Pobrete, mas alegrete

Ciclicamente, a toque de caixa dos interesses políticos do Partido do Governo, surgem na comunicação social umas “estatísticas” sobre “a pobreza em Portugal”. Não sobre a pobreza de espírito, evidentemente, porque dessa desgraçadamente não existem nem grandes nem pequenos “estudos”, se bem que possamos empiricamente suspeitar de que tal atinge a esmagadora maioria da população, mas apenas, sistematicamente, sobre um conceito comunistóide que se designa por isso mesmo, “pobreza”.

Segundo estas extraordinárias estatísticas, pressupõe-se que, numa família média (casal e 2 filhos), como o rendimento é indicado per capita, entrarão por mês em casa cerca de 1.440 €. Ou seja, 288 contos dos antigos. Bem. Isto é “pobreza”?

Este conceito economicista (e politicamente correcto) de “pobreza” não tem absolutamente nada a ver com… pobreza. Em rigor, pobre é o indigente, aquele que – geralmente sem quaisquer meios de subsistência – não se insere em nenhuma estrutura social de forma estável e ou sustentável. Por definição, pobre é aquele que vive na rua, em habitação clandestina ou altamente degradada, é aquele que não tem família ou apoio de espécie alguma. Pobre, em suma, é quem não tem nem casa nem bens, quem não pode pagar a sua subsistência com um mínimo de qualidade e dignidade. Em Portugal, deverão existir cerca de 100.000 mil pobres: os sem-abrigo, os pedintes (e, destes, nem todos), os que de alguma forma foram marginalizados ou se marginalizaram por sua própria iniciativa. E isto no máximo, porque a realidade é capaz de ser bem diferente, para menos.

Mas fixemo-nos, portanto, nos 100.000 pobres; são 5% dos que assinala este suspeitíssimo “estudo”. É muito, realmente, é um número trágico, sim, mas nada que se pareça com esse absurdo dos 2 milhões de “pobres”. Portugal não tem essa catástrofe social dos 25% de “pobres”, mas 1% de pessoas realmente pobres.

Note-se que, para o efeito estatístico e para fazer passar uma imagem catastrofista, um Português é um Português, ou seja, tanto faz tratar-se de cidadão de meia-idade, ou jovem, ou velho, ou criança: naqueles incríveis e facilmente vendáveis dois milhões está tudo misturado. Ora, não é previsível que um recém-nascido possa arranjar um emprego, assim de repente, como não é muito provável que um “pobre” com setenta ou oitenta anos se candidate agora a um lugar em qualquer fábrica. Quando se apresentam estes números assim, desta forma espectacular, a ideia (peregrina) que se pretende passar é que existem, em Portugal, dois milhões de pessoas em idade produtiva e em condições de trabalhar que vivem com 82 contos por mês: para pagar a renda ou a prestação da casa, a sua alimentação e os seus outros gastos indispensáveis. Bem, recordemos que ainda assim, caso realmente se tratasse de indivíduos isolados, cada qual com seu apartamento, a coisa não seria propriamente uma desgraça absoluta; é possível, em Portugal, uma pessoa sozinha sobreviver com 82 contos por mês; muitos reformados, quantas vezes criminosamente abandonados pelas suas famílias, vivem com isso ou com menos ainda… e têm um tecto e não passam (muita) fome.

Mas não é de nada disso que se trata, repita-se. Aqueles 360 euros mensais são “por cabeça”. Portanto, há que – seguindo a mesma lógica – multiplicar pelo número de elementos do agregado familiar. 1.440 euros, para uma família de 4 pessoas, é pouco mas dá perfeitamente para viver. Bem, isto é, a não ser que se considere que não ter automóvel é, liminarmente, ser “pobre”. Assim sendo, de facto o orçamento é capaz de ser curto; mas enfim, talvez com umas poupanças, quem sabe o cavalheiro “cabeça de casal” possa adquirir o seu carrito, em prestações suaves. Claro que não poderá pretender arranjar uma casa no centro de uma grande cidade, ou mesmo no centro de uma pequena cidade, mas é bem possível alugar (ou mesmo comprar) uma casa com um mínimo de condições nos arredores dos arredores de uma grande ou de uma pequena cidade, se for muito teimoso, ou talvez na província, que tão desertificada e necessitada de gente está.

Vamos supor, portanto, que esta família de quatro pessoas está alojada numa habitação de três assoalhadas, num local onde não exista grande especulação imobiliária. Pagará de renda ou de prestação cerca de 350 euros; restam 1.090. Retiremos 90 para despesas de água, luz, gás e telefone (os “pobres” costumam ter telefone?). Ficam 1.000 euros. 200 contos não dão para quatro pessoas comerem decentemente durante um mês? O que falta para que as quatro pessoas daquela família deixem de contar para a estatística dos “pobres” em Portugal? Dois telemóveis, uma antena parabólica ou TV por cabo, aparelhagem de alta-fidelidade, um conjunto de sala e dois de quarto, computador (portátil) e ainda um Fiat de gama média? Pois bem, e com esse nível de rendimentos, quantas famílias conseguem tudo isso e muito mais, em apenas alguns anos, pagando tudo, pontualmente, a prestações?

Enfim, que diabo de brincadeira vem a ser isto? Quantos pessoas, por esse país fora, vivem – e muito razoavelmente – com muito menos do que este esquisitíssimo limiar de “pobreza”?

Os pobres, os verdadeiramente pobres, sobrevivem como podem debaixo das pontes, em vãos de escada, nos bancos de jardim, nas estações e nos ventiladores do Metro. Os pobres, que são por definição indigentes, não têm família, comem o que calha, onde calha e quando calha. Tudo aquilo que têm, transportam consigo… e quantas vezes esse “tudo” é apenas a miserável roupa que trazem no corpo.

Pobreza é não poder ir ao cinema todas as noites? Porventura é pobre uma pessoa que não tem posses para ir amiúde a um restaurante e, portanto, se vê na contingência de cozinhar as suas refeições em casa? Quem não usar roupa de marca é necessariamente pobre? O simples facto de se ter comprado uma casinha nos arredores do Cartaxo, por exemplo, significa necessariamente que se é pobre? Tudo o que seja andar em transportes públicos (ou a pé, ou de bicicleta) é sinal de pobreza? E andar num carrito a cair de podre, com mais de 10 ou 15 anos, é o quê? Miséria absoluta? Se um fulano já não comer lagosta há mais de um ano deve ser incluído nas estatísticas da pobreza?

Ah, bem. Então, pronto: estatisticamente falando, está aqui mesmo um desses dois milhões. Não sabia que era pobre, mas agora até acho bem. Ao menos, somos muitos, somos imensos, somos quiçá mais do que as mães.