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O impasse

Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando absente,
Não sente mais que a pena das lembranças,
Porque, inda mais que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.

Mas triste de quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.

Luís de Camões


No texto da noticia abaixo transcrita há uma construção frásica verdadeiramente significativa porque retrata na perfeição o estado a que chegou o AO90: «o “impasse” do acordo ortográfico». Até as comas em “impasse”, abençoado francesismo, contêm um peso que em toneladas excede a aparente leveza de um simples sinal gráfico.

É esta, portanto, a conclusão principal da «décima Conferência de Literatura em Língua Portuguesa» que «decorreu de forma virtual, com o título “Em que português nos entendemos?”» e que foi «organizada pela Coordenação do Ensino Português nos EUA (CEPE-EUA) e pelo Centro de Língua Camões na Universidade de Massachusetts, na cidade norte-americana de Boston.»

Bem podem os acordistas e assimilados tentar agora retorcer a evidente realidade que os conferencistas tão cirúrgica e racionalmente sintetizaram; não se trata de mero lapsus linguae, como poderão alguns alegar com desespero, trata-se de uma singela, simples, esmagadoramente óbvia constatação: trinta anos depois da sua invenção e uma década após a sua imposição selvática, o “acordo ortográfico de 1990” está num impasse.

Pois sim, pois está, já cá se sabia, mas não deixa de ser algo gratificante verificar que o mesmo facto é partilhado por gerações sucessivas de compatriotas nossos, em Portugal, a todos os níveis, e também no estrangeiro, entre as comunidades portuguesas.

São aliás eles mesmos, os nossos emigrantes e os seus filhos e netos, aqueles a quem o aleijão cacográfico mais objectivamente afecta, já que é precisamente a Língua Portuguesa o laço mais perene que os liga — entre si e com a sua terra — e a mais poderosa marca histórica e patrimonial que os define, que os distingue e que é em absoluto a sua identidade. Com as inerentes e naturais diferenças nos diferentes “falares”, preservar na íntegra a escrita — consagrada não apenas pelo uso como também, ou sobretudo, pela razão que a suporta — é um dever incontornável, imune a considerações, tergiversações e invenções absurdas.

«Respeitar essas diferenças, reconhecê-las e aceitá-las», ao invés do que alguns pretendem, não depende de forma alguma de quaisquer teorias supremacistas; a Língua Portuguesa, como qualquer outra, não está nem pode estar sujeita a ascendente territorial, poderio económico ou “número de falantes”.

Respeitar as diferenças, assim como reconhecer as evidências, implica necessariamente aceitar que umas e outras são tão válidas como é inadmissível a sua negação. Isto, de tão claro e transparente, não tem nada de radical, tem tudo de racional.

Não existe o que mais discutir, portanto. O impasse a que de facto se resume o AO90, hoje em dia, não passa de um hiato, espécie de velório macabro em que os circunstantes, já comatosos pelo aborrecimento, aguardam com impaciência que a provação acabe e se enterre de uma vez por todas o ruim defunto.

Inclusão linguística e diversidade do português defendida por lusófonos nos EUA

www.rtp.pt/, 22.10.21

 

Especialmente promovida para uma audiência lusófona nos Estados Unidos da América (EUA), a décima Conferência de Literatura em Língua Portuguesa decorreu de forma virtual, com o título “Em que português nos entendemos?” e foi organizada pela Coordenação do Ensino Português nos EUA (CEPE-EUA) e pelo Centro de Língua Camões na Universidade de Massachusetts, na cidade norte-americana de Boston.

A diversidade é fonte de “dinâmica”, disse o escritor brasileiro e diplomata João Almino, membro da Academia Brasileira de Letras, acrescentando que todos podem “enriquecer” com o diálogo entre as diferenças e sublinhando que “o que ameaça a língua é a paralisia“.

Professor universitário e autor de diversos romances e volumes de ensaios sobre literatura e sobre história e filosofia política, João Almino disse que o português “é muito diverso de um lugar para outro e nós devemos respeitar essas diferenças, reconhecê-las e aceitá-las do ponto de vista gramatical ou sintáctico“.

