O acaso Ensitel

Mae West

«Quem não está na rede ou na rede certa continuará desprotegido. Como quem não tinha no passado os contactos certos. A justiça continuará a fazer muita falta.»

[Helena Garrido, Jornal de Negócios]
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É o “hype” do momento. Muitos dizem, indignadíssimos, que se trata de um verdadeiro ataque à liberdade de expressão; outros tantos – arrepelando se calhar muito justamente os cabelos – que “isto só neste país”; outros ainda que é muito bem feita, pois sim, senhor, a Ensitel que se estampe ao comprido e com estrondo. Claro que também há alguns, poucos e certamente um bocadinho cromos, que se indignam ao contrário, ou seja, protestando que a senhora em causa não tem nada que andar por aí a “difamar” a Ensitel.

De qualquer forma, o que parece colher consenso geral é que este episódio originou a maior “onda de solidariedade” alguma vez vista na webtuga, manifestando-se milhares de pessoas em especial através dos blogs e das redes sociais

Em jeito de sinopse, digamos que a situação se resume a um mau serviço de fornecimento prestado por certa empresa a determinada cidadã, sendo que esta não se limitou nem limita a protestar em privado, pelo contrário, fá-lo em público, inicialmente através do seu blog e posteriormente via redes sociais.

Ora, há aqui um equívoco, ou, vendo melhor e contando de novo, há aqui três equívocos.

Primeiro, a “blogger em causa” não é uma blogger qualquer; se fosse, e sei bem do que falo quando isto digo, praticamente ninguém, nenhum jornal, nenhuma rádio ou, muito menos, nenhum canal de televisão se dignaria dispensar sequer um segundo de atenção ao caso, nas mesmíssimas circunstâncias. Se algum de nós outros, simples anónimos, escrevesse rigorosamente as mesmas coisas, como tantos escreveram, e outras até bem piores, a coisa ficaria para sempre no esquecimento de onde nunca sequer chegaria a sair e, é claro, a empresa não se acharia minimamente “ofendida”. Ou então, caso isso por excepção sucedesse, quem a tal se atrevesse seria sumária, anónima e liminarmente julgado, condenado e, se calhar, uma e outra e outra vez, ad infinitum, rigorosamente pela mesma coisa*.

Segundo, a questão – dos pontos de vista ético e jurídico – não é de direito à “liberdade de expressão” mas de direito à legítima defesa**, tanto própria como alheia; se fosse questão liberdade de expressão e não de legítima defesa, então pouco ou nenhum sentido faria o “incómodo” da empresa (mesmo não se tratando da “expressão” de uma blogger “qualquer”); não, de todo; a empresa sente-se atacada porque uma cidadã portuguesa (e aqui, pelo contrário, não sendo ela uma simples anónima, ainda por cima) se atreveu a defender-se e, mais “grave” ainda, ousou avisar os seus concidadãos para práticas que a mesma cidadã considera como abusivas e ilegais por parte da dita empresa. Num país tão “exótico” como Portugal, sabemo-lo perfeitamente também, o Artigo 37º da Constituição da República vale o mesmo – ou menos – que, por exemplo, o Artigo 187º do Código Penal.

Terceiro, em Portugal não existe propriamente aquilo a que se chama – com alguma ligeireza terminológica – “liberdade de expressão”. Se houvesse, como existe de facto em algumas (poucas) democracias, por esse mundo fora, então ninguém seria perseguido por aquilo mesmo que a lei fundamental refere, na letra e no espírito, mas nunca na prática, ou seja, por «exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados». Mas gente perseguida em Portugal por isto mesmo é o que mais há por aí, como sabemos todos pelo menos de ouvir dizer e mesmo alguns de nós por experiência própria.

Sucede, portanto, que destes três equívocos básicos resultarão provavelmente, a prazo, alguns outros, e esses terão consequências imprevisíveis. Este episódio, não sendo de facto nem o primeiro nem o único, não será decerto o último. Pelo contrário, à boleia deste e por efeito de contágio ou mera mimetização, muitos outros se seguirão com certeza; e o aborrecido do assunto será, então, que a aparente facilidade com que a coisa se propagou neste caso leve alguns incautos a avançar com as suas próprias “causas públicas”, de semelhante ou até de diferente jaez, esperando que da mesma forma a “comunidade virtual” se mobilize e que as “redes sociais” se atirem de novo à “causa” com as ganas e a garra que agora demonstraram.

Desenganai-vos, porém, ó incautos. Neste país, não interessa para nada o mérito intrínseco seja do que for; dito de forma mais simples, ninguém se rala com o que se diz, quando, como, porquê e de quê – só conta para alguma coisa quem diz seja lá o que for. E se quem conta contar mesmo muito, então até um simples espirro por escrito pode originar uma “onda de solidariedade” em tudo quanto é blog e fórum e rede e social e anti-social.

Desenganai-vos também, ó ingénuos, quanto àquilo que os tribunais portugueses consideram ou aceitam como legítima defesa, própria ou – pior ainda – alheia. Não estareis vós já fartos de ver gente condenada por se ter defendido de um crime ou de um criminoso o melhor que soube e pôde? Julgareis porventura que, sendo vós simples mortais, as mesmas massas que agora aplaudem freneticamente – e calmamente, no remanso dos seus lares – irão alguma vez enfrentar um Tribunal?***

E desenganai-vos, já agora, ó crentes mais empedernidos, sobre os vossos “direitos” de cidadania, que são – encurtemos razões – rigorosamente nenhuns. Todos somos iguais perante a Lei, de facto, é o que está escarrapachado na própria Lei, mas acontece, aborrecidamente, que a Lei muda consoante o dinheiro que cada qual tenha para a pagar. Todos temos direito à liberdade de expressão, pois é claro, quem vai negar semelhante coisa, apenas com o senão de se poder dizer – só e nada mais – aquilo que já toda a gente sabe, que já toda a gente pensa e que já toda a gente disse.

Este “barulho” que agora sucedeu não passa, e espectacularmente, de simples efeito Mae West, a quem toda a gente em volta se apressava a dar lume assim que ela puxava da boquilha. Foi um fogacho de “liberdade”, cada qual a chegar-se o mais possível à frente – com cagança e militância – para tascar lume a uma decepcionante, postiça, simples ilusão.


* O esmagamento recorrente do princípio ne in bis idem, também consagrado na CRP, é um dos exemplos do triste estado a que chegou a “justiça” em Portugal, em paralelo com a inexistente e sarcástica “liberdade de expressão” e o idem aspas “direito à legítima defesa”.

** Alertar a comunidade para uma prática irregular ou criminosa é um acto (e um dever) não apenas de cidadania como de “Legítima defesa“. Digo eu, que, não pertencendo a qualquer das castas superiores – as únicas, pelos vistos, com direito a abrir a boca -, julgo não ter obrigado ninguém a vir aqui ler as minhas mais do que evidentes insignificâncias.

*** Com honrosas e admiráveis excepções à regra, é claro. Mais uma vez, aqui ficam as minhas homenagens e o testemunho de eterna gratidão a estes verdadeiros heróis da blogosfera: Der Terrorist, Do Portugal Profundo, Boticário de Província, Zone41, C.C. & Cª, Denúncia Coimbrã, Bruno Amaral e Margarida AZ.

[A foto que ilustra este post é de autoria e origem desconhecidas.]

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