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10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e da Língua Portuguesa

Eis aqui, quási cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela antão os íncolas primeiros.

Desta o pastor nasceu que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja fama ninguém virá que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.
Esta, o Velho que os filhos próprios come,
Por decreto do Céu, ligeiro e leve,
Veio a fazer no mundo tanta parte,
Criando-a Reino ilustre; e foi destarte:

Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,
Que fez aos Sarracenos tanta guerra,
Que, por armas sanguinas, força e manha,
A muitos fez perder a vida e a terra.
Voando deste Rei a fama estranha
Do Herculano Calpe à Cáspia Serra,
Muitos, pera na guerra esclarecer-se,
Vinham a ele e à morte oferecer-se.

Luís Vaz de Camões, “Os Lusíadas” (Canto III – estâncias 20 a 23)

Eu el-rei faço saber aos que este alvará virem que eu hei por bem e me praz dar licença a Luiz de Camões para que possa fazer imprimir, nesta cidade de Lisboa, uma obra em oitava rima chamada Os Lusiadas, que contém dez cantos perfeitos, na qual por ordem poética em versos se declaram os principais feitos dos portugueses nas partes da Índia depois que se descobriu a navegação para elas por mandado de el-rei D. Manuel, meu visavô, que santa glória haja, e isto com privilégio para que em tempo de dez annos, que se começarão do dia que se a dita obra acabar de imprimir em diante, se não possa imprimir nem vender em meus reinos e senhorios nem trazer a eles de fora, nem levar às ditas partes da Índia para se vender sem licença do dito Luiz de Camões ou da pessoa que para isso seu poder tiver, sob pena de quem o contrário fizer pagar cinquenta cruzados e perder os volumes que imprimir, ou vender, a metade para o dito Luiz de Camões, e a outra metade para quem os acusar. E antes de se a dita obra vender lhe será posto o preço na meza do despacho dos meus Desembargadores do paço, o qual se declará e porá impresso na primeira folha da dita obra para ser a todos notorio, e antes de se imprimir será vista e examinada na meza do conselho geral do santo oficio da Inquisição, para com sua licença se haver de imprimir, e se o dito Luiz de Camões tiver acrescentados mais alguns cantos, também se imprimirão havendo para isso licença do santo oficio, como acima é dito. E este meu alvará se imprimirá outrosim no princípio da dita obra, o qual hei por bem que valha e tenha força e vigor, como se fosse carta feita em meu nome, por mim assinada, e passada por minha Chancelaria, sem embargo da ordenação do segundo livro, titulo XX, que diz que as cousas cujo efeito houver de durar mais que um anno, passem por cartas, e passando por alvarás não valham. Gaspar de Seixas o fiz em Lisboa a 24 dias do mês de Setembro de MDLXXI.»

Os Lusíadas/Alvará Régio da Edição de 1572

Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusiadas de Luis de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Asia & Europa, e não achey nelles cousa algűa escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes, somente me pareceo que era necessario aduertir os Lectores que o Autor pera encarecer a difficuldade da nauegação & entrada dos Portugueses na India, usa de hűa fição dos Deoses dos Gentios. E ainda que sancto Augustinho nas sas Retractações se retracte de ter chamado nos liuros que compos de Ordine, aas Musas Deosas. Toda via como isto he Poesia & fingimento, & o Autor como poeta, não pretende mais que ornar o estilo Poetico não tiuemos por inconueniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por tal, & ficando sempre salua a verdade de nossa sancta fe, que todos os Deoses dos Gentios sam Demonios. E por isso me pareceo o liuro digno de se imprimir, & o Autor mostra nelle muito engenho & muita erudição nas sciencias humanas. Em fe do qual assiney aqui.Frei Bertholameu Ferreira.

Os Lusíadas/Parecer do censor do Santo Ofício na edição de 1572

Nota: procurei, confesso que de forma algo desesperada, um vídeo em que se pudesse ouvir uma leitura decente de alguma estância ou canto de “Os Lusíadas”. Miseravelmente, aliás como é costume quando se procura alguma coisa em Português na internet, só esbarrei em vídeos feitos por brasileiros, logo, falados em brasileiro. Este post vai assim mesmo, portanto, sem vídeo. Era só o que mais faltava, estar agora a levar com brasileiradas no Dia da Língua Portuguesa; já bastam os outros 364.

[Imagem de topo de: “Get Lisbon“.]