Defendendo que os escritores, originários de qualquer parte do mundo, devem ter “liberdade” para “incorporar” as suas vivências e cultura na mesma língua portuguesa, João Almino acrescentou: “E quando eu leio, por exemplo, um escritor africano, eu quero sentir o sabor da língua da África, daquele lugar”.

A escritora cabo-verdiana Maria Augusta Teixeira, também conhecida como Mana Guta, defendeu que é da responsabilidade e da “militância” dos escritores, que são os que “estão sempre na vanguarda” de soluções, “recuperar a memória oral” cultural de cada país para uma “forma perene”, com a transcrição das histórias para livros.

A presidente da Assembleia Geral da Sociedade Cabo-verdiana de Autores e vice-presidente da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social considerou estar numa posição, em Cabo Verde, de “juntar as pontas soltas” das duas línguas no país insular, português e cabo-verdiano ou crioulo.

Mana Guta, também gestora pública e professora universitária, defendeu “sair da dicotomia: porque nós temos crioulistas e lusofonistas em Cabo Verde. A minha postura é juntar as pontas soltas, precisamos das duas línguas“.

Para Lídia Jorge, autora portuguesa de 26 obras e distinguida com numerosos prémios portugueses e internacionais, mais do que diferenças, as identidades são também formadas por contrastes, inclusive em Portugal.

“Eu fiquei profundamente marcada por um país que era pobre, de estender a mão, mas que queria ser ao mesmo tempo um país que dominava uma vasta zona do mundo”, disse a professora, que já ensinou em Portugal, Angola e Moçambique e é membro do Conselho de Estado, órgão político de consulta presidencial.

Entre outros assuntos, foram discutidos o “impasse” do acordo ortográfico e as abordagens sobre o “fim do mundo” na literatura, com os três autores a concordarem que, de uma maneira ou outra, o mundo está “num momento de transição” ou de “quase fim do mundo”, por causa da crise sanitária mundial provocada pela pandemia de covid-19 desde início do ano passado.

Na apresentação da conferência, o cônsul-geral de Cabo Verde em Boston, Hermínio Moniz sublinhou que “mais do que nunca, precisamos de inclusão linguística, porque a língua é uma arma muito poderosa“.

O tema da língua e construção de identidades é, para o cônsul-geral do Brasil em Boston, Benedicto Fonseca Filho, “vastíssimo” e “abre tantas possibilidades (…), como relações de poder ou papel das migrações”.

João Pedro Fins do Lago, cônsul-geral de Portugal em Boston, destacou que a conferência “tripartida” e multicultural, no seu décimo aniversário, decorreu numa nota “positiva de inclusão e de reconhecimento do papel da mulher na literatura”, com a atribuição do Prémio Camões à escritora moçambicana Paulina Chiziane.

“É com imensa satisfação e com imenso orgulho que vimos um prémio tão importante ser atribuído a uma mulher, a uma mulher africana, a um vulto da literatura lusófona, que há muito merecia esse reconhecimento”, declarou o cônsul português.

A conferência, inicialmente apresentada em inglês e em português, teve a assistência `online` de dezenas de pessoas e pelo menos duas turmas de estudantes nos Estados Unidos.

Entre as entidades envolvidas na promoção da Conferência de Literatura Portuguesa destacam-se o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e da Universidade de Massachusetts de Boston.

