Toda a gente está a par do extraordinário circo mediático montado em volta de uma criança que desapareceu no Algarve. Não está, evidentemente, em causa o mérito de qualquer iniciativa que possa contribuir para ajudar a resolver o problema, mas convenhamos que a algum exagero se vai já assistindo neste circo, como de resto costuma suceder em espectáculos circenses, por definição.
Algumas pessoas, porventura mais afoitas, começam a manifestar alguns sinais de incómodo, quando não de alguma revolta, por causa do evidente espalhafato, o aspecto quase feérico do assunto e, piorando ainda mais as coisas, a absoluta falta de resultados práticos produzidos por tão espantoso quanto ineficaz arsenal de meios.
Todos nós sabemos também que, por exemplo, a família do Rui Pedro está há nove anos sem saber onde pára o rapaz, hoje com 20 anos. Algumas pessoas ainda se lembram, pelo menos vagamente, daquilo que sucedeu na altura do seu desaparecimento e de, esporadicamente, ver e ouvir a mãe do Rui Pedro na televisão, nove anos a fio, simplesmente perguntando sempre e sempre a mesma coisa: “onde está o meu filho?”
Nos idos de 1998, não houve circo em Lousada, apesar de esta ser também uma “simpática localidade”: nem directos em todos os canais, nem paparazzi da desgraça, nem batalhões inteiros de polícia, a pé e a cavalo, nem helicópteros de todos os tamanhos e feitios, nem batidas no terreno com centenas ou milhares de voluntários, nem campanhas internacionais; muito menos existiu qualquer audiência de Estado, laica ou religiosa. Já sabíamos que Lousada não é propriamente Lagos, mas ainda assim as diferenças entre uma localidade e outra não são propriamente as mesmas do que entre uma criança e outra criança.
Enfim, tudo isto é sabido, e mesmo sem quaisquer considerações morais poderemos ao menos duvidar – no mínimo – da bondade que preside à actuação de alguns dos envolvidos, comparando os dois casos, e em especial se atendermos às entidades responsáveis em ambos.
Aquilo que pouca gente saberá, porventura, é que – se estiverem correctos os relatos e comentários que existem na blogosfera – o Estado português cortou o abono de família do Rui Pedro, presumivelmente quando foi atingido o respectivo prazo legal; isto é, o miúdo desapareceu, continua desaparecido, nove anos depois, mas os prestimosos serviços da nossa “Segurança Social” não se coibiram de o declarar como “morto” (ou “equivalente”, para efeitos legais), não muito tempo depois do seu desaparecimento1.
Outro episódio que terá passado despercebido, ainda sobre o mesmo caso, e este está felizmente documentado, é o seguinte: um recluso, condenado por burla a sete anos e meio de prisão, fez constar que saberia onde estava o miúdo, ou que ao menos calculava onde poderia estar; enfim, que era capaz de o devolver à família; foi mandado libertar pelas autoridades, tendo por incumbência localizar o Rui Pedro, em Portugal ou no estrangeiro. Puseram-lhe nas mãos um automóvel, e teve ainda direito a cartão-de-crédito, para despesas. Isto passou-se em 2003, e essa pessoa nunca mais foi vista, até hoje2.
Realmente, por mais que se goste deste país, às vezes dá vontade de fugir daqui para fora, emigrar compulsivamente ou, sabe-se lá se alguma terra civilizada não terá semelhante figura jurídica, pedir asilo moral. Refúgio por motivos de sanidade mental. Vergonha patológica. Qualquer buraco serve.
1 Isto é puro “hear say”, algo que se ouve (neste caso, lê) mas não se pode comprovar; se isto for informação errada, se esse subsídio apenas foi retirado quando o Rui Pedro atingiu a maioridade, então nada a apontar; fica aqui o reparo.
2 Idem, aspas, no que se refere ao “até hoje”.
(*) Parece-me que isto era de uma canção qualquer dos anos 70. Não me lembro de quem era, nem há referências na Google.