“Whiskas saquetas”, Margarita

Ora, para alguém que está enterrada até acima do pescoço, ao serviço dos interesses brasileiros, na profissão de demolição da Língua Portuguesa, isto é doentio, é grave, é de facto uma patologia mental. [post “Margarita no sofá“]

E cá está ela novamente, desta vez aproveitando a boleia de uma moçambicana “ligeiramente” anti-portuguesa. Aliás, o tom sinistro de indisfarçável lusofobia perpassa pela verborreia de ambas estas mulheres com uma subtileza equivalente ao bocejo do hipopótamo.

De entre o chorrilho de enormidades, para não variar do seu estilo carroceiro, a “presidenta” do IILP esparrama nesta “local” do DN, por entre inúmeras passagens com a escova da bajulação ao Itamaraty, as suas “ideias” para que (ainda) mais fácil e rapidamente o seu querido Brasil tome conta disto tudo, de uma vez por todas. Parece um ‘cadinho aborrecida, porém, dado o facto — para ela, de todo intolerável — que Moçambique (além de Angola, como sabemos) ainda não tenha “adotado” o Brasileiro como língua oficial.

E que e que e que, blábláblá, Whiskas saquetas. Todo o palavreado do artigo, de cabo a rabo, é absolutamente insuportável. Transcrever esta abjecta porcaria já foi sacrifício suficiente, seja pelas alminhas, não vou agora citar ou destacar pedaços da asquerosa prosa, livra, que nojo.

Ora aqui está um caso flagrante em que se aplica o aforismo sobre a melhor forma de pegar num pedaço de esterco pelo lado limpo. Quem for capaz de tal proeza, pois então faça o favor de ler. Não se aprende nada, evidentemente, mas convém munir-se a gente de pelo menos alguns conselhos sensatos, como o de Sun Tzu (543-495 a.C.): “Keep your friends close and your enemies closer”.

A descolonização da língua portuguesa

Margarita Correia
29 Maio 2023

O discurso de Paulina Chiziane aquando da entrega do Prémio Camões desencadeou notícias e ondas de choque nas redes sociais, provando a importância e o impacto dos temas que abordou, que são daqueles que mexem com as pessoas e carecem de análise e discussão. Não pude ouvir o discurso em directo e não o encontrei na Internet; é no que vou lendo e na minha experiência que baseio a reflexão que aqui trago. Ao falar da necessidade de descolonizar a língua portuguesa, a autora deu exemplos da descrição de conceitos ligados à vivência africana recebiam em dicionários de língua. Ainda que o tópico seja relevante e preocupação constante de fazedores de dicionários e boas editoras, a questão da descolonização da língua não se circunscreve a esta espuma linguística e é bem mais funda.

O Brasil foi a primeira colónia a tornar-se independente, em 1822, em condições muito especiais. O processo de descolonização da língua portuguesa tem decorrido no país, mas não estará completamente concluído, segundo alguns – e.g. a norma escrita culta, especialmente a do mundo das apostilas para exames, parece estar desfasada e ainda muito dependente da norma portuguesa. Pela sua dimensão, o Brasil é hoje uma superpotência em termos de produção e edição (literária, científica, pedagógica, noticiosa, etc.), feita na sua própria variedade nacional, a variedade brasileira do português. O Brasil tem os seus próprios dicionários, gramáticas, pensamento linguístico, a sua terminologia, instituições reguladoras, investimentos na área, as suas política e planificação linguísticas mais ou menos claras. Pode fazer melhor? Pode, sim, mas a verdade é que faz muito, não depende dos demais estados de língua portuguesa e não surpreende a preponderância que tem vindo a ganhar no nosso espaço. A situação de Portugal a este nível pode ser explicada pela pequena dimensão do país, o proverbial atraso educativo que tem vindo a ser debelado nas últimas décadas, mas também pela falta de políticas e planificação linguística adequadas, pelos compromissos com a UE (e.g. a bibliometria) e, lastbutnotleast, pela mania de sermos “geneticamente poliglotas” e “falarmos bem estrangeiro”.