[Transcrição integral de despacho de autoria da agência brasiLusa publicado no site da RTP em 22.10.21.
Destaques, “links” e sublinhados meus. Corrigi o misto de cacografia brasileira
e ortografia portuguesa do artigo original. Acrescentei imagens. Imagem de topo de: Trip Advisor]

Moçambique maningue mahala

Nos próximos quatro anos, Moçambique vai investir 50 mil milhões de dólares no desenvolvimento de um projeto de gás natural que visa tornar o país um dos cinco maiores produtores mundiais. Paranyu Pithayarungsarit ["Expresso"]

«Nos próximos quatro anos, Moçambique vai investir 50 mil milhões de dólares no desenvolvimento de um projecto de gás natural que visa tornar o país um dos cinco maiores produtores mundiais.» Paranyu Pithayarungsarit [“Expresso”]

«Mozambique has commercially important deposits of coal (high quality coking coal and thermal coal), graphite, iron ore, titanium, apatite, marble, bentonite, bauxite, kaolin, copper, gold, rubies, and tantalum.»
«Mozambique holds some of the world’s largest untapped coal deposits.  Vale of Brazil has made major investments in their coking coal mine.  Their first coking coal shipments were in 2011. Vale, through its participation in the Northern Corridor Development (CDN) consortium, has refurbished the Nacala rail line, which runs through parts of Malawi to the deep-water Port of Nacala.» «Opportunities for the provision of coal mining equipment and railway logistics and equipment exist.  Given the expectation that mining costs in South Africa will rise considerably over the coming years, Mozambique could gain a regional competitive advantage.»
«Two large investment projects focused on the mining and processing of heavy sands deposits are moving forward.  The Moma Heavy Sands (Kenmare Resources) and Corridor Sands (BHP Billiton) projects together will require more than USD1 billion in investment.»
«Mozambique’s mineral potential is largely untapped.  Gold deposits in Niassa, Tete, and Manica Provinces have attracted domestic and international investor interest in recent years.  Gold mining has been slow to develop as most of its activities are done by informal artisanal miners.  However, increasing regulation of gold mining may lead to larger scale production, as the Government begins to require miners to formalize their legal status.  Xtract Resources recently acquired a gold mining concession with estimated reserves of 2.97mnoz.  Gold industry production is forecasted to grow 1.1% annually from 2016 to 2020 [“Privacy Shield”]

 

Do repasto não constam “apenas” os diamantes e o petróleo de Angola; outro petisco será montar um entreposto comercial em Macau para assaltar o gigantesco mercado chinês; e por sobremesa, para acamar, pretendem inaugurar em Portugal uma porta dos fundos para acesso livre à União Europeia e para penetrar no mercado europeu como parceiro comunitário. Os objectivos geoestratégicos brasileiros, cavalgando uma farsa (a CPLP) e sob o disfarce da “difusão e expansão da língua” brasileira (o AO90), visam também as riquezas e recursos naturais de Moçambique.

No caso desta última “frente”, o assalto ao gás natural, ao ouro, ao cobre e a outros minérios está já em marcha. 

Tanto Moçambique como Angola não ratificaram o expediente (RAR 35/2008) que determinou serem suficientes três assinaturas dos oito Estados-membros da CPLP para tornar automaticamente obrigatória a entrada em vigor do AO90 em todos os oito. Assim, a partir do momento em que o Brasil (pois claro) assinou, em 2004, e conseguiu — sabe-se lá por que bulas — forçar Cabo Verde, em 2005, e São Tomé, em 2006, a assinar também, então a partir desse momento o dito AO90 entrou em vigor — “legalmente”, obrigatoriamente, compulsivamente — também em Angola, em Moçambique, em Timor e na Guiné-Bissau. Nem mesmo os próprios governantes moçambicanos, angolanos, timorenses e guineenses fazem a menor ideia de que nos seus países entrou em vigor uma imposição do Estado brasileiro e de meia dúzia de gulosos tugas. Foi para amaciar esta violência, aliás, que Portugal juntou-se ao Brasil e às ilhas africanas, em 2008, e assinou também; eis, em suma, a acepção definidora daquilo em que consiste o conceito de “cobertura política”…

Portanto, é natural que agora, quando se reúnem o Presidente e o Primeiro-Ministro portugueses com um suplente do Governo brasileiro, os moçambicanos sofram repentinos ataques de estupefacção: “mas o que diabo vem a ser isto?”, interrogam-se; “mas o que nos querem estes madala?”

