Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.
Ditoso seja quem, estando absente,
Não sente mais que a pena das lembranças,
Porque, inda mais que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.
Mas triste de quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.
Luís de Camões
No texto da noticia abaixo transcrita há uma construção frásica verdadeiramente significativa porque retrata na perfeição o estado a que chegou o AO90: «o “impasse” do acordo ortográfico». Até as comas em “impasse”, abençoado francesismo, contêm um peso que em toneladas excede a aparente leveza de um simples sinal gráfico.
É esta, portanto, a conclusão principal da «décima Conferência de Literatura em Língua Portuguesa» que «decorreu de forma virtual, com o título “Em que português nos entendemos?”» e que foi «organizada pela Coordenação do Ensino Português nos EUA (CEPE-EUA) e pelo Centro de Língua Camões na Universidade de Massachusetts, na cidade norte-americana de Boston.»
Bem podem os acordistas e assimilados tentar agora retorcer a evidente realidade que os conferencistas tão cirúrgica e racionalmente sintetizaram; não se trata de mero lapsus linguae, como poderão alguns alegar com desespero, trata-se de uma singela, simples, esmagadoramente óbvia constatação: trinta anos depois da sua invenção e uma década após a sua imposição selvática, o “acordo ortográfico de 1990” está num impasse.
Pois sim, pois está, já cá se sabia, mas não deixa de ser algo gratificante verificar que o mesmo facto é partilhado por gerações sucessivas de compatriotas nossos, em Portugal, a todos os níveis, e também no estrangeiro, entre as comunidades portuguesas.
São aliás eles mesmos, os nossos emigrantes e os seus filhos e netos, aqueles a quem o aleijão cacográfico mais objectivamente afecta, já que é precisamente a Língua Portuguesa o laço mais perene que os liga — entre si e com a sua terra — e a mais poderosa marca histórica e patrimonial que os define, que os distingue e que é em absoluto a sua identidade. Com as inerentes e naturais diferenças nos diferentes “falares”, preservar na íntegra a escrita — consagrada não apenas pelo uso como também, ou sobretudo, pela razão que a suporta — é um dever incontornável, imune a considerações, tergiversações e invenções absurdas.
«Respeitar essas diferenças, reconhecê-las e aceitá-las», ao invés do que alguns pretendem, não depende de forma alguma de quaisquer teorias supremacistas; a Língua Portuguesa, como qualquer outra, não está nem pode estar sujeita a ascendente territorial, poderio económico ou “número de falantes”.
Respeitar as diferenças, assim como reconhecer as evidências, implica necessariamente aceitar que umas e outras são tão válidas como é inadmissível a sua negação. Isto, de tão claro e transparente, não tem nada de radical, tem tudo de racional.
Não existe o que mais discutir, portanto. O impasse a que de facto se resume o AO90, hoje em dia, não passa de um hiato, espécie de velório macabro em que os circunstantes, já comatosos pelo aborrecimento, aguardam com impaciência que a provação acabe e se enterre de uma vez por todas o ruim defunto.
Inclusão linguística e diversidade do português defendida por lusófonos nos EUA
Especialmente promovida para uma audiência lusófona nos Estados Unidos da América (EUA), a décima Conferência de Literatura em Língua Portuguesa decorreu de forma virtual, com o título “Em que português nos entendemos?” e foi organizada pela Coordenação do Ensino Português nos EUA (CEPE-EUA) e pelo Centro de Língua Camões na Universidade de Massachusetts, na cidade norte-americana de Boston.
A diversidade é fonte de “dinâmica”, disse o escritor brasileiro e diplomata João Almino, membro da Academia Brasileira de Letras, acrescentando que todos podem “enriquecer” com o diálogo entre as diferenças e sublinhando que “o que ameaça a língua é a paralisia“.
Professor universitário e autor de diversos romances e volumes de ensaios sobre literatura e sobre história e filosofia política, João Almino disse que o português “é muito diverso de um lugar para outro e nós devemos respeitar essas diferenças, reconhecê-las e aceitá-las do ponto de vista gramatical ou sintáctico“.
Defendendo que os escritores, originários de qualquer parte do mundo, devem ter “liberdade” para “incorporar” as suas vivências e cultura na mesma língua portuguesa, João Almino acrescentou: “E quando eu leio, por exemplo, um escritor africano, eu quero sentir o sabor da língua da África, daquele lugar”.
A escritora cabo-verdiana Maria Augusta Teixeira, também conhecida como Mana Guta, defendeu que é da responsabilidade e da “militância” dos escritores, que são os que “estão sempre na vanguarda” de soluções, “recuperar a memória oral” cultural de cada país para uma “forma perene”, com a transcrição das histórias para livros.
A presidente da Assembleia Geral da Sociedade Cabo-verdiana de Autores e vice-presidente da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social considerou estar numa posição, em Cabo Verde, de “juntar as pontas soltas” das duas línguas no país insular, português e cabo-verdiano ou crioulo.
Mana Guta, também gestora pública e professora universitária, defendeu “sair da dicotomia: porque nós temos crioulistas e lusofonistas em Cabo Verde. A minha postura é juntar as pontas soltas, precisamos das duas línguas“.
Para Lídia Jorge, autora portuguesa de 26 obras e distinguida com numerosos prémios portugueses e internacionais, mais do que diferenças, as identidades são também formadas por contrastes, inclusive em Portugal.
“Eu fiquei profundamente marcada por um país que era pobre, de estender a mão, mas que queria ser ao mesmo tempo um país que dominava uma vasta zona do mundo”, disse a professora, que já ensinou em Portugal, Angola e Moçambique e é membro do Conselho de Estado, órgão político de consulta presidencial.
Entre outros assuntos, foram discutidos o “impasse” do acordo ortográfico e as abordagens sobre o “fim do mundo” na literatura, com os três autores a concordarem que, de uma maneira ou outra, o mundo está “num momento de transição” ou de “quase fim do mundo”, por causa da crise sanitária mundial provocada pela pandemia de covid-19 desde início do ano passado.
Na apresentação da conferência, o cônsul-geral de Cabo Verde em Boston, Hermínio Moniz sublinhou que “mais do que nunca, precisamos de inclusão linguística, porque a língua é uma arma muito poderosa“.
O tema da língua e construção de identidades é, para o cônsul-geral do Brasil em Boston, Benedicto Fonseca Filho, “vastíssimo” e “abre tantas possibilidades (…), como relações de poder ou papel das migrações”.
João Pedro Fins do Lago, cônsul-geral de Portugal em Boston, destacou que a conferência “tripartida” e multicultural, no seu décimo aniversário, decorreu numa nota “positiva de inclusão e de reconhecimento do papel da mulher na literatura”, com a atribuição do Prémio Camões à escritora moçambicana Paulina Chiziane.
“É com imensa satisfação e com imenso orgulho que vimos um prémio tão importante ser atribuído a uma mulher, a uma mulher africana, a um vulto da literatura lusófona, que há muito merecia esse reconhecimento”, declarou o cônsul português.
A conferência, inicialmente apresentada em inglês e em português, teve a assistência `online` de dezenas de pessoas e pelo menos duas turmas de estudantes nos Estados Unidos.
Entre as entidades envolvidas na promoção da Conferência de Literatura Portuguesa destacam-se o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e da Universidade de Massachusetts de Boston.
[Transcrição integral de despacho de autoria da agência brasiLusa publicado no site da RTP em 22.10.21.
Destaques, “links” e sublinhados meus. Corrigi o misto de cacografia brasileira
e ortografia portuguesa do artigo original. Acrescentei imagens. Imagem de topo de: Trip Advisor]