“Escrever mal” e “falar pior” não tem nada a ver com o AO90, em textículos como este; o qual servirá, quando muito, de contraponto pelo absurdo: como é possível escrever uma coisa sobre “o Português a saque” sem jamais referir a cacografia brasileira que pretendem impor-nos?
Não é de brasileiro ou de erros em língua brasileira que se trata; os ilustres lá do “pedaço” que se assoem ao seu próprio guardanapo, que fiquem lá com as suas bacoradas, desenrasquem-se, o que até não há-de ser difícil visto que o brasileiro não está sujeito a qualquer tipo de regras ou norma — é uma língua “tipo” CC, ou seja, Consoante Calha: o erro em geral e a asneira em particular, aliás, são a regra e não a excepção na “língua universáu” brasileira. Problema deles. Os nossos erros, por simples corruptela ou elementar ignorância, são nossos, são exclusivos, são gramatical, terminológica e enciclopedicamente portugueses.
Ao invés do que se entende, segundo a Vox Populi (a que se juntam uns quantos especialistas da asneirola), escrever mal e falar pior sempre foi uma espécie de desporto nacional. A tanga mais disseminada, neste particular, é que no tempo da outra senhora (ou “dantes”, para os mais tímidos) toda a gente escrevia (e falava) com correcção e só hoje em dia escrever com os pés não é ridículo, é currículo. Nem uma coisa nem outra, claro. Wishful thinking ainda não tem nada a ver com a realidade.
E isto em especial no que à escrita diz respeito, até porque a regra geral é que as formas artesanais de fazer seja o que for são, por regra e definição, bem mais simples do que a sua materialização com saber e arte; premissa que vale tanto para uma pintura como para qualquer partitura, escultura ou obra de arquitectura, o texto mais básico ou a obra literária mais fascinante e memorável.
Em suma, sempre se escreveu por cá pessimamente; declinar com correcção uma única frase parece ser um exercício excruciante para a esmagadora maioria dos portugueses; pronunciar umas palavrinhas sem desfiar asneiras a granel é algo quase tão complicado como calcular a velocidade (e a trajectória) do vento solar quando “sopra” nas “velas” do Space Shuttle.
Tanto na escrita como na fala existe um infindável anedotário no qual até altos dignitários e diplomatas, governantes, altos quadros e ministros em geral participam. O que, por conseguinte e por contraponto, em pura antítese e a título de ilustração a contrario, poderá remeter-nos de novo até ao ponto de partida, ou seja, poderá suceder que afinal escrever com os pés tenha também a ver com a língua brasileira impingida pelo AO90: o erro que resultava de ignorância passa a ser obrigatório por lei e é o próprio Estado (português) que nos impõe esse inimaginável horror.
Porém, reiteremos também, não é essa a questão ou, pelo menos, não o busílis dela. Sempre se escreveu em Portugal com os pés e sempre se falou abaixo de cão. Por excepção absoluta, a única vantagem do AO90 foi — acrescendo à galopante falência do Ensino do Português, dos bancos da escola aos anfiteatros das faculdades — pôr algumas pessoas (que nunca antes ou muito raramente se tinham metido em tais assados) a estudar, a escrever, a falar sobre o erro “de” Português.
Evitando quase sempre encarar de frente os reais problemas que afectam a Língua Portuguesa, sim, aqueles que o AO90 gerou a partir do nada, mas ao menos deixando algumas pistas para a missão quase impossível que nos coube em sorte: acabar com o saque do Português pelo AO90.
Português a saque
O escrever mal e o falar pior nos media portugueses
Por Rui Cardoso 1 de Abril de 2021
in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa,
[consultado em 09-04-2021]
ciberduvidas.iscte-iul.pt
«Entre o inglês contrabandeado e o brasileiro das novelas, a língua portuguesa agoniza. Nunca se falou e escreveu tão mal e o exemplo vem de cima.»
Assim se fala e escreve nos tempos que correm. Vejamos em pormenor.
JOVENS MULHERES
Se dissermos «uma jovem» estaremos a definir sem ambiguidades aquilo de que estamos a falar. Um pleonasmo, além do mais sexista, já que não consta que se costume aludir a «jovens homens». Tudo radica, diz Joana Rabinovitch, ex-docente da Faculdade de Letras de Lisboa e da Universidade Nova, no facto de «em inglês, ao contrário do português, os adjetivos e os artigos não terem género». Daí que a young woman, não se possa traduzir à letra. Em português, palavras como forte ou jovem são neutras. É o vocábulo que as antecede que lhes dá o género: «uma jovem», «várias jovens», «diversas jovens»…
TRIBUTO
Quem pagava tributo a Vasco da Gama era o Samorim de Calecute e, de uma forma geral, os vassalos aos senhores feudais ou os cativos aos seus captores. É certo que em dicionários portugueses recentes se refere que “tributo” pode ter a aceção de homenagem. Mas isso parece resultar, não da etimologia, mas de um anglicismo recente. Até porque não consta que a Autoridade Tributária tenha como principal missão homenagear os contribuintes…
OFICIAIS
Em inglês, officer tanto pode designar um oficial das forças armadas, como um agente policial, um funcionário da administração pública ou de uma companhia privada. Atenção ao contexto, portanto.
SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA
Se existisse tal coisa, sendo a natureza tendencialmente simétrica, seria combatida pelo seu contrário, ou seja, pelos serviços de estupidez… Os serviços ou agências de informações (é disso que se trata) dedicam-se às mais diversas coisas: espionagem, contraespionagem, vigilância pessoal, eletrónica, etc.
FOCO
Os dispositivos óticos, dos faróis às lentes, é que têm profundidade de campo, distância focal, etc. A expressão to be focused on significa «estar empenhado, concentrado ou atento».
ENCRIPTADO
É certo que existe uma técnica ou ciência chamada criptologia, relativa à forma de comunicar secretamente entre emissor e recetor. Mas o que faz é codificar ou descodificar, cifrar ou decifrar mensagens e não encriptá-las ou desencriptá-las, o que literalmente significaria enterrá-las ou desenterrá-las numa cripta ou cave…
QUÍMICO
Designa fenómenos ligados à composição, estrutura e propriedades da matéria ou os profissionais que os estudam. O que há em português são produtos químicos que, por sua vez, podem ser elementos, compostos, misturas, ácidos, bases, sais e muitas coisas mais.
EVIDÊNCIA CIENTÍFICA
Eis um oximoro capaz de fazer Bento de Jesus Caraça, Rómulo de Carvalho ou Mariano Gago revolverem-se na tumba. Aquilo que é evidente, isto é, que entra pelos olhos dentro, não carece, por isso mesmo, de explicação científica. Em contrapartida, aquilo que é científico raramente é evidente, por recorrer a conceitos, matemáticos ou outros, com os quais o cidadão comum não está familiarizado. Daí a importância da divulgação científica. Evidence em inglês significa somente «prova», seja esta do foro científico ou jurídico, e não qualquer outra coisa.
ANTRAZ
Muito falado a seguir ao 11 de Setembro, este pó branco, mandado pelo correio, continha esporos do Bacillus anthracis, causador do carbúnculo. Não confundir com antraz, conjunto de furúnculos, geralmente causado por bactérias do género estafilococo. A descoberta do agente causador daquela infeção (respiratória, cutânea ou gastrointestinal) e a preparação de uma vacina tornaram mundialmente famoso Louis Pasteur em 1881.
RESILIÊNCIA
Para quê recorrer ao anglicismo derivado de resilience para designar tenacidade, superação, galhardia ou simplesmente… resistência?
CORPORATIVO
No inglês falado nos EUA a palavra corporation designa as empresas cotadas em bolsa. Logo, não há “políticas corporativas” mas, quando muito, empresariais. Em português, corporações são as dos bombeiros, as dos artesãos da idade média (tecelões, ourives, correeiros, etc.) ou as instâncias de conciliação entre capital e trabalho criadas pelo Estado Novo.
EMPODERAMENTO
Dito assim, parece ter a ver com espalhar algum tipo de pó. Empowerment traduz-se por ter acesso a algum tipo de poder ou responsabilidade ou, mais simplesmente, capacitação.
AO FIM DO DIA
Tradução literal da expressão coloquial at the end of the day, equivalente a «no final», «em última análise», ou… «trocado por miúdos».
COMETER SUICÍDIO
Em português as pessoas matam-se ou põem termo à vida. To commit suicide traz consigo a carga ideológica protestante de infração à lei divina, logo do cometimento de um pecado.
Como se vê, uma novilíngua orwelliana parece querer substituir o português. É uma mistura de chavões, tiques de linguagem, modismos e palavras contrabandeadas do inglês aprendido à pressa. Qual vírus parasitando o sistema imunitário, contagia os media e as universidades, sem esquecer figuras públicas de quem se esperaria outro aprumo na forma de expressão.
O mito da evolução da língua
«Dou aulas de português I e II na Universidade Católica e muitos alunos, alguns vindos de colégios caríssimos, chegam aqui incapazes de fazer uma conjugação pronominal, além de não conhecerem autores portugueses fundamentais», vinca Jorge Vaz de Carvalho, docente e escritor.
Não se trata de defender que escrevamos ou falemos como os nossos avós. Camilo não escrevia como Sá de Miranda, nem Saramago como Fernando Pessoa. A língua é um organismo vivo em permanente evolução. E tanto pode prosperar como morrer. «Se fôssemos dizer a um grego ou um romano do séc. I a.C. que as suas línguas iriam deixar de ser faladas, eles rir-se-iam mas foi o que aconteceu», diz Jorge Vaz de Carvalho.
Como refere Angélica Varandas do Departamento de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras de Lisboa, «a língua evolui, acompanhando o desenvolvimento social. O que não me parece certo é que se oblitere o português no mundo académico, se estudem os autores portugueses no 2.º e 3.º ciclos de modo antiquado e que os meios de comunicação social não saibam dar o exemplo».
É bom lembrar que, na própria natureza, nem todas as mutações são benignas. Enquanto no meio natural a competição evolutiva tende a eliminá-las, com a língua dá-se o oposto. Tal como na Lei de Gresham, postulando que a má moeda expulsa a boa moeda, o mau português tende a escorraçar o outro.
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