 

CPLP: Analistas moçambicanos consideram que organização não tem impacto na sociedade

 

www.voaportugues.com, JWilliam Mapote

 

MAPUTO — Vinte e cinco anos depois da criação da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa, com nove Estados membros distribuídos por quatro continentes e unidos língua portuguesa. Analistas moçambicanos olham para os propósitos iniciais e não vêem impacto da sua acção na sociedade.

Dário Camal, especialista em assuntos internacionais, diz haver “uma crise de subjectividade e legitimidade da CPLP, por isso o seu impacto, neste momento, não é sentido”.

Na opinião dele os Estados membros focam-se mais nas suas organizações regionais.

“Se olharmos para Moçambique e Angola, focam-se mais na SADC, porque é aqui que nos afecta, é com os nossos parceiros de fronteira que fazemos negócio e vivemos o dia-a-dia”, sinaliza.

A concertação político-diplomática entre os membros, para reforçar a significância no cenário internacional, é um dos principais objectivos.

Mas mesmo aí, a radiografia não é muito positiva quanto podia.

Do lado da sociedade civil, a avaliação não foge à regra.

A CPLP está aquém do que podia ser, em termos de potencialidades, na leitura do investigador e activista social Borge Nhamirre, para quem o nó de estrangulamento está nas lideranças.
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No doubt about it

O que tem a ver com o AO90 um texto sobre a Língua Inglesa escrito por um russo em Inglês?

Bom, tem tudo a ver. Qualquer semelhança entre este argumentário sólido e as tretas acordistas é mera coincidência, bem entendido, seguindo o autor uma linha de raciocínio coerente (e inteligível) que radicalmente difere do discurso errático, polvilhado com “inverdades” escabrosas, que é típico do paleio de Malaca, Bechara, Reis, Canavilhas e outros portadores de mitomania.

E se quanto a semelhanças estamos conversados, já no que diz respeito a diferenças temos apenas esta: não existe a mais leve referência a ortografia. Nem explícita nem implicitamente. Nem claramente expressa nem vagamente aflorada.

O que faz todo o sentido, evidentemente. Tratando-se de anglofonia, falando-se de países anglófonos, analisando-se a (real, efectiva) difusão e expansão da Língua Inglesa, a “questão ortográfica” jamais ocorreria sequer a qualquer anglófono: a ortografia do Inglês permanece intocada há séculos. Aliás, por alguma razão é essa e não outra, hoje em dia e desde há séculos, a única língua-franca universal.

Afinal, vendo bem, este texto tem tudo a ver porque não tem nada a ver.

 

The English Language No Longer Belongs to Britain and America»

Brits and Americans No Longer Own English

By Leonid Bershidsky
“Bloomberg”, 02.03.19

 

The Brexit circus and the unpopularity of President Donald Trump are causing apprehension about the future of the Anglosphere, the cultural, intellectual and political influence of the core English-speaking nations: Britain and the U.S.

As a non-native English speaker who works in the Anglosphere, though, I’m not worried about that; Americans and Brits are merely facing increasing competition from within their accustomed domain rather than from without.

The English language, which has just 379 million native speakers, is spoken at a useful level by some 1.7 billion people, according to the British Council. That has long ensured that U.S. and U.K. voices are heard louder than any others.

There is no indication that the language’s popularity is declining despite the recent damage to the two countries’ soft power. Last year, the British Council forecast that the number of potential learners in Europe will decline by 8.8 percent, or some 15.3 million, between 2015 and 2025. Brexit has nothing to do with this: the expansion of English teaching at schools is expected to cut demand for the organization’s courses. Overall, the market for English in education is predicted to grow by 17 percent a year to reach $22 billion in 2024. That, in large part, is thanks to insatiable demand in Asia.