Foram os países africanos de língua portuguesa que tomaram a decisão de a adoptar como língua oficial (de estado, administração, ensino) e também de unidade nacional; lideranças de movimentos de libertação e elites desses países fizeram a sua formação em português, muitas em Portugal; a adopção da língua resultou, assim, em factor de discriminação entre os cidadãos desses países que a domina(va)m e os que não. Em Timor-Leste, a língua portuguesa foi entendida também como factor de identidade nacional; a sua adopção em 2002 deixou de fora os jovens que, à data, haviam sido escolarizados em língua indonésia.
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SPA – Dia do Autor português em Português

A Sociedade Portuguesa de autores não assume posição pública sobre a questão do Acordo Ortográfico porque entre os seus mais de 26 000 associados há autores que lhe são favoráveis e autores que liminarmente o renegam por o considerarem errado e totalmente desligado da realidade linguística lusófona. No entanto, a SPA considera que este assunto foi erradamente conduzido pelos vários Estados lusófonos, com destaque para o português que não efectuou qualquer consulta às entidades que legitimamente se poderiam ter pronunciado sobre o assunto, designadamente a própria SPA, o Pen Clube e a Associação Portuguesa de Escritores, entre outros. Só por este motivo a SPA sempre se considerou excluída deste debate e de qualquer escrutínio que envolvesse o assunto. Apesar disso, a SPA promoveu em Janeiro de 2013, um acto de consulta aos seus associados, que representam todas as disciplinas criativas que a instituição abarca e obteve o seguinte expressivo resultado: 145 autores manifestaram-se contra o Acordo Ortográfico e 23 a favor. Legitimado por esta votação, o Conselho de Administração da SPA decidiu que o Acordo Ortográfico nunca seria respeitado na regular produção de textos da instituição, que continuou a reger-se pela norma antiga, sem qualquer abertura às novas regras que poderiam decorrer da vigência do Acordo Ortográfico. Agindo desta forma, a SPA respeita e honra a vontade da significativa maioria dos que se pronunciaram. Entretanto a evolução deste assunto na comunidade lusófona veio demonstrar que não existe margem para outra forma de procedimento e que foram os próprios países que têm português como língua oficial que se encarregam de neutralizar o Acordo Ortográfico e de o excluir da nossa realidade linguística e comunicacional, não obstante as formas de obrigatoriedade geradas pelo sector editorial, sobretudo em relação ao livro escolar e infanto-juvenil, que deverão ser respeitadas sempre que os autores as aceitem.

Nos restantes casos, o Acordo Ortográfico é respeitado e levado à prática sempre que a vontade dos autores se manifeste nesse sentido, enquanto se aguarda que o assunto seja definitivamente encerrado ao nível das relações entre Estados, envolvendo necessariamente países como Angola e Brasil, para além de Portugal, devido à sua dimensão demográfica e à sua expressão cultural internacional. Só se deve pôr de acordo aquilo que justifica e legitima esse acordo. A SPA continua, nos seus documentos, a não se reger por um acordo que mostrou ser insustentável.

José Jorge Letria
(Presidente da Direcção)

Artigo publicado na 1º edição da “Sem Equívocos”.

«Atrás dos tempos vêm tempos» [Ana Cristina Leonardo, “Público” 31.03.23]

Atrás dos tempos vêm tempos

Ana Cristina Leonardo

“Público”, 31.03.23

Se o mais provável; à medida que envelhecemos, é vermos aumentar o desajuste entre nós e mundo — escrevo provável, não inevitável — existem acontecimentos ou factos ou realidades que nos ilibam da acusação de “velhos do Restelo”, essa figura camoniana de um pessimismo “só de experiência feito”, talvez injustamente desamada.

Relembremos Billy Wilder, o homem que ao realizar Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) ou Avanti (Amor à Italiana, 1972) terá feito mais pela liberalização dos costumes do que os três longos dias de pândega em Woodstock.

Apesar disso, diria ele, cumpridos os seus setenta anos: “They say Wilder is out of touch with his times. Frankly, | regard it as a compliment. Who the hell wants to be in touch with these times?”

Mais perto de nós, infelizmente também morto, Leonard Cohen, embora sem se congratular por ter estado alguma vez em dessintonia com os tempos, nem por isso deixaria de cascar no movimento hippie seu contemporâneo, numa entrevista que deu ao crítico João Lisboa corria o ano de 1994: “Depois apareceram os hippies que não me interessaram, sobretudo quando começaram a poluir os rios e a deixar lixo por todo o lado, quando iam para o campo adorar Deus e a Natureza, Eram péssimos campistas. Eu fui escuteiro, logo, posso dizê-lo”.

