a sua presença constitui um elemento favorável à abertura vocálica; sob escrutínio, estariam, entre muitas outras, palavras como acção, actor, baptismo, perspectiva, lectivo, selecção, aspecto ou objecto.
4,º Evitar a desagregação gráfica de famílias de palavras. Como primeiro corolário, seria mantida a consoante muda em todas as famílias de palavras em que a mesma pode ser pronunciada em pelo menos um dos membros; logo, não seria suprimida em famílias como as que a seguir se exemplificam com alguns dos seus membros: egípcio / Egipto, espectador | espectáculo; secção / sector / intersecção; assepsia | asséptico | anti-séptico.
Como segundo corolário, seria mantida a consoante muda em todas as famílias de palavras em que a mesma devesse manter-se por aplicação de um dos anteriores critérios; um exemplo claro é a família de acto, que inclui actual, actualmente, actividade, accionar e actriz, mas a que pertencem membros nos quais a presença da consoante muda contribui para a abertura da vogal precedente, como é o caso de activo e activar (apesar de se tratar de um grupo em claro processo de fechamento vocálico).
As consoantes mudas poderiam ser suprimidas nos casos em que parecem não ser mais do que um resíduo etimológico, podendo aceitar-se as seguintes evoluções: recta > reta (é improvável o fechamento total; cf. os substantivos seta e meta); óptimo > ótimo (sendo o elemento mínimo esdrúxulo e, portanto, acentuado, está garantida a abertura); peremptório > perentório (sendo nasal, a vogal não pode ser fechada); assumpção > assunção (não há fechamento possível da vogal).
Sobre a questão do fechamento das vogais, vale a pena recordar que o português europeu se está a tornar uma língua dificilmente inteligível inteligível na oralidade, sobretudo locutores não nativos, devido ao fechamento das vogais. Demonstração clara dessa situação progressiva, é o facto de um falante de castelhano entender bem o português escrito, mas não o falado, ao passo que os portugueses entendem com grande facilidade a oralidade castelhana, toda assente num vocalismo aberto; o mesmo se passa quando se confrontam falantes de português europeu e de português brasileiro: os primeiros entendem os segundos (salvo, é claro, em certas áreas do vocabulário), mas a inversa não é verdadeira, chegando-se ao ponto de no Brasil só se poder ver um filme português se legendado. Conhecido este panorama, tudo o que contribua para o fechamento das vogais no português europeu afectará negativamente esta variante da língua portuguesa.
3. SOLUÇÃO DE RECURSO: EVITAR MALES MAIORES
3.1 Língua portuguesa: um sistema, diferentes normas
Caso a Assembleia da República e subsequentemente o Presidente da República entendam não haver alternativa à entrada em vigor do Acordo, é meu parecer que devem ser tomadas todas as iniciativas com vista a uma interpretação restritiva da sua aplicação. Do ponto de vista da teoria linguística, como sugeri no ponto anterior, é crucial para esta orientação que seja fixado, com fundamentos sólidos, o conceito de “língua portuguesa”. A meu ver, o entendimento adequado deste conceito é (adaptando uma distinção clássica do linguista Coseriu) o da língua enquanto “sistema”, i.e., como idade integradora de diferentes “normas” (ou “variantes”) que também podem ser gráficas. Nesse plano do sistema, faz sentido (tendo em conta organizações internacionais, tratamentos computacionais e outros domínios relevantes) colocar a par e considerar realizações legítimas da língua todas as variantes admissíveis (uma vez mais, incluindo as gráficas), passando os vocabulários e dicionários de português a incluir as formas alternativas (como estabelece o Acordo), com uma sobrecarga não muito significativa, comparável à da maioria dos dicionários do inglês, que dão as grafias britânica e americana.
3.2 Um sistema universal com normas regulamentadas em domínios limitados da ordem interna
Estabelecida a noção de “língua portuguesa” sobre que incide o Acordo enquanto “sistema da língua portuguesa” (no sentido da teoria de Coseriu), não vejo que viole a letra do mesmo Acordo a iniciativa de cada Estado, se assim o entender, seleccionar as possibilidades permitidas pelo sistema que serão adoptadas na sua ordem interna, no âmbito limitado do sistema de ensino e da produção oficial de documentos (e, colateralmente, p. ex., da publicação de obras com financiamento público e não destinadas exclusivamente a países com outras opções normativas). Tão simples quanto isto: todas as variantes previstas pelo Acordo são reconhecidas como língua portuguesa, mas em cada Estado, nos domínios de uso referidos, vigora a variante ortográfica que melhor se lhe adapta. Nas instâncias internacionais, qualquer variante poderia ser usada, com regras simples: p. ex., na ONU, se o Brasil for membro do Conselho de Segurança, será usada uma opção brasileira, na UE será a portuguesa, na CPLP será a do país que presidir, e por aí fora.
3.3 Estudos e decorrentes instrumentos normativos
No caso de ser dada luz verde à entrada em vigor do Acordo, é imperioso que os deputados e o Presidente da República usem todas as suas capacidades legais ou o seu magistério de influência para evitar a imensa perturbação que adviria da interpretação não restritiva do Acordo. Tal só se conseguirá se a sua entrada em vigor ficar condicionada a uma definição inequívoca do seu alcance e modo de aplicação no âmbito nacional. Para este fim, o Governo precisará de nomear de imediato uma comissão de peritos (incluindo, entre outros, linguistas, neuropsicólogos, psicólogos da linguagem e sociólogos, com intervenção das Universidades e não apenas a Academia das Ciências de Lisboa) que fique incumbida de, com base em estdudos sérios, fixar os critérios de selecção das opções previstas e acompanhar a delimitação do vocabilário ortográfico parcial da língua portuguesa a adoptar em Portugal nas esferas de uso referidas. A margem de manobra que o Acordo permite é muito grande e, se for seguida esta via, pouco estará já pré-determinado. Esse pouco é o que, por força da alínea b) da Base IV, nos obrigará, com algum risco de alterações lamentáveis na pronúncia, a passar a escrever ação, diretor ou adotar. Estou, todavia, em crer que, se os custos do Acordo não forem além de umas quantas consoantes que já nenhum falante de português pronuncia, não estaremos a pagar um preço demasiado elevado.
Lisboa, 12 de Maio de 2008
João Andrade Peres,
Doutor em Letras (Linguística Portuguesa),
Professor Catedrático do 2.º Grupo-A (Linguística Geral e Românica)
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
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