Polícia canhota?

Ponto prévio
Não sendo, muito longe disso, especialista no tema (armamento), parece-me que este episódio merece alguma espécie de divulgação, até porque existem sobre ele – surpreendentemente – muito poucas referências nos blogs e na comunicação social convencional.

Para que se compreenda melhor o assunto, vejamos o que diz um agente da PSP no respectivo fórum (em “cache”, link não permanente):
«Pois é…as Glock aí estão para uns 50 anos de serviço e parece que a barraca está a começar… Como sabem melhor que eu foi introduzida uma patilha de segurança que não vinha ” de origem” na referida arma, então parece que a patilha na verdade é um botão do tipo “esquerda direita” ou “direita esquerda” em que para retirar da posiçao de segurança o movimento implica a utilização algo dificil do dedo indicador ao contrário do que sería de esperar (polegar). Um movimento “contra-natura” no que à execução do disparo diz respeito…diz-se que as armas eram para ir para trás ou que pelo menos as proximas têm q vir com isto corrigido…
Parece que o referido movimento de colocação em posição de fogo quase q obriga a segurar a arma com as duas mãos tal a falta de jeito e força necessárias…»

E, quanto aos coldres, um outro agente acrescenta:
«Ao que parece a Glock não foi distribuída porque o génio que fez o concurso esqueceu-se de incluir no mesmo a aquisição de coldres… Aos novos Agentes que terminaram o curso estão a distribuir Walther’s novinhas em folha saídas da caixa, e não Glock’s como foi dito na Comunicação Social

Por aqui se vê que algo correu, de facto, muito mal em todo este processo. Uma das escassíssimas referências a este assunto, na blogosfera, surge no blog Crónicas e Comentários, num post de 8 de Fevereiro deste ano, em que o tema é promovido a “anedota da semana”. As reacções a esta espectacular demonstração de incompetência foram escassas, tanto nos blogs como na imprensa em geral, o que torna ainda mais estranha toda a situação. Poder-se-á dar o caso, porventura, de tudo isto afinal não passar de mero boato?

Bem, vamos então tentar ordenar ideias, a ver se chegamos a alguma conclusão.

Sinopse
Foi aberto, pelo Estado português, concurso público internacional para o fornecimento de novas pistolas de serviço para as forças de segurança nacionais (PSP e GNR), em substituição daquelas que são utilizadas desde há décadas. A arma escolhida (Glock 19) foi fornecida com patilha de segurança à direita e sem o respectivo coldre; isto significa que um agente teria, para a destravar e poder disparar, de usar a mão esquerda ou… de ser canhoto; além disso, e como é evidente, não pode transportá-la convenientemente, porque – por regra – cada arma deste género é fornecida com um coldre específico.

Cronologia

1. Concurso público internacional
II.1.3) O anúncio implica:
Um contrato público.
II.1.5) Breve descrição do contrato ou das aquisições:
Fornecimento de um conjunto de 42 000 a 50 000 pistolas de calibre 9 mm x 19 mm NATO, com patilha de segurança, do respectivo material complementar e de um conjunto de peças sobressalentes.
(Compras.gov.pt)

2. A Glock (Áustria) ganha o concurso
O semanário Expresso refere, em 15.10.07, que “estão encomendadas cerca de 50 mil pistolas da marca austríaca Glock, uma para cada polícia da PSP e GNR. Custaram quase 13 milhões de euros.”

3. Primeiro lote entregue
No dia 07.02.08, o jornal Destak online (via Agência Lusa) refere:
«As modificações às 9.750 pistolas Glock que têm as patilhas de segurança do lado direito vão ser feitas em Portugal, disse hoje à Agência Lusa fonte do Ministério da Administração Interna (MAI). (…)
Apesar de terem sido entregues dentro dos prazos (Novembro do ano passado), as 9.750 Glock estão inoperacionais, trancadas num armazém, de acordo com o jornal (CM).»

4. Demonstração
Neste vídeo da Expresso TV, um oficial demonstra o manuseamento da Glock 19. Mesmo um leigo pode ver a tal patilha de segurança do lado direito, o que implica, para um destro, revirar a arma e destravá-la com a mão esquerda (ou usar o indicador da direita, o dedo que é costume ter no gatilho…); se o dito oficial fosse canhoto, bastaria usar o polegar da mão com que empunha…

Conclusão (?)

Na qualidade de cidadão português, parece-me que este é (mais um) caso de inconcebível trapalhada governamental. E julgo também que, mais uma vez e como de costume, ninguém parece ser responsável por coisa alguma, neste desgraçado país em que as asneiras – que custam milhões ao erário público – passam sistemática e alegremente impunes.

O senhor Ministro da Administração Interna declarou, ainda a bronca estava longe de estalar, que “Estão de parabéns todos os cidadãos“. Pois bem, Excelência, digamos que não é bem assim. Este cidadão aqui, entre outros, não se sente absolutamente nada de parabéns e não vê em tudo isto razão alguma para congratulações. Pelo contrário. O ridículo também é um fenómeno político e costuma fazer-se pagar por quem dele se cobre e com ele cobre o país. Mas, pelos vistos e para sorte de alguns, o ridículo em Portugal não mata. Sequer mói.