O aborto ortográfico continua a dar que falar… e escrever. Curiosamente, nada ou quase nada se sabe (pelo menos, em Lisboa, Porto, Coimbra e arredores) a respeito da opinião dos brasileiros sobre a coisa; não a dos emigrantes brasileiros em Portugal, não a da classe política brasileira, não a dos industriais daquele país interessados em exportar os seus produtos, não a dos imperialistas brasileiros por grosso, mas apenas a opinião do chamado “homem da rua” daquele imenso país, por atacado. Ora, afinal parece que não apenas isso existe no Brasil, como se torna sumamente interessante – para nós, portugueses – conferir o que diz esse tal “homem da rua” a respeito do assunto: estará interessado no Acordo Ortográfico, o público brasileiro, o povo brasileiro? Como se encara esta “genial” invenção, mas do lado de lá do Atlântico? O que dizem e escrevem os não académicos brasileiros sobre a chamada “uniformização ortográfica” do Português?
Interessantíssimo exercício, esta pesquisa, por assim dizer um aliciante safari linguístico. Claro que, para que conservemos um módico de sanidade mental, será necessário armarmo-nos previamente de extrema paciência e comiseração, tendo o cuidado de com prudência envergar uma couraça de desprezo que nos proteja dos enxovalhos a granel, dos insultos gratuitos e boçais, das diatribes e imbecilidades que nos esperam em tão meritória quanto, de certa forma, corajosa expedição.
Uma busca selectiva a páginas do Brasil devolve um número surpreendente de resultados. Assim por amostra e (como que) por mero acaso, tropeçamos num blog com o título de “Língua Brasileira” e com um lema não menos sugestivo que reza o seguinte: “Chega de chamar de “portuguesa” a nossa língua brasileira. Independência lingüística já!”
Começamos bem. O autor deste blog publicou, ainda anteontem, (mais) um “post” exclusivamente dedicado àquela que é, pelos vistos, a sua obsessão primordial: o achincalho do Português, Língua, e do português, povo. O título do post referido é só por si ilustrativo, mas valerá talvez a pena transcrever na íntegra o que ali se diz.
Quem disse que não existe vida inteligente em Portugal?
Trecho do artigo “Muito Barulho Para Nada” publicado pelo historiador português Vasco Pulido Valente no jornal português “Publico” em 21/03/2008, traduzido por mim para o brasileiro:
“…O dr. Vasco Graça Moura* e outras pessoas sensatas fizeram o erro de atacar o acordo ortográfico luso-brasileiro minuciosamente. A essência dessa monstruosidade acabou por se perder numa discussão técnica por que ninguém se interessa e que ninguém consegue seguir. A essência da questão é, no entanto, clara. A ortografia portuguesa e a ortografia brasileira são diferentes, porque a língua portuguesa e a língua brasileira são diferentes: a fonética, a sintaxe, a semântica. O brasileiro evoluiu e continua a evoluir de uma maneira e o português de outra. Este processo não vai evidentemente parar e vai reduzir a um triste exercício de futilidade qualquer acordo que os sábios daqui e de lá (e talvez depois de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné) se lembrem de congeminar…”
*Vasco Graça Moura é um escritor e político português que também é contrário à essa imbecilidade de des”acordo” ortográfico entre o Brasil e Portugal.
Refira-se, a talhe de foice, que o Português do Brasil que o autor do blog “língua brasileira” utiliza é do melhor que tenho lido. E posso asseverar que tenho passado, ao longo dos anos, tormentos merecedores, quiçá, de uma condecoração por alto mérito cultural e por variadíssimas demonstrações de coragem, como Português, quando debaixo de fogo brasileiro, cercado de asneiras por todos os lados ou a ter de aguentar (sozinho e para além do cumprimento do dever) a horrível escrita que o “inimigo” faz questão de usar, por pura ignorância e com alguma carga de malvadez.
Assim sendo, se este autor é do melhor, nesse pormenor da escrita, imagine-se o que será o pior ou, digamos, o assim-assim. Mas talvez seja, de facto, este muito razoável domínio da Língua Portuguesa que vai conferindo ao dito autor o topete para proferir os mais gigantescos dislates. A sua militância pela “causa” daquilo a que chama “língua brasileira” levou-o a subscrever ou, quem sabe, a fundar ele próprio, dois fóruns de discussão sobre a dita “causa”: um deles tem por título Eu falo BRASILEIRO e o outro, talvez por mera coincidência, obedece à máxima… Eu Falo BRASILEIRO. Dado o seu interesse antropológico, espreitemos os textos de “motivação” que ilustram um e outro.
Nosso objetivo não é causar polêmica ou discussões teóricas intermináveis, mas sim CONSCIENTIZAR a todos – brasileiros e estrangeiros, de que na prática, nós falamos mesmo é o BRASILEIRO (e não a língua de Portugal), além de promover a confraternização e troca de experiências entre pessoas que já têm conhecimento desta realidade.
Atitudes e REFORMAS urgentes se fazem cada vez mais necessárias. Cursos e publicações em países como Bélgica, França e itália, por exemplo, já sinalizam para a mudança (foto). O processo é lento, porém contínuo e IRREVERSÍVEL. Enquanto isso, estamos perdendo tempo, espaço e dinheiro. Afinal, quantas línguas atualmente possuem uma legião de + de 180 milhões de falantes? Por favor, pensem nisso e não se omitam mais!
Para você que não concorda que fala PORTUGUÊS, que concorda que nossa pátria chamada BRASIL, já tem esse patrimônio tão grande, seu próprio idioma, o BRASILEIRO!
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Eu proibi o post anônimo, pois quando a opinião realmente é válida, não se deve ter vergonha de dizer. (Corrigir a grafia e gramática das pessoas é permitido, e ser corrigido não é vergonha alguma).
Esta de corrigir “a grafia e gramática” (se bem que já contenha, em apenas quatro palavras, um erro de Português) até que não é má ideia. Quanto ao resto, nem vale a pena comentar. Aquilo é todo um programa. Cretino, mas programa, ainda assim.
Por mim, nada a objectar. Vão em frente! A “causa” é perfeitamente idiota, mas pronto, pelo menos deste lado do mundo livre, as pessoas podem fazer e promover aquilo que lhes der na real gana, desde que não façam apelo à violência, ao racismo e à xenofobia.
Se bem que talvez não fosse descabido alguém alertar este anónimo brasileiro, residente na muito brasileira cidade de S. Paulo, para três factos: ser ele próprio um paradigma de racista xenófobo e que algumas pessoas poderão considerar a sua “causa” não apenas como algo de risível mas também como de extrema, refinada, sistemática, violenta estupidez.