Do Portugal arguido – IV

Um arguente a arguir “arguido”

P – E acha que os cidadãos conseguem acreditar numa Justiça para ricos e numa para pobres?

R – Vamos lá por partes. O cidadão não pode estar toda a vida com um processo pendente. Repare: temos um presidente da Câmara, como o de Lisboa, que foi constituído arguido. Eu já tive oportunidade de dizer que o país está cheio de arguidos inocentes. Pela lei que tínhamos – e esse pedido de alteração da lei foi-me atendido (puseram lá ‘fundadas suspeitas’) – um indivíduo participava contra outro, não tinha razão nenhuma, mas o outro era ouvido e logo constituído arguido. E o arguido, uma figura jurídica que existe teoricamente para defender as pessoas, é logo o culpado, é o réu, ficando com esse labéu toda a vida. Não faço a mínima ideia se o ex-presidente da Câmara vai ser condenado ou não – mas foi demitido. E o que defendo pode não agradar ao sindicato dos magistrados, mas acho que o MP tem de ter prazos e o prazo não pode ser toda a vida! Dizem que não há meios suficientes, mas essa história é antiga e o cidadão não tem culpa.

Pinto Monteiro, PGR, em entrevista ao semanário Sol

Vamos lá por partes, então.

De facto, a figura legal “constituição de arguido”, com tudo o que semelhante aberração implica, é ainda uma das situações mais absurdas do edifício jurídico português. Não foi por acaso, e apenas para ilustrar com um exemplo, que o caso do desaparecimento recente de uma criança inglesa, no Algarve, espalhou uma onda de perplexidade (e mesmo, em alguns casos, de pura incredulidade) a nível mundial: toda a imprensa, e em especial a britânica, deu-se a verdadeiros trabalhos forçados para tentar explicar aos seus leitores o que era, em que consistia, ao certo, o estatuto de “arguido”; de tal forma difícil, a tarefa, que o termo original sequer foi traduzido para Língua alguma… pela simples razão de que, pelos vistos, não existe paralelo ou tradução para o termo “arguido”, nem em Inglês, nem em Francês, nem em Farsi ou em Russo, e não existe mesmo em Português, no Brasil e nos PALOP. Ainda hoje, meses depois de os pais da criança terem sido constituídos “arguidos”, os órgãos de comunicação de todo o mundo continuam a utilizar o étimo original, em Português europeu, acrescentando-lhe por vezes, entre parêntesis, uma explicação aproximada na Língua local: sospechosos, formal suspects, soupçonnés, respectivamente em Castelhano, Inglês e Francês, e com toda a certeza de forma muito semelhante em qualquer outra Língua.

Ora, o que sucede com este realmente intraduzível “arguido” é que não tem absolutamente nada a ver com os equivalentes legais que os estrangeiros lhe tentam arranjar: um “arguido” não é, de forma alguma, “suspeito” seja do que for. E não é mesmo, evidentemente, porque apenas o Poder Judicial tem jurisdição para declarar alguém como “suspeito” enquanto que, para uma pessoa ser constituída “arguida”, basta que alguém se queixe dessa pessoa junto de uma autoridade policial… ou que seja a própria autoridade a fazê-lo, o que já é completamente diferente.

Entenda-se, e separemos claramente as duas vias que podem levar ao mesmo estatuto de “arguido”, que, em princípio, se é de iniciativa do próprio Poder Judicial (genericamente, as Polícias, os Tribunais, o Ministério Público ou entidades com poderes equiparados) constituir alguém como tal, será porque existem “razões fundamentadas” suficientes para o efeito; isto não tem nada a ver com o facto de um indivíduo, qualquer vulgar cidadão, seja pessoa de bem ou perigoso cadastrado, trabalhador ou parasita, socialmente integrado ou perfeito marginal, possuir a prerrogativa de acusar seja quem for seja do que for – a queixa de uma parte implica necessariamente a constituição da outra parte como “arguida”.