É da circunstância de serem invariavelmente verberadores que se extrai a comicidade dos velhos Marretas, mas The Muppets show vivia precisamente do exagero, do burlesco e do humor. Na vida real, os críticos arraigados e avançados na idade não costumam ter graça nenhuma. Dito isto, por seu turno, os bajuladores de toda e qualquer novidade avançados na idade são muitas vezes patéticos. Quando não danosos.

Veja-se o caso do argumento muito em voga na época — e usado por gente com mais do que idade para ter juízo — que insistiu em casar à contestação ao Acordo Ortográfico de 1990 da Língua Portuguesa com uma posição geracional. Jovens pelo sim. Velhos pelo não. Viu-se.

Os seus maiores promotores e defensores, já na altura somando décadas consideráveis, João Malaca Casteleiro, por Portugal, e Antônio Houaiss, pelo Brasil, foram, entretanto, fazer companhia a Billy Wilder e Leonard Cohen, o primeiro em 2020 com 83 primaveras, o segundo em 1999 com idade idêntica. E mesmo descontando o tempo decorrido entre a aprovação do AO pelos deputados da República e a morte dos dois linguistas, mostra-se difícil imaginá-los em 1999 a hastear o texto do Acordo com o mesmo sorriso largo com que o então jovem Daniel Cohn-Bendit encarou a cova dos leões em Maio de 68.

Escusado será dizer que jovens e velhos podem ser igualmente irritantes. Sobre o assunto, nada como ler Diário da Guerra aos Porcos do argentino Adolfo Bioy Casares (Cavalo de Ferro, 22 edição, 2015). E que me perdoem se por acaso repito a recomendação: é assacá-la à idade.

Por falar em Argentina e em Adolfo Bioy Casares, leio que quem morreu foi Maria Kodama, mulher e herdeira de Jorge Luis Borges (grande amigo de Casares), cujos traços asiáticos eram menos acentuados dos que os de Yoko Ono — o que é natural, dado que ambos, mãe e pai de Yoko eram japoneses, enquanto Kodama nasceu de pai alemão e mãe natural de Tóquio imigrada para Buenos Aires. Foi ao ler a notícia da sua morte que me lembrei de um apaixonado espanhol coleccionista de Borges que há muitos, muitos anos — ainda existia a Livraria Castil de Alvalade em Lisboa e o livreiro Miguel Bastos não se tinha apagado para sempre numa malfadada estrada a caminho de Coruche –, após comprar todas as traduções em português do autor de O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, ficou por ali, indiferente ao pó dos livros e ao meu horário de saída, queixando-se de Kodama com uma veemência que Maomé não pôs na condenação do toucinho, nem os fãs dos Beatles nas críticas a Yoko Ono ou outros descerebrados a Salinger.

Todo este intróito, que vai longo e saiu particularmente enlutado, serve, claro, para me antecipar às acusações de catastrofista.

Porque o caso é este: ao mesmo tempo que em Portugal — em Vizela, mais precisamente — se inaugura uma mais do que ridícula estátua a António Guterres — ficamos sem palavras para descrever aquele susto de quatrocentos quilos e dois metros de altura encomendado pela Câmara Municipal a uma empresa amiga, um Guterres com papeira, calças a fugir à polícia e raquitismo nas extremidades –, do outro lado do mundo, o extraordinário David de Miguel Ângelo causa polémica numa escola cristã da Florida, levando à demissão da directora.
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Wokultura

EnidBlyton e alterações ‘woke’: ignorância e ilegalidade

Patricia Akester

“Diário de Notícias”, 07 Abril 2023

Como leitora voraz que sempre fui, os livros de EnidBlyton não me passaram ao lado. Devorei os mistérios e aventuras dos Cinco e com eles percorri a sua ilha favorita, andei no colégio de Santa Clara, em Londres, com as gémeas O’Sullivan, frequentei o colégio das Quatro Torres, na Cornualha, acompanhei um clube de pequenos detectives, os Sete, detendo senhas para as suas reuniões secretas, trepei intrepidamente a Árvore Longínqua e ajudei diligentemente a resolver vários mistérios que tendiam a despontar em Peterswood, no condado de Buckinghamshire.

Infelizmente o lobby anti-Blyton não partilha do meu entusiasmo e tem atacado ferozmente a sua obra, apelidando-a de snob, misógina e racista. No seio deste movimento os livros de Blyton foram banidos de numerosas bibliotecas e novas edições têm emergido, uma vez revistas e reeditadas, com nomes, personagens e enredos adulterados com vista a — pasme-se — convertê-las em obras politicamente correctas, isto é, cumpridoras de imperativos «woke». A título de exemplo, a revisão das obras tem abarcado a eliminação de nomes considerados ofensivos, o respeito pela neutralidade de género, a divisão de tarefas domésticas, o cumprimento dos horários escolares e a resolução de mistérios e acção e aventura sob supervisão de um adulto.

