No episódio inaugural, Paula Sofia entra em parafuso quando se apercebe de que os seus filhos meteram-se por maus caminhos, coisas latrinárias, e agora andam por aí no “gramado” e no “banheiro” (ou lá o que é) como uns tolinhos.
No 2.º episódio, Sérgio mete um “youtuber” ao barulho, diz que é esse o “cara” que anda a endrominar os “tuguinhas”.
3.º episódio: o tal fulano dos vídeos defende-se, diz — com muito jeitinho, à cautela — que não tem culpa de os tugas adultos serem uma cambada de idiotas, que tem uma avó cá nas berças e tudo; por fim, lança uma “bomba”, o miolo da trama, anuncia que vai traduzir e dobrar os seus vídeos de brasileiro para Português.
A telenovela brasileira sobre a lavagem ao cérebro a que os brasileiros e os vendidos portugueses andam a sujeitar as nossas crianças (quanto aos adultos está o caso arrumado, missão cumprida, muitos deles sentenciam que “agora é assim que se escreve e fala” e “prontos”) avança hoje para o 4.º episódio e outros estão em preparação.
Desta vez, o que temos é um artigalho de certo (digo, de errado) imigrante brasileiro. Absolutamente inacreditável. O fulano nem disfarça. Pois, pudera, aqui a “terrinha” passou de lugar mal frequentado a ainda pior, e por acréscimo temos de levar com toda a arrogância do protótipo, o arzinho petulante de quem se acha muito “superior” (ou lá o que esses tipos se julgam), textículos de auto-propaganda publicados em jornais portugueses (mas que lata descomunal!) espalhando em brasileiro — que exigem intocável — o seu proselitismo neo-imperialista de grande potência mundial (que é, de facto, basta ver as estatísticas de criminalidade, pobreza extrema, corrupção endémica) e, em suma, a suprema maravilha que deixaram quando nos fizeram o extraordinário favor de emigrar para cá.
Claro que a semelhante chorrilho de insultos e provocações a resposta mais adequada seria o silêncio sepulcral que por definição inspira o mais profundo desprezo.
Contudo, todavia, não obstante, porém, mas por questões de dever de ofício há também que fazer sacrifícios. Não vá o freguês sem levar troco, é o que é.
Vejamos então alguns dos disparates mais escabrosos, anedóticos ou simplesmente cretinos.
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- «a expressão “brasileiro” como referência à variante do idioma português». Não, já não é nada disso, Português e brasileiro são línguas diferentes, conforme foi já explicado diversas vezes, até a criancinhas. Inúmeros brasileiros reivindicam o seu (pleno e mais do que justificado) direito a que a língua brasileira seja declarada Língua nacional da República Federativa do Brasil, assim como fez a República de Cabo Verde com o seu crioulo.
- «excesso de consumo de conteúdo brasileiro». Ah, sim, pois é, há por cá muito disso. Esse truque de tentar restringir o “consumo” ao YouTube — ou mesmo à Internet em geral — não cola; não é consumo, é enfiar pela goela abaixo: nos canais de TV e rádio, música, filmes, nos desportos colectivos (em futebol é a granel, até na “seleção” nacional), há por cá escolas de samba (!!!), “cárrnáváu” com “garotas” em trajes diminutos a tiritar de frio, enfim, em tudo, em todo o lado e de toda a maneira e feitio. Claro que por vezes tais espectáculos circenses são da iniciativa de alguns portugueses, os mais deslumbrados que adoram macaquear brasileiradas, mas isso são contas de outro rosário.
- «variante idiomática como uma doença a ser contida». Olha, boa! Aí está, para variar, uma excelente formulação. Aquilo a que alguns chamam variante é de facto uma doença a ser contida em Portugal. E com urgência.
- «se separarmos o “brasileiro” do “português”, o primeiro seria o 7.º idioma mais falado no planeta». Outra vez, de novo, esta nunca falha. Não há por lá um neo-imperialista que dispense a contagem de cabeças (deve ser hábito de contar vacas e pilecas nas “fazendas”) para “provar” que são não apenas muitos mais como também são, por inerência algébrica, muito superiores a nós. Por isso só os brasileiros acham que a Língua Portuguesa lhes pertence, porque são “mais de 20 vezes mais” do que nós, portugueses.
- «O idioma português é um patrimônio coletivo internacional». O idioma português é o (não “um”) património colectivo do povo português e da nação portuguesa, tendo as ex-colónias portuguesas em África (e, até 1822, a colónia sul-americana) resolvido adoptar, aquando da respectiva independência, como Língua nacional o Português vernáculo. Essa “internacionalização” não passa de um parasita semântico que interessa aos neo-imperialistas brasileiros impingir para efeitos meramente empresariais, comerciais, de tráfico de influências, tráfico de excedentes, tráfico de matérias-primas e de outros tráficos.
- «nem devesse ter seu nome atrelado ao de um país.» Ora aqui está, em todo o seu “esplendor”, o epítome do significado da expressão idiomática do Português “descobrir a careca”; claro, isso de se chamar “Língua Portuguesa” ou, mais prosaicamente, “Português” ao idioma nacional de Portugal é para os brasileiros certamente insuportável. Resta clara a típica irritação ou o ódio raivoso que eles nutrem pelos eternos culpados da sua “frescura”. Inglês, Francês, Espanhol, Japonês, Coreano, por exemplo, ou qualquer outra Língua cujo nome seja o do país que a criou, bem, isso para os “irmãozinhos” não interessa nada, faz de conta, Português é que, oi, qui ôrrô, né, cara, pódji naum, issu faiss lembrá pôrrtugáu.
