“Ora, não sendo a gravidez uma doença, a sua interrupção não constitui um tratamento médico, nem está sujeita a receita médica, é antes uma terapêutica, entendida esta como arte, ciência de cuidar de doenças e doentes“.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 28.10.08 (citado pelo blog Médico Explica Medicina a Intelectuais)
Ou seja, afinal a publicidade às clínicas onde se fazem abortos é perfeitamente legal. Logo, nestas clínicas não há qualquer necessidade de que os abortos sejam realizados por médicos, já que essa ligeira operação de alívio de carga a mais “é antes uma terapêutica”, em tudo semelhante a uma lipoaspiração ou, a bem dizer, sujeitar-se alguém mais anafado a uma cura de emagrecimento através de sauna à pressão, ou assim.
Já agora, visto que uma “clínica” de abortos não carece de médicos para os realizar, então também não há necessidade de que seja uma verdadeira clínica; pode, de acordo com o douto acórdão, tratar-se de um qualquer estabelecimento dedicado às coisas da terapêutica, por exemplo uma sauna ou quem sabe um simples ginásio de musculação, mas nesse caso mais virado para o emagrecimento em geral e o alijamento de peso em particular.
No fundo, no fundo, como sabemos, uma gravidez indesejada não passa de gordura em excesso. Aquilo o que sucede é que nasce ali uma excrescência, uma espécie de verruga um bocadinho mais complexa do que as que aparecem na cara ou nas pernas, mas pronto, o que há é que tirar dali aquele pedaço excedentário e quiçá inestético, aliviando a grávida involuntária das maçadas que tal pasta informe e infecta ocupa no seu ventre.
Para o efeito, por conseguinte, qualquer variante de terapeuta serve, desde o corriqueiro fisioterapeuta, que poderá com toda a presciência realizar abortos com base no físico, uns murros e uns pontapés bem aplicados na zona do estômago da grávida devem chegar, até ao mais insuspeito hipnoterapeuta, que poderá espetar-lhe umas agulhas de crochet no sítio exacto, utilizando a hipnose como método anestésico.
Enfim, qualquer um destes técnicos cuja profissão acaba em “peuta” estará doravante habilitado a realizar abortos, podendo mesmo para o efeito publicitar não apenas a sua actividade como inclusivamente o próprio estabelecimento onde exerce a dita “terapêutica”.
Trata-se, de facto, de uma verdadeira revolução, espoletada por um único, singelo, se bem que um pouco arrepiante papel, em forma de douto parecer jurídico, cheio de carimbos e com o selo branco, a chancela da República.
Significa também este documento, esta coisa, do mesmo passo, que deixará concomitantemente de existir o direito à objecção de consciência (previsto na lei, que assim perde qualquer eficácia), já que essa objecção que os médicos podiam alegar se referia exclusivamente a actos… médicos. Se a interrupção voluntária da gravidez deixa de ser um acto médico, então logicamente um médico não se pode recusar a executar aquilo que não o é.
Não esqueçamos também que, assim sendo, então haverá muitas abortadeiras – devidamente qualificadas com um qualquer “peuta” na designação profissional – que terão agora de ser ressarcidas das maçadas a que foram conduzidas pelas ignaras e sôfregas autoridades, em situações aborrecidas, como a prática de aborto ilegal, e que por isso mesmo pespegaram com as assim chamadas “abortadeiras” na cadeia. As respectivas condenações a penas pecuniárias terão agora de ser devolvidas pelo Estado com juros de mora à taxa em vigor, já que de uma penada ficam “de jure” e desde já absolvidas de qualquer acusação. É que, afinal, bem vistas as coisas, ninguém pode ser condenado por efectuar as “terapêuticas” para as quais possui habilitações sobejas (e por vezes soberbas).
O mesmo vale, ressarcimento, reabilitação, compensações monetárias, para as mulheres condenadas por se terem sujeitado a que as mesmas técnicas “terapêuticas” fossem aplicadas no seu próprio corpo e que por isso foram na pré-história (isto é, antes de 28 do corrente) condenadas em juízo por terem abortado sem assistência médica. Não era preciso, como se sabe agora. Soltem-se as prisioneiras, por conseguinte.
Caramba.
Este texto já vai longo mas, posso afiançar, desde a primeira palavra do primeiro parágrafo que estou sem palavras.