Acaba de ser criada, no blog do Apdeites, uma nova categoria: liberdade.
A liberdade, no fundo, é como a saúde: só se fala dela quando nos falta. E aquilo a que se vai assistindo, de facto, é a uma campanha, cada vez maior e mais asfixiante, de pura perseguição às liberdades individuais – nomeadamente às de opinião e expressão. Ora, a haver uma definição curta e incisiva daquilo que é a “blogosfera”, acontece que essa é, precisamente, “espaço de opinião e expressão livres”.
Aquilo que os inimigos da liberdade pretendem fazer, connosco e com este planeta virtual, é – invertendo ligeiramente a ordem dos factores – transformar a “blogosfera” num “espaço livre de opinião e de expressão”. “Livre”, nesta acepção, e como é evidente, no sentido alternativo ao comum do termo: sem opinião. Ora, retirando esta, a blogosfera perde todo o seu significado, isto é, toda a sua expressão.
Não se trata aqui de mera engenharia linguística, ou de malabarismos com palavras. É uma simples tentativa de interpretação dos acontecimentos mais recentes. A coisa é séria e, de certa forma, terrível, assustadora. Os ataques pontuais, a este ou àquele blogger, pela sua recorrência indiciam que estamos perante uma campanha concertada e ao mais alto nível; os depoimentos consecutivos de altas autoridades verberando os blogs, representam obviamente a posição oficial, e dela podemos inferir que, realmente, essas autoridades encaram a “blogosfera” como uma ameaça; a emergência de sistemas e métodos de fuga à identidade, a cada vez maior necessidade de anonimato, demonstram que estamos a entrar numa era de clandestinidade, na qual, por definição, é arriscado cada qual assumir o que diz ou assinar o que escreve.
Portanto, havendo perseguição e levando esta, compulsivamente, ao anonimato, poderemos concluir que perdemos a liberdade… mas que ainda não perdemos a expressão que a nossa opinião representa. Somos talvez, agora, ainda mais “perigosos” para o establishment do que antes.
Pouco (ou nada) falta para que, em Portugal, o mais comum e inofensivo dos bloggers tenha de se socorrer de ferramentas criadas na China, em Cuba ou no Irão, por exemplo, para escrever no seu blog; à semelhança daquilo que se passa em qualquer ditadura, ver-nos-emos forçados a escrever em cibercafés ou em cabines públicas de telefone, usando laptops da candonga ou aparelhos artesanais, não identificáveis; teremos de colocar “dispositivos de software” para apagar tudo do disco rígido, em apenas alguns segundos1, não vão as autoridades confiscá-lo “para investigações”; estaremos a enviar os nossos posts por e-mail, sendo este seguríssimo, anónimo até à quinta potência, e sempre através de IP fictício2. Utilizaremos, não tarda nada, apenas hosts grátis que não peçam mais do que um endereço de e-mail (ad hoc), para a inscrição, e que mudem periodicamente de endereço físico, sem registo ou sequer rasto de ficheiros históricos; sistemas de comentários voláteis, como já há tantos, sem rastreadores de acessos. Enfim, ferramentas não faltam.
O cidadão comum, as pessoas de bem, a blogosfera pacífica e cumpridora, toda a gente está a ser empurrada para a clandestinidade, para aquela espécie de twilightzone onde antes apenas pululavam hackers e outros tipos de marginais. De muito pouco, ou nada mesmo, valerá o esforço, a heroicidade de meia dúzia, se, como é costume, a esmagadora maioria se acobardar; e, como se sabe, é dos livros, quando o cerco aperta, quase toda a gente deserta. Sendo o anonimato a regra e não a excepção, na “blogosfera”, e assistindo-se agora a uma verdadeira caça ao anónimo, ainda mais “perigoso” precisamente por o ser, escusado será dizer que algumas medidas drásticas se impõem: se o pseudónimo não garante espécie alguma de reserva, pois bem, é fácil adivinhar o que se segue. Ou isso, ou volta-se ao caderno e à Bic Cristal.
Fazer a apologia da liberdade não significa necessariamente, ao contrário do que pretendem alguns poderosos, postular a impunidade ou a irresponsabilidade totais. Longe disso. O que se passa é que, da sanha persecutória de quem pode e manda… ninguém está livre: se apetecer a alguém, seja quem for que tenha meios para o fazer, acusar um cidadão identificado daquilo que lhe der na real gana, esse cidadão está automática, inexorável e legalmente tramado. Nada mais, nada menos. Mesmo que, posteriormente (e isto apenas enquanto não existir um regime ditatorial de facto) se constate e haja veredicto de inocência, esse cidadão verá a sua intimidade devassada, terá os seus direitos políticos e civis drasticamente limitados, será compelido a esportular despesas (quantas vezes incomportáveis) e ficará para sempre estigmatizado com uma designação jurídica (e social) nada agradável.
A “blogosfera” é constituída por bloggers, e estes são simples seres humanos, com virtudes e defeitos, tão responsáveis (ou irresponsáveis), tão imputáveis (ou inimputáveis) como quaisquer outros. O meio de expressão e comunicação que utilizam é o único factor que os distingue dos demais. Ora, a eficácia da comunicação, a força da expressão ou o poder da opinião são inevitabilidades tão controláveis como a chuva, o vento ou as catástrofes naturais.
Os ataques a alguns bloggers portugueses são um ataque a toda a blogosfera, porque se inserem numa lógica totalitária, numa tentativa de imposição do pensamento único, da verdade única, de um universo, em suma, do tamanho de uma cabeça de alfinete e com a densidade da esferovite. Além de um uniforme mental, aquilo que a exorbitância de prerrogativas da Lei denuncia é que se pretende vestir, à força, uma camisa-de-forças à imaginação, à criatividade, à inteligência do indivíduo.
E, isso, nós não vamos admitir. A liberdade não é apenas uma categoria, num blog. É tudo.
Assino por baixo.
1 Não é preciso tanto. Aliás, para isso é necessário ligar o aparelho… e pode ser que tal coisa não dê jeito nenhum, naquele momento. Basta encostar um íman potente ao dito disco.
2 Há uma data de serviços online para “anonymous websurfing”. O Anonymouse, por exemplo (mesmo em cibercafés), é uma possibilidade.