De novo, cá vai o troco em forma de recado repetido ad infinitum: fiquem-se lá com as vossas cabeças de gado, “caras”, fiquem com a vossa língua brasileira, digam o que quiserem em brasileiro, arranjem uns tachinhos valentes na ONU à conta das vossas imensas manadas, boa sorte, adeus.
Em defesa do ″português brasileiro″
Edson Capoano
www.dn.pt, 12 Novembro 2021
Ouvi pela primeira vez a expressão “brasileiro” como referência à variante do idioma português em conversa com pais que esperavam, como eu, os seus filhos na porta do pré-escolar em Braga, onde vivo. O relato tinha um misto de curiosidade com preocupação sobre o excesso de consumo de conteúdo brasileiro no YouTube e a assimilação de termos estrangeiros pelas crianças portuguesas, tal como reporta a notícia “Há crianças portuguesas que só falam brasileiro”, reportagem do DN de 10 de novembro último.
Como pai, solidarizo-me com todos. Afinal, a linguagem é uma ferramenta essencial para o desenvolvimento cognitivo infantil e para a integração cidadã dos indivíduos. Porém, vejo com preocupação o cenário gerado pela notícia anteriormente mencionada, apresentando uma variante idiomática como uma doença a ser contida. A reportagem não entrega dados suficientes para compreender qual o tamanho do fenômeno ou se este é de nocivo, tal qual os termos “vício”, “tratamento”, “apelativo” e “o problema” do texto sugerem.
Tampouco o relato dos especialistas entrevistados sustenta que haja problemas fonéticos ou educativos às crianças no futuro. O que sim é fato é que a pandemia alterou as rotinas familiares e muitos pais abandonaram seus filhos aos ecrãs, para que eles mesmos se dedicassem ao teletrabalho. Em Portugal, já no primeiro confinamento devido ao covid-19, houve aumento de tráfego de dados na web em 20%. No mesmo período e em nível mundial, o consumo de internet através de dispositivos em casa aumentou em 40,1% (Comscore, 2021).
Nesse contexto, parece-me descabida a atitude de bloquear conteúdo brasileiro no YouTube por conta apenas do idioma, da professora que se impressiona com expressões estrangeiras, da linguista que acredita ser uma moda ou da terapeuta da fala que acha “difícil travar o brasileiro” provindo da web. Afinal, isso não vai impedir que as crianças troquem palavras e expressões nas escolas e em seus grupos, o que acontece de forma saudável e diariamente em Portugal. Imagino que a questão mais urgente é de fato a influência das plataformas sociais digitais na formação das crianças.
O idioma português é um patrimôniocoletivo internacional e, como tal, talvez nem devesse ter seu nome atrelado ao de um país. Afinal, se separarmos o “brasileiro” do “português”, o primeiro seria o 7.º idioma mais falado no planeta, enquanto o segundo estaria abaixo do 80.º lugar, entre o zulu e o checo. Se isso importa na criação de nossos filhos, não posso afirmar, mas que na produção cultural tem peso imenso, é inegável. Assim, também é um dos idiomas mais utilizados em produtos midiático-culturais, como vídeos, filmes e séries e, como é de se esperar, na vertente brasileira. Não existem fronteiras nacionais para variantes linguísticas verbais-orais, ainda mais em tempos de plataformas sociais digitais.
O jornalismo precisa intermediar este debate para além do senso comum e dos casos pontuais. Caso contrário, não se diferencia dos comunicadores independentes do YouTube, um dos quais este jornal escolheu como o responsável pelo fenômeno abordado no texto referido, o comunicador Luccas Neto. Curiosamente, o brasileiro, assim como seu irmão, Felipe Neto, tem cidadania portuguesa, graças à sua origem familiar. Enquanto eles entram na casa dos portugueses pelos ecrãs, mais de 150 mil brasileiros vivem em Portugal (SEF), o que torna o idioma vivo e em constante mutação. Ou dito de forma mais simples, como minha filha de 4 anos: “Aqui se diz relva, no Brasil, se diz grama.”
A pedido do autor, o jornal não fez qualquer alteração ortográfico-gramatical no texto, a respeito da variante linguística portuguesa utilizada.
Jornalista, doutor em Comunicação e Cultura e investigador do ICS-CECS sobre jornalismo, participação e media digitais, na Universidade do Minho. Autor de “Panorama da imigração brasileira a Portugal na web”, “Resistência à intermediação pelos ecrãs conectados” e “O medo do consumo solitário: comentários em canais infantojuvenis de YouTube do Brasil e de Portugal”, artigos disponíveis em http://repositorium.sdum.uminho.pt/
[Transcrição integral de artigo do brasileiro Edson Capoano publicado no “DN” de 12 Novembro de 2021. Secundei a posição tomada pelo DN quanto à exigência do autor de que o seu artigo fosse publicado com as regras ortográficas que lhe apeteceu usar (no Brasil a cacografia é individual). Imagem de topo de: página “Educated Minds” (Facebook). Imagem de (belíssima) vaca (ou boi?) brasileira de: “CPT” (Brasil).]
Á sigui: cênaiss duiss próssimuiss cápítuluiss
Um brasileiro que escreve sobre Portugal num blog da Rêdji Globo refere-se ao “pobrema” da Paula Sofia e refere casos de “discriminação, xenofobia e conflitos” por os miúdos falarem em brasileiro, coitadinhos. Será que a Globo mete o bedelho? E a encrenca? Já terá chegado ao Palácio do Planalto?
Não perca!