«La vida es ciervo herido que las flechas le dan alas.»
Luis de Góngora
Mesmo sendo apenas medianamente cartesiano, qualquer sujeito pode relacionar predicados usando apenas complementos (directos ou indirectos) e adjectivando (ou não) quaisquer determinantes, substantivos e nomes envolvidos com (ou sem) as preposições e/ou formas pronominais necessárias (ou não).
Tal enunciado, assim servido, com ressonâncias gongóricas e vagamente aparentando um mero jogo de palavras, poderá em última análise significar rigorosamente coisa nenhuma. Mas também, se lido com a devida filtragem semântica e se utilizadas diversas outras ferramentas do imenso arsenal da inteligibilidade, pode tornar-se afinal de uma simplicidade desarmante.
Em geral, os acessos de verborreia, assim como os “ataques” permanentes que afectam os leitores compulsivos, são por regra ocasionais e não servem de imediato como diagnóstico — ou sequer indício — de qualquer coisinha mais grave; aborrecida circunstância essa que depende da ultrapassagem de uma fronteira idealizada cujas barreiras são o exagero e a persistência.
A linguagem compreende uma dimensão de pura fruição, tanto na oralidade como na escrita, que nunca ou muito raramente é analisada ou sequer tida em conta numa abordagem científica ou técnica da questão. Seja qual for o ponto de vista, na perspectiva das diversas cátedras envolvidas, a comunicação serve sempre uma função meramente utilitária e sinteticamente binária; ou seja, serve para comunicar, destina-se a que o emissor envie uma mensagem ao receptor que a descodifica; emissão e recepção, primordialmente individuais, podem ter diversos receptores (ouvintes, leitores) e mais do que um emissor (rádio, televisão, imprensa), variando a qualidade da recepção (interpretação) consoante a validade da emissão (texto) e do nível de ruído (erros gramaticais) e das interferências (incompreensão, desconhecimento) no canal ou suporte.
Nesta acepção, podemos considerar — com uma certa leveza, admitamos — que a escrita encontra paralelo em outras formas de expressão cujo epítome é uma forma de arte: a música, do grito ao adágio, a pintura, do mural à tela, o teatro, da mímica ao palco, a escultura, do pilão à figura, a arquitectura, da cama de folhas ao arco gótico. E assim acontece também a literatura, desde os sinais de rasto que sabiam ler os cavernícolas até ao código digital mais hermético, do bilhete ao livro, do mais simples conto ao mais espantoso dos romances, da história para adormecer crianças à epopeia gloriosa e épica, da dedicatória gravada a canivete no tronco de uma árvore ao poema sublime que viverá ainda muito para além dela.
O que pretendem os seres sinistros que andam por aí a enganar as pessoas não é “só” exterminar uma Língua ancestral substituindo-a por um sucedâneo, não é “só” eliminar a cultura do povo que essa Língua define e não é “só” apagar a identidade desse povo. O que na verdade pretendem é apossar-se da designação e é, sobretudo, pervertendo significados através da adulteração de significantes, transformar a Língua Portuguesa em mero salvo-conduto político, em simples ferramenta de manipulação e silenciamento, em instrumento de estupidificação em massa.
Portanto, nada a ver com emoção, nada a ver com razão. Daí o erro.
E ainda menos tem a questão seja o que for a ver com cérebro. Aliás, o cérebro é para eles um perigo, demónios, essa coisa que produz pensamentos deveria talvez ser triturada, metida a ferros, desfeita à marretada, o cérebro não é para quem ousar usar, é para aniquilar. Ora, exceptuando as balas e as serras mecânicas, não há nada mais eficaz para atingir o cérebro do que a linguagem…
O Cérebro e a Linguagem
Estruturas essenciais de mediação coordenam a actividade dos centros cerebrais. Alguns destes centros são especializados na elaboração dos conceitos, outros, na de palavras e frases.
Os neuropsicólogos que estudam a linguagem tentam compreender como utilizamos e combinamos palavras (ou signos, no caso de uma linguagem gestual) para formar frases e transmitir os conceitos elaborados pelo cérebro. Investigam também como compreendemos palavras expressas por outros e de que forma o cérebro as transforma em conceitos.
A linguagem surgiu e manteve-se ao longo da evolução porque constitui um meio de comunicação eficaz, sobretudo para conceitos abstractos. Ela auxilia-nos a estruturar o mundo em conceitos e a reduzir a complexidade das estruturas abstractas a fim de apreendê-las: é a propriedade de “compreensão cognitiva”.
O termo “chave-de-fendas”, por exemplo, evoca várias representações dessa ferramenta: as descrições visuais da sua aparência e utilização, as condições específicas do seu emprego, a sensação que provoca o seu manuseio ou o movimento da mão quando a utiliza. Da mesma forma, a palavra “democracia” é associada a diversas representações conceptuais. A “economia cognitiva” que a linguagem autoriza ao reagrupar numerosas noções sob um mesmo símbolo permite-nos elaborar conceitos complexos e alcançar níveis de abstracção elevados.
Na aurora da humanidade, a palavra não existia. A linguagem surgiu quando o homem, e talvez algumas espécies que o precederam, soube conceber e organizar acções, elaborar e classificar as representações mentais de indivíduos, eventos e relações. Da mesma forma, os bebés concebem e manipulam conceitos e organizam inúmeras acções bem antes de pronunciar as primeiras palavras e frases. Entretanto, nem sempre a maturação da linguagem depende da dos conceitos: algumas crianças têm deficiência dos sistemas conceptuais, mas possuem uma sintaxe correcta. Os centros neuronais que asseguram certas operações sintácticas parecem desenvolver-se de forma autónoma.
A associação de símbolos
A linguagem surge como produção humana voltada para o mundo exterior (um conjunto de símbolos correctamente ordenados, difundido para fora do organismo) e representação intracerebral destes símbolos e regras para associá-los. O cérebro representa a linguagem e qualquer outro objecto da mesma forma. Ao estudar as bases neuronais da representação de objectos, eventos e suas relações, os neurologistas esperam descobrir os mecanismos de representação da linguagem.
O cérebro elabora a linguagem mediante a interacção de três conjuntos de estruturas neuronais, segundo acreditamos. O primeiro, composto de numerosos sistemas neuronais dos dois hemisférios, representa interacções não linguísticas entre o corpo e seu meio, percebido por diversos sistemas sensoriais e motores; ele forja uma representação de tudo o que uma pessoa faz, percebe, pensa ou sente. Além de decompor essas representações não linguísticas (forma, cor, sucessão no tempo ou importância emocional), o cérebro cria representações de nível superior, pelas quais gere os resultados dessa classificação. Assim ordenamos intelectualmente objectos, eventos e relações. Os níveis sucessivos de categorias e representações simbólicas produzidos pelo cérebro gerem a nossa capacidade de abstracção e de metáfora.
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