Aquilo que o actual PGR pretende, pelos vistos, é que sejam limitados os prazos para a duração deste estatuto; o que significa, em concreto, que ao actual PGR não incomoda nada o facto de tal estatuto não existir – por algum complicado motivo – em mais parte alguma do mundo, nem a injustiça intrínseca e indestrinçável do mesmo; não, realmente, nada disso; aquilo que almeja e preconiza o actual PGR é a pura e simples redução dos prazos; não é acabar com a injustiça, é tornar a injustiça um pedaço mais curta; é, no fundo, apenas reduzir uma pena que é efectiva, para todos os efeitos, que persiste sem trânsito em julgado ou mesmo sem sequer ir a juízo. Qualquer um se pode tornar “arguido”, de repente e à má-fila, sem apelo nem agravo, e “arguido” ficará até que, das duas uma, ou o processo seja arquivado ou siga para julgamento; e mesmo neste caso, pode suceder – como frequentemente sucede – que o “arguido” seja julgado inocente, a queixa improcedente e, mais uma vez, o processo arquivado. Podem decorrer meses ou mesmo anos até que haja uma decisão judicial definitiva e, nesse ínterim, ao “arguido” nada mais resta do que nomear e pagar, se puder, um advogado, e ainda terá de arrolar testemunhas, comparecer junto das autoridades policiais para ser “ouvido” e, se a tal se chegar, depor em tribunal as vezes que for preciso. Entretanto, o estatuto lá está, indelevelmente colado à pele; é o tal “labéu” a que se refere, pressurosamente, o actual PGR, um anátema social insidioso que inevitável e invariavelmente irá para sempre minar a sua credibilidade, o seu estatuto e a sua auto-estima. Por algum motivo que facilmente se poderá deduzir, a primeira pergunta que um “arguido” tem de responder é se… alguma vez antes foi constituído “arguido”! Ou seja, quem já alguma vez foi “arguido” ficará para sempre (“alguma vez” é retroactivamente infinito) com uma espécie de cadastro, registado e implícito.

Além disto, este ginasticado e robusto estatuto, ginasticado porque dá para tudo, robusto porque o “arguido” não pode fazer nada, implica também as chamadas “medidas de coacção”; no caso da queixa-crime de particular contra particular, e de forma automática, o cidadão é imediatamente sujeito à medida “mínima”, isto é, o T.I.R. (Termo de Identidade e Residência); a mesmíssima medida “mínima” que é aplicável, por exemplo, aos crimes de furto, quando não em flagrante delito, às ofensas físicas ou morais, ao fogo-posto não reiterado e a outros crimes, públicos ou não, de gravidade considerada como “menor”. De qualquer forma, esta medida “mínima” é aplicada indistintamente, tanto a qualquer criminoso de carreira como ao mais impoluto cidadão. Os procedimentos administrativos deste TIR, moralmente tão pesado como um camião da mesma classe, a sua redacção e as respectivas consequências são democrática e rigorosamente iguais para bandidos e para gente de bem. Deve ser por isso que se costuma dizer que a lei é cega. Sim, sim. Ceguinha de todo. Mas enfim, deixemos isso por agora; não nos dispersemos.

Quando o actual PGR refere a necessidade de “fundadas suspeitas”, para a constituição de “arguido”, bom, isso já é outro falar, como se costuma dizer; só lhe fica bem que essa alteração tenha sido introduzida no CPP “a seu pedido”, mas isso não chega. De forma alguma.

Falta saber por quem. Quem vai determinar se as “suspeitas” são “fundadas” ou são “infundadas”? Os juízes? Os agentes policiais? Ou será o mesmo pessoal administrativo que hoje trata desses assuntos?

E falta saber também o que são “suspeitas”, ao certo. Porque, ao fim e ao cabo, é isso mesmo que define o estatuto de “réu” – e não o de “arguido”: isto é, são os indícios e as provas “suficientes” para que alguém seja levado a juízo, como “suspeito” de ter cometido um qualquer crime, pelo qual poderá vir a ser condenado… ou não. O mesmo é dizer que, introduzidos os novos pressupostos para a constituição de “arguido”, a matéria de prova a considerar remete para o conceito jurídico de “réu”, pelo que invalida o primeiro estatuto.

Não há que negar, é bom que exista alguma espécie de filtragem, e de facto é bem melhor do que nada reduzir os prazos, mas a questão reside nisto: o estatuto de “arguido” é justo ou é injusto?

Pois o que é o “arguido” que venha a ser inocentado, se não uma vítima? E o que sucede a quem abusivamente, levianamente, disparatadamente, estupidamente, malevolamente apresentou a queixa? Ora, é simples: nada. Absolutamente nada. Continuará a sua vidinha, impávido e sereno, e poderá continuar a presentear o povo com as suas queixas-crime, conforme lhe der na real gana, contra quem lhe apetecer, incluindo a mesma pessoa ou pessoas de quem antes se “queixou”. Não existe nenhum mecanismo legal para limitar este tipo de selvajaria legal; quando muito, a pessoa injustamente acusada poderá apresentar uma… queixa-crime (!) por “denúncia caluniosa”.