I learned it in the Soviet Union. I have to admit I did it because of British and U.S. soft power: I wanted to understand rock song lyrics, watch Hollywood movies in the original, and read books that weren’t available in translation. But that wasn’t the reason high-quality instruction was available to me in Moscow in the 1980s: English was the adversary’s mother tongue. Russian President Vladimir Putin is no fan of the U.S. or the U.K., but he has learned their language well enough to speak to other foreign leaders without a translator.

It’s impossible to avoid: 54 percent of all websites are in it. The next most widespread language is Russian, with 6 percent. The most popular translation requests on Google all involve English. The global academic community speaks it, and not just because U.S. and U.K. universities are important: If they all closed tomorrow, scholars would still need a common tongue, and they aren’t going to vote to adopt another one.

Nor will the global political community. The European Union is a case in point: After Brexit, English could lose the status as one of the bloc’s working languages because no remaining members use it officially. Yet the legal departments of all the EU governing bodies have agreed that it can retain its status on the rather thin argument that it’s used in Irish and Maltese law. It’s also the lingua franca for all the Eastern European officials who have never learned French or German. Even after Brexit, it will share with German the status of the most widely spoken language in the EU – that is, as long as one takes into account non-native speakers.

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Missão omissão

Então, sem ruído, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, à luz de duas velas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pai: e na face que ergueu, envelhecida e lívida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.

– Estou a escrever, disse ele.

Esfregou as mãos, como arrepiado da friagem do quarto, e acrescentou:

– Amanhã cedo é necessário que o Vilaça vá a Arroios… Estão lá os criados, tenho lá dois cavalos meus, enfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É número 32 a casa dele, não é? O Teixeira há de saber. Boas noites, papá, boas noites.

No seu quarto, ao lado da livraria, Afonso não pôde sossegar, numa opressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silêncio da casa e do vento que acalmara, ressoavam por cima lentos e contínuos os passos de Pedro.

A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo – quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava no tapete, Afonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.

‘Os Maias’, cap. II, 37/519

 

Não me refiro ao facto de não haver naquele epistolar “apelo” uma única referência, uma só alusão ao “acordo”, ainda que metafórica ou elíptica, se bem que essa espécie de “lapso”, essa tão ruidosa omissão merecesse — sem necessariamente chegar a extremos de palmatoadas mentais — alguma espécie de reparo.

Mas deixemos isso, por enquanto.

O caso agora é que… bálhamedeus!

Vês como respira?“, pergunta ele ao coitado do aluno.

“Não, não vejo”, responderia o pobre catraio, aposto, bocejando, se porventura alguém o fosse chatear lendo a cartinha.

Eh, pst, ó Afonso, pá, olha, este tipo de “abordagem”, escorrendo o visco paternalista e condescendente que tipifica a infantilidade moderninha, decididamente, não funciona com a garotada. Não funciona, aliás, com ninguém, use ou não use calções, tenha já ou ainda não largado os cueiros.

E “calhamaço”, caneco, dizes tu, rapaz, na tua missiva à rapaziada, sobre o livro de teu tetravô Eça. Bálhamedeus, repito. Correr ‘Os Maias’ assim, à matroca, dar-lhe roda de “calhamaço”, bem, essa foi cruel, essa foi demasiadamente muito, irra, essa foi de escachar! Eça não merecia essa, digo eu, sem trocadilhos foleiros, que ninguém merece.

E ainda, dizes, “obras como Os Maias e escritores como o Eça de Queiroz dão-te armas para o futuro“. Ui. Nem me lo digas! Armas? Quais armas, quais cacete, santinho!? Mas que ideia tão desnecessariamente marcial, mas que “imagem” tão fatela! Isso das “armas para o futuro” tresanda a “5.ª emenda”, man, lembra a NRA e cromos como Charlton Heston (iach!) ou, horror dos horrores, Chuck Norris (blherrgh!).

Bem sei tratar-se o armamento de simples metáfora (ah, metonímia? Ok, atão vá, metonímia), mas sucede com a Literatura  precisamente o inverso, Afonso, e por maioria de razões é a escrita de Eça, em geral, coisa de paz, e em particular ‘Os Maias’ — paz celestial, oh, doce remanso do sonho vigil, em recato impúdico a pura delícia do sossego absoluto!

