«— Ó Amaro, você está aí?
— Que temos?
O padre Natário fechou a porta, e atirando os braços para o ar:
— Grande novidade, é o escrevente!
— Que escrevente?
— O João Eduardo! É ele! É o liberal! Foi ele que escreveu o Comunicado!
— Que me diz você? fez Amaro atónito.
— Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escrito pela letra dele. O que se chama ver! Cinco tiras de papel!
Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natário.
— Custou, exclamou Natário. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de papel! E quer escrever outro! O Sr. João Eduardo! O nosso rico amigo Sr. João Eduardo!
— Você está certo disso?
— Se estou certo! Estou a dizer-lhe que vi, homem!
— E como soube você, Natário?
Natário dobrou-se; e com a cabeça enterrada nos ombros, arrastando as palavras:
— Ah, colega, lá isso… Os comos e os porquês… Você compreende… Sigillus magnus!»
Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro
Nem todos somos “escreventes”, em Portugal. Nem todos somos natários, também, e de igual modo nem todos somos propriamente “otários”.
Hoje como ontem, há coisas que só se resolvem “à bengalada”, como nos bons velhos tempos de Queirós, e há coisas que… não se resolvem. Como “dar bengaladas” em alguém costuma, actualmente, acarretar uma série de maçadas para quem as dá, muito pouco ou rigorosamente nada se pode fazer quando uma pessoa é insultada ou difamada.
O despacho de provimento da providência cautelar, com o consequente apagamento do blog Póvoa Online, representa nada mais, nada menos do que a liquidação pura e simples – por via administrativa, com instrumento judicial – da “blogosfera”; da portuguesa, neste caso e no imediato, mas a tendência é geral, se bem que muito mais intensa nos países com tiques autoritários e com hábitos de tirania. Os fundamentos “jurídicos” exarados naquela certidão de óbito são rigorosamente os mesmos – a difamação, o insulto – que sustentam o barramento liminar do acesso à Internet por parte de governos de países tão “democráticos” e “livres” como a China, Cuba, a Coreia-do-Norte, o Irão, a Síria…
No fundo, aquilo de que falamos é de exercício do poder. Este aparentemente simples apagamento de um blog português representa e simboliza um aviso expresso – e, por sinal, nada subtil: atenção, muito cuidadinho, porque a partir de agora qualquer um pode ser “apagado”, portanto vejam lá como falam, o que dizem e principalmente de quem dizem.
E isto é “apenas” assim, o pior que pode suceder é um “apagamento” virtual e não um apagamento em regra, físico, à moda antiga, porque ainda não vivemos propriamente num regime político baseado na repressão, na violência física. Não, ainda não. Para já, e até ver, a violência é “só” mental, ideológica, mas igualmente perversa, malévola, obscurantista: alegando visar proteger direitos constitucionais, como o direito à imagem e ao bom-nome, o que é de resto um excelente pretexto e não despicienda cobertura legal, o que se pretende é calar de vez a discórdia, o descontentamento, a revolta.
Isto já tinha antecedentes. Os sinais e as ameaças pairavam desde há muito sobre as nossas cabeças, como nuvens negras que ameaçam tempestade rija. Pois agora já não falta nada: o primeiro trovão estalou, despediu o raio que acaba de pulverizar um de nós – chamuscando tudo em volta.
Saibamos resistir à saraivada que aí vem, aguentemos a pé firme a enxurrada violenta, mesmo encharcados até aos ossos, mesmo contra o vento inclemente e por mais escuro que esteja o horizonte, lutemos com bravura pelos nossos direitos: de ter opinião, de discordar, de dizer asneiras, de ter uma ou várias personalidades, de ter um nome, vários nomes, muitos nomes ou nome nenhum.
A liberdade não dá, nunca deu de comer a ninguém. Mas é a liberdade a única ração de quem não tem mais nada para alimentar a sua inteligência. É uma boa ração, a liberdade, e também uma boa razão: uma razão de combate.