Ora, o que sucede neste particular é que essa acusação deveria surgir de imediato, como consequência – liminar e mínima – sempre que um “arguido” fosse ilibado, por arquivamento do processo ou por trânsito em julgado com sentença de inocência. Isto apenas, como é evidente, nos casos de queixa-crime por parte de particulares, já que o Poder Judicial é isso mesmo, uma forma de poder instituída, sufragada, que não obedece, ao menos teoricamente, a idiossincrasias pessoais e a qualquer volubilidade da personalidade individual.

Não é tolerável que um Estado de Direito continue a permitir este tipo de alçapões legais, este expediente legal que permite a qualquer bandido enxovalhar impunemente o bom-nome seja de quem for. O estatuto de “arguido” é uma verdadeira aberração, como se pode comprovar pelo facto de apenas existir em Portugal e pelo facto concomitante de o resto do mundo nunca de tal coisa ter sequer ouvido falar; está totalmente obsoleto, porque foi criado com finalidades (e pressupostos) e em função de uma situação político-social que já foi ultrapassada há décadas; é absolutamente injusto, porque indelével, irreversível e perpétuo, e ainda, ou principalmente, porque pode partir de uma acusação individual soez, cobarde, criminosa, sem que o seu autor seja por isso punido, e sem que a vítima desse crime seja dele ressarcida.

Finalmente, mas não por fim, chegamos à necessária associação de ideias entre o abstruso estatuto de “arguido” e aquela estranha figura, também jurídica e exclusivamente portuguesa, do chamado “segredo de justiça”; também este “goza”, como sabemos, de não menor popularidade (e generalizada risota), por esse mundo fora, com tudo quanto é legista estrangeiro tentando explicar, por vezes com desespero e socorrendo-se amiúde de calhamaços e de lenços de papel, em que diabo consiste essa esquisitíssima coisa: também para isto é necessário tradutores especializados, de preferência formados em Direito e com pós-graduação em etnologia, e mesmo assim é garantido que nove décimos dos perfeitos imbecis que habitam fora de Portugal não irão nunca, jamais, em tempo algum, sequer ter um vislumbre daquilo que vem a ser esse tal “segredo de justiça”. Note-se que o “arguido”, mesmo não sendo formalmente acusado de nada (se o for, deixa de ser “arguido” e passa a ser “réu”), fica desde logo obrigado a não dizer ou escrever seja o que for sobre aquilo (de que não é acusado) porque foi constituído “arguido”; ou seja, houve uma queixa-crime (que não deduz necessariamente acusação), sobre a qual o “arguido” não se pode pronunciar, de forma alguma; apenas depois de o processo se tornar público (com o trânsito em julgado ou o arquivamento) é o que o arguido (réu, se em fase de julgamento) pode dizer o que quiser sobre o seu caso; o que não dará muito jeito, de resto, se por exemplo acabar por ser condenado a pena de prisão efectiva. Tudo espremido, a conjugação do estatuto de “arguido” com a (patética) figura do “segredo de justiça”, temos algo como isto: o “arguido” (que não é formalmente acusado de nada, recorde-se) não pode dizer nada sobre aquilo de que não é acusado, nem defender-se (de coisa nenhuma, portanto), seja por que meio for, fora das instituições judiciais – esquadra ou tribunal; ou seja, se porventura o caso for arquivado, então ao “arguido” é apenas concedida uma prerrogativa, consistindo esta em ficar calado e quieto enquanto assiste ao alegre desenrolar de um processo no qual não tem voz activa, mas apenas passiva: o advogado fala por ele. Se não houver dinheiro para pagar ao advogado, o Estado providencia um defensor oficioso, cujo papel se resume a proferir, imediatamente antes da decisão final: “peço justiça, Senhor Doutor Juiz!”

Confuso? Não entendeu nada? Pois. É natural. Já somos dois. E mais uns quantos milhares de milhões de seres humanos, que não perceberiam patavina do sistema judicial português, caso alguém lhes tentasse explicar, mas isso, apenas o resto da humanidade, é trocos para algumas iluminadas cabecinhas lusas. É para o lado que dormem melhor, com as suas togas por cobertor e os seus capachinhos por travesseiro.