Era teu tetravô José Maria (tetravô, notarás, não tretavô) então o mesmo jovem que ainda hoje, aos 130 anos, desmonta elegantemente do seu dog cart, entra em tua casa estugando o passo e assesta em ti o seu monóculo, já rebrilhante, mordaz, faiscando de curiosidade. A escrita desse eterno jovem, jovem, é pura magia, colhe e prende e arrebata — precisamente — pelo fascínio do conforto, o engodo da “verve” escorreita que acolhe numa atmosfera repousante o mais irrequieto dos espíritos. Ou seja, dos velhos de todas as idades entre os 13 e os 130.

Mas que chorrilho de vulgaridades, raios, quero dizer, até um puto sabe disto.

Está, por conseguinte, muito mal formulada a questão, essa bipartida pergunta fraquinha, fraquinha: “Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?

Pois sim, pois respira. Mas não, não precisa de garoto algum para sobreviver. Não cabe pedir aos ganapos  seja o que for. Se querem ler, lêem. Se não querem, não lêem.

E se não quiserem, eles é que ficam a perder. Nisso estás tu, jovem, carregadinho de razão; menos mal, salva-se o final.

Carta ao aluno que não lê “Os Maias”

Sílvia Souto Cunha
visao.sapo.pt, 06.12.18

O escritor Afonso Reis Cabral, trineto de Eça de Queirós, escreveu para a VISÃO uma carta aos estudantes sobre o “calhamaço” publicado há 130 anos e ensinado nas nossas escolas. “Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?”

O calhamaço que te obrigam a ler na escola está velho. Foi escrito há 130 anos (imagina a tua vida multiplicada por oito), é pois natural que te pareça demasiado pesado, um cadáver de papel do qual queres livrar-te o mais rapidamente possível. Mas atenção, tem calma. Pega-lhe com cuidado, sopesa-o na palma da mão como o telemóvel do qual dependes.

Vês como respira? Como precisa de ti para sobreviver?

Eu sei: a obrigação pesa. Só o facto de te meterem o livro à frente, de o analisarem contigo; pior, de o limitarem àquele tipo de estudo muito vazio que visa o exame, só isso já te estraga a vontade. A mim também estragou. Mas repara: o Eça não tem culpa de o submeterem à burocracia do ensino, de o terem posto nessa camisa de forças, e de te obrigarem a ti, que tens mais que fazer, a acatar ordens. Pensa que ele não escreveu para ti. Quer dizer, para te estragar a vida. Muito pelo contrário.

Talvez por te sentires encurralado, preferes trocar apontamentos nos corredores, pedir os esquemas ao idiota útil que até conseguiu ler a obra toda, ou, mais simples, talvez te decidas pelos primeiros cinco resultados no Google. Estes falam das características físicas e psicológicas das personagens, dão-te tabelas com datas, citações, resumos de cada capítulo, expõem a biografia do Eça – esse escanzelado de monóculo –, explicam a analepse inicial, sempre gigantesca, mostram laivos da vida no século XIX, e descrevem o virar do Romantismo para o Realismo. Mas que te interessa a ti como viviam as pessoas daquela época? De facto, concluis tu, só um parvo pode achar que este livro tem qualquer interesse.

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«Terraplanar a língua» [Nuno Pacheco, “Público”, 15.11.18]

«Não interessa aqui o discurso do bom selvagem nem o da inutilidade da educação ou do progresso, ambos falsos. Interessa, sim, a noção de desajuste. Porque mesmo a mais avançada das tecnologias deve, ao ser aplicada, ter em conta a comunidade a que se destina. Porque é inegável a importância da diversidade.» [Nuno Pacheco]

Aprenderemos alguma coisa com os índios?

Em lugar de darmos livre-trânsito às novas variantes do português, alguém teve a péssima ideia de terraplanar a língua, fingindo unidade onde ela não existe nem pode existir.

