Estado de coima

Há quem diga que os nossos agentes da autoridade, ou seja, os nossos polícias, ganham uma comissão sobre cada multa que “passam”. Falta provar isso. Onde, em que documento ou diploma legal está semelhante coisa tabelada?

De facto, mesmo antes de produzida prova ou demonstrada a veracidade da suspeita (ver nota de rodapé), todos nós sabemos – e quantos por experiência própria – que a actuação das nossas forças policiais demonstra uma especial apetência por aquilo a que se convencionou chamar “caça à multa” – e nomeadamente no que ao trânsito diz respeito. É vê-los por aí, emboscados atrás de edifícios ou em curvas a seguir a rectas largas, armados com o seu bloco de multas e o muito expedito Multibanco portátil. Toda a gente sabe que não existe segurança nas ruas, mas agentes não faltam – por regra e por definição multando, bloqueando e rebocando os automóveis mal estacionados. Ou seja, faltam os agentes de giro, mas abundam os agentes que fazem coisas giras, como multar, autuar, passar contra-ordenações; o polícia típico português pouco ou nenhum uso dá à arma de serviço, mas farta-se de dar ao gatilho da sua esferográfica; gasta pouca ou nenhuma munição, mas lá gastar papel é com ele, não haja dúvidas.

Veja-se, como ilustração, o recente caso dos radares espalhados por Lisboa: sempre colocados em locais estratégicos e sempre com o objectivo único de esmifrar uns milhares ao condutor incauto. De tal forma eficiente, esta linha de montagem de autuações, de tal maneira gananciosa, que agora não há como dar vazão, os sistemas informáticos entopem todos os dias com milhares e milhares de infracções, os processos chegam ao tecto, está tudo mobilizado para processar as avalanches diárias de papel… em mais do que um sentido.

Não se vislumbra, na actuação típica das nossas “forças da ordem”, a mais ínfima preocupação com a dita ordem; daí, e por exclusão de partes, a suspeita de que a sua preocupação exclusiva se resuma não à manutenção da ordem, mas ao aumento do seu ordenado. Não são forças da ordem, são forças da contra-ordenação.

E a polícia é apenas a forma mais visível e espalhafatosa daquilo que o Estado representa, em Portugal. O (mau) modo como o Estado português, tradicional e atavicamente, suga, explora e persegue o contribuinte em geral e as pessoas de bem em particular, sob a forma de impostos, contribuições, coimas, emolumentos, taxas, multas, contra-ordenações, tudo isso significa para o cidadão comum uma coisa muito simples e algo contraditória: o Estado não é uma pessoa de bem, até porque ataca preferencialmente o cidadão cumpridor, logo, há que evitar o Estado, fugir dele, enfim, há que fazer o que for possível para evitar os assaltos – das entidades e já não dos meliantes.

Já se vêem, de novo, por essas estradas fora, condutores que fazem sinais de luzes, para avisar os outros de que mais à frente se encontra uma brigada de trânsito. Ou seja, exactamente como sucedia antes do 25 de Abril de 74. Uma das profissões com grande saída, actualmente, é a de contabilista; ora, como é evidente, a este fenómeno não será de forma alguma estranho o especial fascínio que o fisco sente pelas finanças de cada qual e a correlativa necessidade individual de socorro profissional: contabilistas competentes, de preferência criativos e altamente especializados em espeleologia fiscal, isto é, em buracos na lei.

O Estado é um péssimo pagador, paga (se pagar) quando calhar (e se calhar), mas cobra com juros, com emolumentos, com “despesas”, com “rubricas várias”, com, em resumo, não apenas máxima presteza como suprema arrogância. Ciclicamente, por coincidência em períodos pré-eleitorais, o Estado “decide” moderar a sua voracidade, pôr um freio nos dentes aos cavalos de saque, ou seja, em suma, promete baixar os impostos. De facto, como um político nunca mente, aquilo que invariavelmente se passa é a baixa efectiva de um imposto (por exemplo, sobre os rendimentos do trabalho) e a criação imediata de um outro imposto, novinho em folha (por hipótese, sobre o consumo); após as eleições seguintes, este novo imposto é extinto e o outro sofre um aumento brutal; e assim sucessivamente, com outros nomes e outras variações, mas sempre com a mesma receita.

Se bem que o regime seja conhecido de todos, ou mesmo assim, por vezes surgem alguns excessos, coisas incompreensíveis (mesmo para o Estado guloso que temos), verdadeiras aberrações que não lembrariam ao mais imbecil ou corrupto dos políticos.

É o caso recente das tragédias que se vão sucedendo na área das aposentações da Função Pública. Professores e outros funcionários públicos, extremamente doentes, que morrem em serviço, porque a sua reforma foi indeferida por uma qualquer obscura “junta médica”; pessoas com quadros clínicos terríveis que são forçadas, por qualquer dessas sinistras “juntas”, a continuar ao serviço e em serviço; seres humanos a quem é administrativamente negada a dignidade, fazendo-os passar por mentirosos e fingidores, a quem são passados atestados de malfeitoria e mau carácter, apesar ou precisamente por causa de todas as provas por eles apresentadas. Certificados de aptidão que funcionam como sentenças de morte, apenas para poupar umas lecas aos cofres do Estado.