Esquecem que os maravilhosos livros de Blyton encerravam aventura, mistério e magia, fornecendo simultaneamente (pormenor que tende a ser afastado) lições, ensinamentos e pedagogia. Os personagens eram recompensados por actos de generosidade, bondade, honestidade, humildade e outras virtudes e punidos quando mentiam, roubavam, tinham acessos de raiva, eram mal-educados, gananciosos, egoístas ou cruéis.

Ignoram que sob um estilo de escrita despretensioso Blyton gerou enredos repletos de complexidade, explorando, por exemplo, as questões de raiz que levavam os adolescentes a incorrer em comportamentos socialmente inaceitáveis. Olvidam que as referências a poder monetário eram raras e que o sucesso dos protagonistas de Blyton advinha da sua habilidade intelectual, da sua capacidade de trabalho, do seu bom carácter e de uma pitada de magia. Desconsideram que Blyton criou personagens femininas cheias de garra, como DarrellRivers ou as gémeas O’Sullivan e que as suas personagens mais célebres e memoráveis são raparigas (e não rapazes) obstinadas, ousadas e rebeldes.

Talvez o politicamente correcto deva adquirir perspectiva. A obra de EnidBlyton é um produto de seu tempo e do seu espaço e há que a reconhecer como tal. O mesmo sucede, por exemplo, com os livros de Joseph Conrad, de AldousHuxley e de Agatha Christie. Se as personagens de Blyton são demasiadamente abastadas que destino devem ter os mordomos e as empregadas que surgem aos pontapés na obra de Agatha Christie? Se as histórias de Blyton têm laivos de racismo como devemos encarar a obra de Shakespeare, designadamente a referência ao mouro que habita Otelo e ao judeu que tem lugar proeminente no Mercador de Veneza?

As alterações em causa retiram à obra a verdade da época e do espaço em que foi escrita, vedando a constatação e a avaliação da evolução histórica, sociológica e literária. O panorama literário é assim empobrecido, podendo o leitor chegar a um ponto em que apenas tem acesso a literatura contemporânea (politicamente correcta, claro está), sendo as restantes obras literárias banidas e/ou censuradas em nome (reparem no paradoxo) de valores liberais — e convertendo-se os livros de outrora em artigos de colecção.

Impõe-se ainda referir que as revisões acima referidas não são lícitas, em muitos países, graças a algo que o Direito de Autor qualifica como os direitos morais do autor. Tais direitos decorrem do reconhecimento da natureza eminentemente pessoal da criação do espírito e do vínculo, imperecível, entre criador e obra.

O nascimento dos direitos morais remonta ao século XIX, salientando-se, em 1814, o facto de um Tribunal francês ter reconhecido que certo autor tinha direito a que o seu manuscrito não fosse alterado, sem a sua autorização, pela editora à qual havia sido submetido (Billecocq v. Glendaz, Tri. civ. Seine, 17/08/1814). Em 1928, os direitos morais foram incorporados na grande Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas, com reflexos na lei portuguesa que declara, sem hesitação, que o autor goza do direito de assegurar a genuinidade e integridade da sua obradireito esse inalienável, irrenunciável e imprescritível, cuja guarda passa, após a sua morte, para os seus sucessores.

Consequentemente, embora o estudo da obra de Blyton, incluindo no que toca a preconceitos e estereótipos seja bem-vindo sob uma perspectiva académica, alterar a obra traduz-se em mutilação e deformação da mesma, desvirtuando-a e podendo afectar a honra e reputação do seu autor e consistindo, pois, em acto ilícito em muitos pontos do globo.

Em suma, retirar a obra do contexto em que foi redigida e actualizá-la de acordo com uma das linhas vigentes de pensamento é mais uma tentativa de mudar a História, sendo pelos motivos acima apontados fruto de ignorância e de esquecimento e empobrecendo deste modo o quadro cultural mundial.

PatriciaAkester

Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e
Associate de CIPIL, Universityof Cambridge

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Patricia Akester,
publicado no “Diário de Notícias” de 07 Abril 2023.
Destaques e “links” meus.]