Nuno Pacheco
“Público”, 15 de Novembro de 2018

 

Ainda temos alguma coisa a aprender com os índios? Parece que sim. No IV congresso de Cooperação e Educação, que se realizou há uma semana no ISCTE, ficaram no ar duas interessantes declarações acerca de África e do modo como o Ocidente lida globalmente com ela. Uma, é o erro de olhar o continente como se fosse um país. Disse-o o guineense Geraldo Indeque, ao lembrar que às vezes chegam à Guiné-Bissau soluções já testadas noutros países para aplicar ali, cegamente, sem cuidar das especificidades locais. “Como se África fosse um só [país], guineenses ou angolanos, tudo o mesmo.” Deve haver uma gaveta chamada “África” de onde vão tirando os planos, sem olhar bem aos destinatários. E isto é válido para o Banco Mundial ou para tantas instituições de tantas espécies. Erro: ao ajudar “os africanos” não alteram nada em termos gerais e estão a falhar no particular.

Outro exemplo foi dado pelo angolano Filipe Zau. Para mostrar que nem tudo se aplica em todo o lado, sem olhar às características particulares de cada povo ou de cada cultura, recordou uma carta antiga, enviada por chefes índios aos governantes de dois estados norte-americanos, Virgínia e Maryland, na sequência de um tratado de paz. Os índios tinham enviado alguns dos seus “bravos” para estudar com os “caras-pálidas” (para usar a linguagem do faroeste, disse Zau), estes regressaram às tribos e depois a proposta renovou-se: queriam eles enviar mais alunos? A resposta, já reproduzida muitas vezes em livros e na internet, por ter sido à data divulgada por Benjamim Franklin (1706-1790), diz o seguinte: “Estamos convencidos (…) que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa. (…) Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltaram para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens.”

Não interessa aqui o discurso do bom selvagem nem o da inutilidade da educação ou do progresso, ambos falsos. Interessa, sim, a noção de desajuste. Porque mesmo a mais avançada das tecnologias deve, ao ser aplicada, ter em conta a comunidade a que se destina. Porque é inegável a importância da diversidade.

Ora, o que se aplica a África aplica-se à língua. Não por acaso, a banca de livros exposta no ISCTE, nos dias do congresso, tinha um dístico a dizer “Literatura Afrikana”, com K. Pode parecer estranha tal deformação gráfica, mas é preciso entendê-la como afirmação de independência cultural, em especial de Angola. Zau disse que o seu nome seria Nzau (“elefante” em kikongo, que por cá se escreve quicongo), mas a ortografia portuguesa não lhe permite usar as duas vogais no início da palavra. É verdade, não permite. Porque em lugar de darmos livre-trânsito às novas variantes do português, estudando-as e fixando-as, deixando que cada país estabeleça a sua norma sem necessariamente quebrar os laços com a raiz, alguém teve a péssima ideia de terraplenar a escrita “à bala”, com um “acordo ortográfico” que não é acordo (porque lhe falta ser ratificado por metade dos países abrangidos) nem é ortográfico (porque veio destruir as regras mais elementares da ortografia) e que finge unidade onde ela não existe nem pode existir.

O que Indeque e Zau vieram dizer, com tais exemplos, é que a diversidade dos países deve ser respeitada naquilo que lhes compete. Angola, na escrita, afirma-se pelo K? Estará aí uma característica ortográfica angolana? Que se estude e fixe, se tal fizer sentido, sem a generalizar. Mas é a Angola que cabe a escolha, não a comités “internacionais”. Talvez esteja aí o princípio das autonomias de cada país no universo plural da língua portuguesa.

Nuno Pacheco

[“Público”, 15 de Novembro de 2018. “Links” e destaques meus.]

Imagem de topo: “Pedra de Dighton” (Wikipedia). Di Professor Edmund Delabarre – Professor Edmund Delabarre http://www.dightonrock.com/articles_dighton_rock.htm, CC BY-SA 2.5, Collegamento