Consta agora, a propósito deste horror institucional, que a coisa pode ser bem pior do que se imaginava: a explicação para uma tal catadupa de reformas recusadas residiria então no facto de as juntas médicas serem pagas à peça, ou seja, sendo o pessoal que as efectua remunerado conforme houvesse deferimento ou recusa. Concretizando um pouco mais: por cada inspecção realizada em junta médica, o pessoal que a efectuasse (ou a instituição na qual ela se realizasse) receberia 10 € se o parecer fosse favorável (reforma antecipada concedida), e … 25 € caso o pedido fosse indeferido.

Extraordinário, não é? Faz lembrar aquela das multas que os polícias ganham à percentagem, não faz?

Bem, e provas quanto a isto, há?

Há, mas pouco. Existe imensa (e, de certa forma, contraditória) legislação sobre a antecipação de reforma(*), mas escasseia a informação sobre os custos de um processo que implique uma junta médica.

No Jornal de Notícias, de 4 de Agosto 2007, em artigo com o título “Desigualdade persiste nas juntas médicas“, encontramos o seguinte parágrafo:

«Outro factor que condicionará o acesso às juntas de recurso é a obrigatoriedade de pagamento dos custos do processo pelo trabalhadores, caso o pedido de reforma seja recusado. Além disso, compete ao trabalhador pagar ao médico que o representará, independentemente de ser por si escolhido ou designado pela respectiva administração regional de saúde.»

Sobre esta problemática, e referindo-se nomeadamente à ADSE e às juntas médicas, existem alguns planos governamentais para um futuro próximo.

Se procurarmos um pouco mais para trás, deparamos com a regulamentação original dos custos inerentes à convocação das referidas juntas. Este “Decreto Regulamentar nº 41/90, de 29 de Novembro” refere, no seu Artigo 17º:

«

Encargos

1 – Os encargos com o funcionamento da junta médica, incluindo os decorrentes do disposto nos artigos 4.º e 5.º, na alínea f) do artigo 6.º, no artigo 7.º, no n.º 1 do artigo 10.º e nos artigos 14.º, 15.º e 16.º do presente diploma, são suportados pelo orçamento da ADSE.
2 – Os encargos decorrentes da participação na junta médica do médico assistente pelo funcionário ou agente são por este suportados.
3 – Os encargos decorrentes da apresentação do funcionário ou agente à junta médica por iniciativa da Administração serão suportados pelo serviço de que aquele depende, com base na tabela de ajudas de custo em vigor à data da deslocação, sempre que esta se verifique para fora do município em cuja área está situado o respectivo local de trabalho.
4 – Os protocolos referidos no n.º 2 do artigo 1.º estabelecerão as normas necessárias à efectivação do reembolso, pelas entidades interessadas, dos encargos suportados pela ADSE decorrentes da realização de juntas médicas relativamente a funcionários e agentes que lhes sejam submetidos.
»

Ou seja, existem de facto “preços” diferentes para a prestação de um mesmo serviço. Se a junta for convocada por iniciativa do funcionário, este paga as respectivas “custas”; se for por iniciativa da entidade à qual o funcionário está adstrito, esses encargos correm por conta dessa entidade, isto é, do Estado para o Estado; se, por fim, a convocatória for de iniciativa da própria junta (ou de entidade com poder para o requerer), não existe qualquer encargo a liquidar.

Estas juntas são constituídas por dois médicos oficiais, podendo a pessoa convocada para inspecção ser acompanhada ou indicar um médico de sua confiança – ao qual terá de pagar, evidentemente, a deslocação e o tempo de trabalho; presume-se que nenhum médico se prestará a tal sem qualquer espécie de remuneração.

Por outro lado, não está claro (nem deixa de estar) que as pessoas que fazem parte das juntas médicas tenham orientações de serviço quanto a números e objectivos, isto é, quantas inspecções por dia, por semana, por mês ou por ano. Não será nada fácil, até porque tais orientações variam em função da autonomia (também contabilística) de cada instituição, apurar se os médicos são pagos por objectivos, ou à tarefa, ou se, pelo contrário, têm (ou não têm) alguma espécie de limitação contratual quanto a rácios e a horários de trabalho. Podem existir contratos individuais, sem termo ou a termo, ou ainda prestações de serviços – com ou sem contrato estipulado – e, por fim, meras prestações pontuais (de médicos tarefeiros, a “recibo verde”). Em todos estes casos, e na ausência (provável) de legislação específica, este tipo de orientações é da competência dos responsáveis locais; logo, poderá haver juntas médicas a pagar à espécie – por inspecção e conforme o resultado de cada uma – e outras juntas que assim não procedem.

Como se processam e onde param estas contabilidades, as de todas as juntas médicas do país, isso é que seria interessante verificar. Só então seria possível tirar conclusões fidedignas: as juntas, afinal, são pagas à peça? Se, realmente, despacharem 20 doentes por dia, os médicos ganham mais do que se apenas aviarem 10? E ganham mais quanto mais pedidos indeferirem, ou ganham rigorosamente o mesmo?

Os indícios apontam para três respostas “sim”. Será possível que se possa ser multado por estar doente? Existirá uma taxa moderadora para a morte?

Esperemos que alguém explique, desmonte, irra, que alguém desminta tudo isto. Deus queira que seja tudo mentira.

Haja fé.

(*) Ver também o Regime de Aposentação, no site da CGA e a Lei 60/2005, de 29 de Dezembro (convergência dos regimes de protecção social).

Toda a legislação na Caixa Geral de Aposentações (link).

Nota: o Regulamento Disciplinar da PSP, nos seus artigos 10º e 126º refere, sobre o agente, os «vencimentos, remunerações, percentagens, abonos ou pensões que haja de receber» Percentagens? Quais percentagens? Percentagens de quê?